quinta-feira, 28 de março de 2013

a ÚLTIMA PRECE - por Simone Huck

 Géraldine Georges

Ajoelhou diante de um oratório velho e úmido repleto de mofo e fotografias antigas. Tinha passado os últimos anos trocando as imagens e as pessoas impressas no papel fotográfico de sua vida. Ninguém ficava. Ela continuava sozinha.

Chorou uma lágrima de gelo. Apertou com muita força os próprios dedos e olhou para o centro do oratório. As imagens de santo, Jesus, Kardec ou Buda - o que sua fé ainda acreditasse - não estavam mais ali. O tempo desbotou o Senhor que poderia lhe trazer alívio. Com olhos repousados nesse nada antigo e úmido, pediu um amor. Ela só queria alguém para amar. Nada mais.

Lembrou que sua alma morava dentro de uma bolsa preta, velha e rasgada que carregava junto com outros objetos também esquecidos. Com raiva e pressa, jogou tudo no chão até alcançar sua própria alma que segurava uma segunda bolsa. A bolsa da alma era mais pesada ainda. Repleta de chaves, cadeados e ferrugens. Tudo estava podre. Restos de papéis e tampinhas de caneta bic dividiam espaços com ínúmeros vícios, sobras, sombras, traumas, medos e mentiras que a alma contava tão bem para quem se aproximava. A bolsa da alma era uma bagunça. Tentou separar todo o lixo e ajoelhados, corpo e alma frente ao oratório, pediram por um amor.

Não se sabe quanto tempo se passou nem quantos meses ou anos ficaram ajoelhados ali, em sólido silêncio, clamando. Não se sabe se os céus ou o inferno ouviram suas preces. Os moradores da cidade apenas observavam, por trás de suas cortinas de curiosidade, o alto clamor. Eles duvidavam que corpo e alma conseguiriam alcançar os benefícios da prece.

Dizem que numa manhã de agosto, o pedido deles saiu do oratório e atingiu a autorização do Senhor que entregava amores de amar. Ele concedeu exatamente o que há anos corpo e alma pediam. Mas eles desconfiados frente ao recebido escolheram a bagunça pesada e densa que a bolsa da alma carregava. 
Não tiveram olhos de reconhecer amor de amar. Morreram ajoelhados, corpo e alma, mãos estendidas, clamando por algo que não viram chegar.

Dizem que o espírito dela, o único que ainda ficou, vive de contar mentiras para quem ainda acredita em histórias de amor primeiro.

terça-feira, 26 de março de 2013

mARIA FUGIU - por Adilma Alencar.


Come pão, toma café com leite. É só uma mulher no seu desjejum solitário, é dia de domingo, sinos soam longínquos.
A TV ligada diz do mundo, ela não ouve, faz tempo deixou de ouvir notícia.
Uma roupa pronta, passada, pensada, a espera. Maria vai à feira sentir os cheiros, escolher frutas, apalpar fruto, semente, grão, pó. Escolher alhos, cebolas, cajus, jacas.
Ri sozinha enquanto o pensamento desenha uma melodia.
Entre o córrego e as flores, lixo, latas e borboletas pequenas são cenários, é por onde Ela passa.
Triste e bonita como só Maria sabe ser, romã na mão, abandona o olhar numa mãe com a filha, ela também quer maternidade, mas seca todo dia as lágrimas de mulher com sua redoma de loucura, precipita, ela precipita.
Esconde a lã e faz amor com as estrelas, renuncia a tudo que é óbvio. Repete as receitas das mulheres que a antecederam, faz o molho com a ternura de uma mãe, como se servisse a uma deusa caprichosa e vaidosa.
Andar é a terapia, andar até doer o pé, ver horizonte, alargar a memória num laranja de fim de dia.
Ela quer a serenidade e faz juras. Reza. Pinta a cozinha de azul, compra abajures para o criado mudo, para a estante. A casa, à noite, é toda Maria. Cortinas leves de tons rosa, o cheiro de mato.
Vinho e vinho, bebe até romper em choro. Apartada da multidão dos bares, das vaidades do sexo, da violência das palavras, chora, menina, é sempre mais menina que mulher, a saudade rompe em meninice, cai sob seu lençol branco e reler os rascunhos de céu que a alma comeu.
Frio, o lençol ofende de tão limpo, ofende o calor que Maria sente.
A casa é limpa, como a alma de Maria.
Não é pesar que carrega nos ombros frágeis de mulher, não é ciúme, é paixão, ela pena as dores de um relâmpago, ela paga o visgo de uma planta, a sangria de demônios e duendes, o preço da fantasia é esse gosto amarrado no céu da boca, é a falta de nuvem para Maria pousar, falta à Maria o prumo. Ela compra santos frios, ela reza, Maria morre todo dia.
Maria fugiu do lar.
Para viver.

segunda-feira, 25 de março de 2013

UMA fonte de ilusões, POR FAVOR - por Vinícius Linné

A fonte da juventude, que há tantos já seduziu, não causaria em mim mais do que um bocejo insolente. Não, não quero segundas chances para cometer os mesmos erros. Prefiro meus aprendizados, mesmo acompanhados dos precoces cabelos brancos. O que me encantaria, isso sim, seria uma fonte de ilusões.

Nessa eu me banharia inteiro, esfregando os olhos com sofreguidão. E meu olhar, então, ganharia o brilho da inocência. Eu poderia, assim, acreditar no futuro de quem não o tem. Eu poderia, finalmente, ser feliz com as mentiras que todos contam. Poderia crer em utopias, sonhos ilusórios e miragens. Tudo que a TV falasse, por exemplo, seria verdade para mim. Eu não precisaria checar, desconfiar, entrever intenções. Meu mundo seria simples e cru. As amizades seriam todas verdadeiras, eu estaria sempre levemente entorpecido de felicidade e acharia bom tudo que os outros fizessem. Eu participaria, também, do máximo de concursos de iPhones no Facebook, acreditando que todos são verdadeiros.

Ah, como eu queria essa fonte de alienação... Queria nela lavar meu espírito crítico, minha pulsão de contestar, meu esforço (vão) de descortinar circos e desmascarar palhaços. Depois de um banho nela, eu estaria todo recoberto de inocência e poderia aplaudir qualquer um que quisesse me ludibriar. Com que graça e força eu baixaria a cabeça, eu sorriria, eu concordaria com tudo. Tudo.

E eu não me preocuparia com mais nada. Eu não leria, não pensaria, não veria filmes complicados, nem ousaria mergulhos subjetivos. Eu beberia, sairia e tentaria transar com o maior número possível de seres, sejam humanos ou não. E minha vida seria completa daí.

 Eu também trabalharia, não escreveria de jeito nenhum – e o quando o fizesse, escreveria jeito com “G”. E não ligaria pra isso. Ah, e eu também diria coisas como “curta a vida porque a vida é curta” e “100 % vida loca”, além de cantar tudo que estivesse na moda, pouco me importando com o significado da letra (se houvesse letra).

E eu gostaria de todos os governos, especialmente se eles me dessem dinheiro. E votaria em políticos corruptos para logo depois esquecê-los. E se algo de ruim eles fizessem, eu suspiraria e proclamaria logo: “Ah, a vida é assim mesmo. Vamos lá beber que depois tem futebol”.

Eu acharia lindo, então, o Brasil sediar a copa. E em algum momento em pensaria que faria um sucesso tremendo sendo jogador de futebol. Eu não estudaria, logicamente, não faria nada que pudesse ameaçar minha falta de realidade. Ou talvez estudasse, afinal, a nulidade enche hoje as faculdades.

Se eu pudesse ter de volta as ilusões, a inocência, a alienação, meu Deus, que feliz eu seria. Feliz! Feliz! Feliz! Não feliz como você que leu esse texto até o fim e o compreendeu. Feliz como quem jamais nem clicaria em um link com um texto assim.

quinta-feira, 21 de março de 2013

eLA, EU E O QUE NÃO ACREDITAMOS (PRIMEIRO ATO) - por Simone Huck

Da janela do meu microscópio vejo células epiteliais chocarem-se contra a Terra. Morreremos depois do meio-dia. 
Da janela do quarto, ela vê seu câncer comendo o sol. Estaremos no escuro antes das três horas.
Da janela desta tarde, ela e eu desenhamos imensas descrenças com lápis 2B. Haverá um enorme arabesco de nossas vidas às dezenove horas de hoje. 

Há vários alienígenas chegando com enormes borrachas. Seremos apagadas antes de conseguirmos dizer eu te amo. Nossos traços tremem no mesmo papel cômico e hilário. Nossas vidas entraram em nó. Colisão de sentidos. Somos ilustres desconhecidas procurando uma saída em comum.

Em cima dos meus medos as tarântulas adormecem.
Em cima da vida dela, o microscópio, o quarto, a Terra e o sol sorriem uma risada mórbida e imprevisível.
Há uma telepatia entre os mundos. Não nos deram ouvidos de escutar.

terça-feira, 19 de março de 2013

iMPORTA - por Adilma Alencar.


Abre a janela e coloca a cortina mais bonita, aumenta o som logo de manhãzinha, naquele blues, sussurra uma bobagem pueril para me tirar do sono, compra meias vermelhas e papel A4 ,me escreve uns versos para enfeitar esses dias bonitos.
Faz piada dos meus motivos e ri de meus medos mais sérios. Em silêncio, num canto da sala, costura a bainha de um jeans velho, corta as unhas dos pés, ler o segundo caderno e depois faz origamis para me informar do mundo, foi assim que as figuras do papa, do Hugo Chávez, da Yoani Chances, pousaram na minha mesa.
Bolinhos de chuva, chás, revistas de história e de cinema, Miles Davis e pedaços de arco-íris vão me encantando, quebrando o gelo da distância, cifrando um laço azul.
Uma tarde fria vai se abrindo dentro da sala e como numa onda quebrando, o seu corpo avança me  ensinando tango, fogo, meu corpo mar no seu corpo calmo e bruto, uma fome sem etiqueta nem linguagem .
É manto ou mato, organdi ou chita, é coberta ou chão, o que vai construindo o nó é só o suor junto, o soar uníssono, o não apartado dos signos da carne, o que vai tingindo a tarde é só cria nossa, é só um entendimento maior que o corpo em graça aceitou.
Não importa o prazo, importa a paz desse olhar de hoje.
Importa esse olhar que já dói, essa sabedoria de eu me deixar morrer entre essas flores simples.

segunda-feira, 18 de março de 2013

cARÍSSIMO - Por Vinícius Linné


(Hoje não escrevo. Não escrevo porque tenho em mim a vontade de não fazê-lo. E sempre respeito minhas vontades de não. Deixo com vocês, então, uma das cartas de Clarissa:)

"Se eu fosse tua, às três horas da tarde partiria a vitela em nacos graúdos, recolhendo o sangue em uma tigela de vidro. Eu fritaria a vitela e depois a cozinharia no próprio sangue, salgando-a e temperando-a com as ervas que eu plantaria no nosso próprio quintal, se eu fosse tua.

Se eu fosse tua, enquanto a vitela chiasse, eu bateria alguns ovos com leite, creme e açúcar. Eu cozinharia um pudim com calda e espremeria as laranjas compradas especialmente para o suco teu. Tu não o beberias, no entanto, preferirias cerveja, se eu fosse tua.

Se eu fosse tua, tu precisarias ser meu. E não serias assim. Não poderias. Tu não ganharias a nossa vida com palavras bonitas. Ganharias com suor e força. E só diria palavras feias, isso quando inspirado. Tu não terias o cheiro de perfume caro, não terias as mãos de pura maciez, não olharias obras de arte tentando absorvê-las. Tu serias bruto, xucro, inculto e belo. Apesar disso, tua mesma barba roçaria meu pescoço espalhando beijos de lábios graúdos, se eu fosse tua.

Se eu fosse tua, te esperaria chegar do trabalho com o jantar quase pronto. Ligaria o forno ao ouvir-te chegando e me apressaria para receber-te na porta. Te daria, então, um beijo salgado, sentindo teu cheiro forte de homem e meu. E eu te sentaria no teu sofá favorito, tiraria tuas botas cansadas e massagearia teus pés, inebriada com o cheiro. Se eu fosse tua, tu terias cheiros acres. 

Tu passarias as mãos em mim, esbravejarias pelo jantar e pedirias a primeira cerveja gelada da noite. Beberias várias cervejas, se eu fosse tua. Eu poria, então, o jantar e não comeria quase nada para que os pedaços maiores sobrassem para ti, e te ouviria, depois, reclamar de que as vitelas estavam duras de novo. Que eu não as sabia fazer. E eu sorriria me desculpando e compensaria depois... no pudim.

Por fim, eu adoçaria tua boca, esperaria teu banho e secaria tuas costas. Tu terias pelos nas costas, se eu fosse tua. Depois do jornal ou do futebol, tu deitarias, então, nos lençóis lavados, amaciados, quarados, passados e trocados todos os dias. E eu poria perfume antes de me deitar. Espalharia meu cheiro comprado em revista pela pele do corpo. E esfregaria essa pele na tua até ela ganhar o cheiro teu. E então eu dormiria, plena, entregue, satisfeita da simplicidade nossa.

Se eu fosse tua, pela manhã eu acordaria primeiro. Depois de um banho, eu prepararia teu café da manhã. Montaria as torradas, passaria o café e me entregaria de novo, se me quisesses, em meio à cozinha. Eu não teria ideias, não teria críticas, não teria voz. Teria, no entanto, a tua proteção, se eu fosse tua. E meu sonho seria esse só: ser tua. Eu sequer teria filhos. Eu não dividiria minha atenção, a não ser que o tu o quisesses. Quem sabe, sendo meu, tu haverias de querer filhos. E então eu teria. Meninos, como tu poderias querer, se eu fosse tua.

Tu dirias só coisas sobre o tempo, reclamarias do Azevedo e das coisas da construção. Tu rasgarias as roupas, mancharias de graxa (ou batom alheio) e eu trocaria receitas de removê-las com as vizinhas mais velhas. Se eu fosse tua, tu serias todo piadas e palavras sujas. Tu arrotarias na sala, se eu fosse tua, enquanto eu me apressaria em me desculpar com as visitas. Mas eu não me importaria, meu amor. Não de verdade. Seria a tua casa. E eu, a tua mulher, se eu fosse tua...

Não sou tua! Não sou simples ou submissa. Não consigo. Tu não és meu. E não te quero como és. Em algum lugar, talvez, eu e tu sejamos assim, só mulher e homem. E lá, talvez, sejamos felizes. Quem sabe é de lá que carrego essa nostalgia, essa vontade de ser tua - apesar de tudo. Ou, quem sabe, aqui somos só a concretização do desejo daqueles de lá: tu meu solitário criador, eu sem nem existir.

Da nunca tua,
Clarissa"

quinta-feira, 14 de março de 2013

o HOMEM QUE APAGAVA - por Simone Huck

"Morte, 2013" - Simone Huck
  
Deixou os cabelos crescerem e passou a tomar banho com ácido. Nunca mais cortou as unhas nem arrancou os pelos que nasciam no meio de suas pintas. Não usava mais sabonete e há quatro meses deixou de fazer a barba. Enforcou as silhuetas que habitavam suas poucas memórias e tentou dormir naquela noite de chuva. Definitivamente queria ser outra pessoa.

Mudou todos os caminhos. Adiantou em sete horas e quatro minutos todos os seus relógios. Refez a agenda telefônica. Deletou todos os e-mails e apagou todas as músicas. Passou a se alimentar do mesmo alpiste que dava para os dois pássaros da gaiola que ficava em cima da geladeira vermelha, vazia e enferrujada. Não, não eram diabéticos; nem ele, nem os pássaros. Acostumou a beber o sal de suas lágrimas e não mais diferenciava os dias com a ponta de sua língua. Definitivamente procurava outra promessa.

Passou a não conversar com ninguém. Fingia uma surdez. Acentuava uma mudez. Andava pelo lado oposto das calçadas, em eterna contramão. Olhava para o asfalto e já não percebia, ao alto, como as árvores estavam. Se eram flores ou sertão. Não sabia qual estação pisava; em qual bairro chegava ou saía. Definitivamente queria outra alegoria.

Mês passado encontrou um papel colado num poste, entre rabiscos e grafite, o endereço de um tal Seu Joaquim. Por duas garrafas de cachaça e talvez cinquenta reais, Seu Joaquim prometia em apenas três dias apagar a memória de qualquer pessoa. Faria um desenho novo. Depois de algumas décadas, levantou a cabeça, anotou o telefone do Seu Joaquim num papel velho que estava no seu bolso sujo e decidiu ligar antes do fim da noite ou do dia. Definitivamente queria outra dinastia.

terça-feira, 12 de março de 2013

eLA VESTE PALAVRAS VERMELHAS - por Adilma Alencar.


Seu gato preto enrola o rabo na sua canela branca e macia, é dengo. Zanzando sem par, entre um cigarro e outro, ela lê Hilda Hilst e bebe muito, bebe com uma sede infinita.
É dia de semana, retina resplandecendo cinza, fumaça branca.
Curva o corpo em corpete, tira sutiã, pisa a pele macia e sente. Acende desejo de acidez e mel.
Entre as pernas, tremores de nervos.
Menina, quantos anos separam o meu desejo do seu?
Cabelo e fogo enrolando meus dedos entre suas vontades e caprichos, vaidade de quem mergulha porque tem fome e sede de nadar. Hesito.
Do lado de fora, os jornais noticiam mortes, os sociólogos inventam seus objetos de estudo. As putas, os gays, os militares, o paleontólogo, o mendigo, a virgem, a psicóloga e o porteiro do prédio seguem comprando comida, comendo a comida.
Escreve em seu ventre o desesperado desejo do gozo em rebentação e ritmo.
É vaidade sua exibir meus gemidos aos quatro ventos.
Sucumbir por fora aos ímpetos verborrágicos que seus traços liquefazem em minha língua é tarefa de enlouquecimento, é impossível em expressão, em nãos.
Tudo pulsa como um tambor tribal, como uma ressonância de cálculo de poro, a sustentação de meu passo é a greve de evitar o desabotoar de sua saia e blusa.
Em minhas coxas, eu sei, sonha deslizar sintaxe de piano, ser cenografia de madrugada e sexo.
O dia, do lado de fora do desejo, dá sombra ao ébrio que dorme na calçada, faz carinho aos casais nos parques lotados.
Ri como uma louca e à frente do meu passo, exibe seu all star preto, sua vontade de meu corpo como um troféu.
Engulo protocolos e não a vejo por dias, engaveto intenções.
Escrevo poesias de água, pretensa encomenda de um coração magoado.
No ônibus o calor de mil fantasias incide em raios colorindo os olhares perdidos, desencontros oblíquos, mulheres em pé de guerra, em arder de unha, numa distância de ofício, de face, de ruas inundadas,onde ratos espreitam o momento da mordida.
Fuma um, dois, três, quatro cigarros numa espera vã. Não chego, não olho, embora minha respiração embale minha febre.
A música vem de um violão antigo, o baixo soa, ondas de hipnose enfeitam meu desejo.
Eu me perco em papéis gastos, palavras frouxas, sinais do mundo prático.
Ela, nua de argumentos, sem saber despe minha armadura.
De cores escuras, ela veste vontades vermelhas que dançam em seu olhar dentro do calor do mês de março.
As tempestades derrubam as árvores, entopem avenidas de gente e lixo.
As rédeas, as redes, os pequenos ritos, inúteis tentativas de regrar uma ternura que escorrega em sins ainda desencontrados.
Fora do cotidiano ralo, da polidez anêmica, a menina segue derrubando muros e excitando modos imperativos.

segunda-feira, 11 de março de 2013

bURACOS - por Vinícius Linné

Solidão abre buracos.

Em Jonas um buraco na cabeça. Um furo pequeno na frente, entre os olhos, mas um rombo gigante atrás, por onde lhe saíram os miolos que sujaram de vermelho os azulejos da cozinha.

Em Martha um buraco no estômago. Uma cratera enorme que precisa diariamente ser preenchida com doce de leite, calda de pêssego, bombas de chocolate e dúzias de caramelos.

Em Cristina um buraco entre as pernas. Uma gruta que anseia se sentir completa para que Cristina se sinta também. Como se, dando o que eles querem, ela ganhasse o que quer. Não ganha. Ganha fluídos,  mas não o que precisa.

Em Mathias um buraco no coração. Uma marca pequena, feito aquela que deixam os vermes na casca das frutas. Um buraquinho que faz diferença entre se sentir ou não vivo. E ele só se sente quando o buraco está lá.

Em mim a solidão abre buracos no papel. Cada pingo, cada ponto forte, cada acento decisivo é mais um furo que aparece na folha. Como se escrever, abrir esses furos, preenchesse os que estão dentro de mim. Como se, ao levantar às três da manhã e me trancar na garagem com um caderno nas mãos, eu pudesse me traçar um destino mais completo e evitar que os furos de Jonas, Martha, Cristina e Mathias se abram também em mim..

quinta-feira, 7 de março de 2013

as BAILARINAS - por Simone Huck

Edgard Degas

Ela tenta se equilibrar ao lado do balão de oxigênio. Ele se arrasta numa cadeira de rodas velha. Bailarinas depois da guerra; ambos possuem pernas fracas. Entram na fila para pegar um número. O câncer faz a curva em dois complexos do hospital distribuindo senhas. Os zumbis humanos, sem olhos de encarar meus olhos, seguem sem ilusões nos bolsos rasgados de suas calças repetidas. A vida é uma eterna quimioterapia.

Os dias são quentes. Altas temperaturas e o país tropical está prestes a pegar fogo. O câncer também transpira, com sudorese e perfume vencido, não perdoa nem no odor. Ao lado, enquanto esperamos, escuto um discurso:
- Filha, o que é câncer?
- É algo comum, mãe. Não se preocupe com isso.
- Meu cabelo vai cair?
- Mãe, você é linda de qualquer jeito. Seu par de olhos verdes compensam toda vaidade. Se caírem, seus olhos continuarão verdes e você, linda. Não se preocupe com isso.
- Não aguento mais ser picada por tantas agulhas.
- Mãe, imagina se você tivesse tropeçado num formigueiro?
A mãe suspira convencida. A filha suspira agoniada. Todos ficamos em silêncio. Mãe e filha. O diálogo vencido. Eu. 

Ela levanta para pegar um café e deixa a mãe por cinco minutos. Levanto também. Ela pede adoçante e eu açúcar. Ela sabe que ouvi o diálogo. Senta para tomar o café. Sento ao lado. Nos apresentamos quase que em silêncio. Comungamos segredos.
Ela me diz:
- Nunca pensei que pudesse construir tão prontamente respostas burras e mentirosas capazes de também me fazer acreditar.
Sorrio e lhe respondo:
- Alguns desesperos precisam virar contos de fada. Não se culpe. Nem sempre necessitamos da verdade.
Ficamos em silêncio. Somos uma fraude sem palavras.

A fila anda. As bailarinas se arrastam. O suor escorre de nossas testas e molham as senhas. Somos uma sentença líquida a espera de um final feliz que não acreditamos.

terça-feira, 5 de março de 2013

dOR DE BISTURI - por Adilma Alencar.


Ele deseja silêncio.
Segunda de manhã cedo veste calça jeans escura, camisa preta.
Carro ligado, motor potente, rota traçada, dirige como se isso lhe fosse natural, como comer, como seus pelos nascem e lhe escurecem o rosto.
Morto, essa é a sensação que ele experimenta nas últimas semanas, é homem saudável, saibamos, não estamos falando de doença física, talvez da alma, se soubéssemos nós desse conceito líquido formado e deformado pela linguagem.
Civilidade violenta dos dados, dos sons que computam a morte, da gaze, do soro, do diazepam que lhe acalma os nervos.
Doutor, neurocirurgião, trêmulo diante da carne aberta, nervos de homem fugindo à razão da rotina óbvia de vinte anos de profissão.
Na entrada do consultório, ele viu uma menina lendo um livro de capa vermelha e verde, com desenho de morangos. A menina sorria sem sentir o peso que o doutor acreditava ser inevitável, o peso do mundo.
Roupa azul, cabelo ruivo e sardas que combinavam com a falta de seu canino, ela, doce, sabendo da linguagem como uma porta para uma viagem mágica, das letrinhas criando borboletas, sons, sustos, brilhinho na roupa das princesas.
Ele sorriu, ficou triste por invejar uma inocência tão verde.
Luminescência.
Sofria por sentir a gente por trás de todo corpo, a respiração que acompanha cada palavra.
Pisava fundo, acelerava na Avenida Vinte e Três de Maio, comia bolo de chocolate e bebia café compulsivamente.
O jaleco branco apertava o corpo do homem. Os óculos, ao contrário de sua nobre função, ofuscavam a precisão arrogante das cores. A ele, parecia a todo o momento que o céu de chumbo desabaria sobre o trânsito das seis da tarde, naquela avenida de signos de ambulância, de blindados, de homens blindados de uma civilidade que não sabe morrer, porque os comprimidos sempre lhes tiraram a dor com a mão, com pinça e piercing, com sexo e sangue. É do homem o sofrer, mas a um doutor instruído,neurocirurgião dado à entrevistas, homem de vida reta, questionar a pulsação da vida em suas metáforas de nuvem e cuspe? Ora, essa dor conhecia o peso das palavras, era dor de bisturi e prontuário.
Voltando para seu apartamento, numa esquina movimentada, ele viu um jovem: sem camisa, branco, alto, magro. Vendia cigarros de maconha. Ele se aproximou do doutor e, com um gesto, ofereceu seu produto.
Não, não comprou. Pegou o jornal que estava sobre o banco do carona, com data da semana passada, ele leu o título de seu texto que fora publicado no jornal e dizia sobre os efeitos nocivos da maconha.
Olhou se certificando que embaixo do jornal estava a caixa de diazepam. Aliviado, viu uma cartela ainda cheia, na porta do carro.
Em casa, beijou a esposa com ternura, arrumou a mochila dos filhos, deu comida ao seu cachorro e saiu desligando as luzes de todos os cômodos. Na cozinha, abriu a geladeira, trêmulo como esteve na última semana, pegou uma jarra de água, jogou dois comprimidos na boca e bebeu a água gelada.
Dormiu durante horas.
Acordou com os imperativos lhe arrancando ordens, e foi ao seu lugar no mundo, foi costurar carne e aliviar dor. A dor que a civilidade amacia, mas não cura.

segunda-feira, 4 de março de 2013

aSSEPSIA - Por Vinícius Linné


Não que ele seja especialmente sujo. É humano. Só. E descama, respinga, amarrota, esfarela, suja, escorre, escoa e flui como qualquer humano. Maria Odete não. Maria Odete não tem sobras no mundo. 

Ela é asséptica.

Ele, o humano, é casado com Maria Odete.

Quando ele chega em casa do serviço e vai até o quarto, ela varre a calçada, a sala e o corredor. Ela apaga o rastro microscópico de poeira que ele deixou. E pega os sapatos – que ele largou jogados no chão! – e passa neles um pano úmido. Por fora e por dentro. Depois, ela organiza os papeis que ele trouxe, coloca a pasta no lugar certo, escova o paletó e põe no armário, bota o resto da roupa toda para lavar.

Quando ele sai do banheiro, ela entra. Vai enxugar a pia, secar os azulejos do box, passar um pano no espelho embaçado. Apagá-lo, enfim, até o último traço de vapor e perfume caro.

Quando ele acaba de fumar, ela recolhe o cinzeiro, joga as cinzas no lixo e lava, esfregando com força, como que para removê-lo também dali.

Quando ele levanta do sofá, ela corre desamarrotar a manta que o cobre. E trata depressa de ajuntar cabelos e cascas e caspas que ele possa ter perdido enquanto esteve sentado. Não quer pedaços dele descansando sobre o sofá.

Quando ele bebe água, se pinga por descuido no chão, ela logo franze o cenho. Pega flanela e seca, resignada, ajoelhada como quem expia um pecado imenso. Nunca deixou qualquer mancha dele sobre a mesa.

Quando chega, finalmente, a notícia de que ele morreu (espalhando-se todo em vísceras e sangue e partes por um asfalto duro), Maria Odete chora. Chora ainda ao telefone, vertendo lágrimas que caem pelo vestido e mancham o piso de linóleo. E ela olha então para o sofá: imaculado. Ela olha para os móveis: nenhum sinal. Ela corre para o quarto, cheira as roupas dele: todas rescendem a sabão e amaciante. Ela vai ao banheiro: não há sequer um fio de barba dele incrustado no barbeador elétrico. Tudo na casa age como se ele nunca tivesse existido. Ou como se tivesse existido sem qualquer materialidade, sem cheiro, sem rastro, sem nódoas, sem impressos digitais perdidas, sem ser, enfim, verdadeiramente humano.

Maria Odete chora mais.

E então, de repente, sobressaltada, volta à sala e começa a lustrar o linóleo onde suas lágrimas caíram. Que não fique manchado, pelo amor de Deus, que não fique manchado!