terça-feira, 31 de dezembro de 2013

dESFRUTE - por Adilma Secundo Alencar.

Rompeu o musgo daquelas noites desesperadas e explodiu em dentes, lábios e olhar, o rosto redondo era só sorriso de susto. Encontrou novamente seu prumo, menos numa cama e mais numa calma de sentir, ela agora já não quer laço, porque os nós atados aos pulsos quase arrebentaram sua força. Na passagem dessa noite ela vai dançar nua, apesar da roupa branca, da lingerie nova.Quem souber reparar melhor verá uma mulher nua,comungando uma paz íntima  que ninguém saberá  tocar, irão ouvi-la,vê-la, mas tocar ninguém alcança,ela já sabe seus próprios labirintos e sabe ruir, reger orquestras de passarinhos errantes,de flores miúdas e rosas de todas as cores.É uma mulher no visgo de sua juventude,de sua mordida, de seus mil motivos para morrer de paixão ou de raiva,seus mil motivos rasgam sua carne e explodem líquidos nos seus olhos redondos e bêbados da novidade do mundo.
E no rito de passagem, anseia um milagre, uma cor, uma seta para a criação do mundo, seu mundo. Ela comeu sete adjetivos no café da manhã, e cuspiu uns poemas na cara dos fracos, dos frágeis, dos delicados. Ela é um carnaval vermelho, as alegorias desfilam derrubando homens, encantando mulheres. Ela vai entrar no novo ano com os olhos livres, suas mãos abraçarão os anjos e os demônios, ela é comovida de amor e é de sua natureza lacrimejar amor. Molhou lençóis e lenços, esteve rente ao abismo, mas dançou ao som de um acordeom sentido, segurou mãos vizinhas e abençoou a noite de sorriso e reza.

Dançará poemas, cantos de sereia, voo de águia, tremor de terra, barulho de flor desabrochando, orvalho no roçado do sertão, falará a língua de uma planta brotando entre pedras róseas.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

pASSAGEM II - por Vinícius Linné

Como no ano passado, o bilhete está comprado. Haverá outra viagem, amanhã, com saída às 23h59min. Com chegada prevista às 0h00min do ano que vem. Outra viagem em que as malas precisam ser feitas, em que será preciso escolher o que levar de 2013 e o que deixar.

Vou fazer tudo igual. Vou me preparar bem, malas, bagagens de mão, passageiros que deverão me acompanhar, casaco para o caso de fazer frio. Vou fazer de conta que está tudo bem. Que deixei as mágoas e carreguei os quereres. Que partirei sem rancores, só carregando bendizeres.

Mas na hora. Ah, na hora...

Na hora em que o trem chegar, vou esperar ao máximo. Vou esperar para embarcar no último segundo. E quando o fizer, vai ser sozinho, soltando minhas mãos de quem as segurava. Sem malas, sem mazelas, sem ninguém. Vou entrar apressado e trancar as portas do meu vagão. Por ali nada passa. Vou arrancar as roupas todas. Não as quero. Nem elas eu quero levar além. Nem poeira ou grão de 2013 quero que fique em mim.

Vou, então, riscar o único fósforo que manterei comigo e atirá-lo pela janela. Vou incendiar as malas que ficaram na estação, previamente preenchidas de álcool, gasolina, poemas velhos e querosene. Que queimem. Que incendeiem bem. Quereres, ofensas, delicadezas e mulheres como as de  Laura Esquível. Que tudo queime. Que 2013 seja só uma luz vermelha, cada vez mais fria, conforme o trem se afasta.

Que queime, enquanto olho e bebo do champanhe mais caro do trem. Que o ano inteiro fique para trás. Que queime e enegreça, encolhendo suas bordas e se fechando em si. 2013 foi um desperdício.  Que o trem seja rápido o suficiente para que nem as cinzas carregadas pelo vento o alcancem. E sim, que só sobrem cinzas de um ano que foi também todo cinza. Que ao chegar à estação, em 2014, eu seja tão leve a ponto de voar para longe. Para longe daquela mancha enegrecida, daquela estação queimada, daqueles ossos e papéis velhos, devidamente carbonizados, que um dia eu chamei  de meus.


'To burn ones memories' by Kaia Pieters

"Y la noche que se incendia,
Y la cama que se eleva,
A volar…
And of the dark days
Painted in dark gray hues
They fade with the dream of you
Wrapped in red velvet
Dancing the night away
I burn…
Midnight blue
Spread those wings
Fly free with the swallows
Fly one with the wind"

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

aZEDO - por Adilma Secundo Alencar.

Os supermercados estão inchados de gente com fome de amor. O preço das ameixas sempre sobe nessa época. Hoje à noite muita gente vai se abraçar com remorso de amor que nunca saiu dos olhos e por dentro não vai sentir fome, vai sentir gosto de palavra azeda, de um sentimento coalhado. Escorrendo um medo de abraçar de verdade, haverá muitas velas e laços e quase ninguém vai dar as mãos.  Panetones caros serão servidos e numa praça da zona sul, o prefeito expulsou os viciados porque eles não combinaram com o verde e o vermelho daquela árvore reluzente. Um menino no interior de Sergipe está a essa hora da manhã trepado num umbuzeiro, porque é tempo de umbu e siriguela, disso ele sabe, disso eu sabia. Mas há o homem de roupa vermelha vendendo sonhos de bicicleta para quem não tem nem ambição, nem tamanho para sentir ódio.


segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

rENEGAÇÃO - por Vinícius Linné

Eu só consigo ter voz pelo outro. De mim as palavras não saem. Um  dia ainda engasgo de tanto que não tenho dito. Por isso coleciono aforismos, mensagens alheias que uso como legendas da minha própria vida. Por isso as músicas, os filmes, os livros, para pescar citações. Para capturar nas falas dos outros a vontade das minhas. Para ser espectador do que a vida pode ser. Nos outros. Sempre nos outros. Em mim não. Em mim a vida é limitada.

Vou buscando na arte alheia a experimentação. A sensação, o arrepio, a excitação, a fome e o que comer. Tudo que eu um dia já quis para a minha arte, para a minha vida. Não quero mais. O alheio já me basta. Alguns nascem assim, para ver. Não para viver. Sou desses.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

pEDRO -por Adilma Secundo Alencar.

Pedro comprou um presente e guardou seus sentimentos dentro dos olhos tímidos de rapaz de dezesseis anos. Ana andava sempre com um livro pra cima e pra baixo e cada vez que se encontrava com Pedro, falava de novas personagens. Sorria suspiros narrando enredos de amor e de traição. Ele sempre atento às palavras da amiga, perguntava do desfecho, dos porquês. Comprara naquele natal um colar de sementes amarelas e esperava que ela enfim desse um suspiro de contentamento e alegria, ou quem sabe surpresa. Naquela semana ela parecia mais altiva, o sorriso solto de Ana intimidava o rapaz que ficava cada vez mais nervoso com a presença brilhante da moça.
Na manhã de sexta, ele colocou o colar dentro de um plástico dourado, guardou-o numa caixa verde e enfiou dentro da mochila junto com alguns livros.

Perto do portão da escola, antes de dizer qualquer coisa, Ana pegou a mão de Pedro e confiou-lhe um segredo. Pela primeira vez, dissera ela, estava vivendo um amor como nos romances. Carlos Eduardo, dois anos mais velho que Pedro, ganhara os olhos e os suspiros de Ana. Pedro voltou pra casa sozinho naquele dia, guardando suas lágrimas nos olhos negros. Foi sua primeira dor.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

cERTIDÃO DE NASCIMENTO - por Vinícius Linné

Que era preciso na vida um toque de ousadia ele já sabia. Não praticava, porém. Resguardava-se. Para quê? De quem?

Naquele dia, pensou mais e pensou diferente. Viveria.

Viveria baixo e em segredo, quase leve. Mas viveria. Nem que fosse para provar da sensação. E como o universo colabora com aquilo que pulsa, a oportunidade se fez.

Primeiro ele olhou, começou a calcular todos os riscos, avaliou a exposição que a vida é, já começava a calcular as consequências quando se advertiu: não era dia de pensar mais. Era dia de se viver.

Respirou. Foi.

. . .

Quando voltou, seu corpo inteiro tremia. Pernas, mãos, braços, pelos e coração. Tudo se eriçava a ponto dele pensar que não sobreviveria ao ato de viver.

Abriu um livro para desfaçar os turbilhões de dentro. Leu incontáveis vezes a mesma frase sem sentido. Desviou os olhos, tentou controlar os braços, respirou fundo e o cheiro que lhe invadiu era de lavanda e pinho.

Então era isso. Então sobrevivera. Então nada havia se rompido na normalidade absurda daquela tarde quente. Nada explodira. Nada se quebrara. Ninguém sequer podia suspeitar que ele havia vivido. Talvez vissem os membros trêmulos, o suor no rosto, o sorriso que mal e mal se disfarçava. Mas quem saberia? Quem poderia supor o que lhe passava por dentro? Quem se importaria? Quem pararia o tempo para condená-lo ou benfazê-lo?

Ninguém.

Naquele dia, ele descobriu que o que vivesse era só seu. E que podia acostumar-se com aquela sensação. A partir daquele dia, ele nasceu. Aos 28, ele nasceu.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

cONGESTIONAMENTO SANGUÍNEO - por Simone Huck

"Trânsito",  2013 -  Simone Huck

Você abre um pacote de bolachas dentro do carro mas não mastiga um tempo recheado de chocolate. Boca amarga. Semáforo vermelho. Você espera cinco minutos num cruzamento que não mata, nem salva. Não há estacionamento capaz de abrigar tanta estagnação. A vida não corre. Sua pressa é uma saliva frustrada. Engula o sangue. É vermelho.

Você engata a primeira marcha e sua traqueia seca tenta gritar alguma coisa que seus ouvidos não escutam. O mundo está surdo. Deus fala em Libras. Internamente você está em marcha ré, perdido num congestionamento que nunca mais te levou para casa. Você está em trânsito. O semáforo está verde. A vida é uma semente que ainda não pode ser consumida. Verde é imaturo. Amargo. Engula.

Pela janela do carro você derrama um olhar e uma vontade que molham a sarjeta do mundo. Sua solidão bate recorde de congestionamento. Seu GPS não calcula novas rotas. A hora do rush são todas as horas. O semáforo está amarelo. Mesmo sem saída você acelera. Há um tráfego intenso nos seus braços vazios. Há uma hora morta te esperando para o jantar. Há uma réstia de fé no fim da avenida cheia. Você acelera mas sabe que não chegará. Amarelo é um meio-termo. Uma escolha incerta. Cuspa ou engula.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

rAIOS AZUIS -por Adilma Secundo Alencar.

Tem gente fazendo pacto de amargura com a vida, enquanto eu escolho uma poesia do Leminski para mostrar para você. Muita gente nesse momento escreve artigos científicos, compra remédios digestivos, enquanto eu separo alguns filmes do Almodóvar pensando se você vai gostar da minha cena preferida. Muitas pessoas andam sozinha pela rua do jeito que eu gosto de andar, eu penso na sua mão pequena que segura a minha. Eu gosto de escolher palavras simples e minhas pra contar uma narrativa corriqueira e quase sempre você ri, porque o cotidiano narrado com riso é humor na certa, Deus é irônico, diz um amigo meu. Há muitas cores cobrindo as pessoas apressadas na avenida já vazia de fim de domingo, mas eu só tinha um gosto azul na boca. Uma tarde pós-chuva descortinou nove anjos laranjas que bailaram ébrios sobre seu gosto de cereja.Tentando dar nome ao que eu quero vivo, afasto a palavra e prolongo o olhar  além do que é óbvio. Deslizo desejo e pele e amanheço menos sono e mais desejo. Ampliaram avenidas, protestaram políticas públicas, anunciaram novas drogas, enquanto eu abria os olhos devagar e só desejava que o dia se abrisse amarelo ou cinza, frio ou quente, mas que se abrisse num sorriso parecido com o seu. Eu não li notícias de jornal, não fui ao banco trocar a senha do cartão, não abri meus e-mails importantes, eu fiquei o dia inteiro tentando escrever um texto azul, mas outras cores vieram e eu fiquei com palavras demais, todas azuis, sem suporte para tanto signo eu deixei seu nome escrito com giz azul dentro de um sol laranja na minha parede.

E esqueci o texto, a tese, os tantos, eu inventei um sol de raios azuis.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

dESAGUADOR - por Vinícius Linné

"[...] vai cair tanta e tanta chuva que será como se a cidade toda tomasse banho. As sarjetas, os bueiros, os esgotos levariam para o rio todo o pó, toda a lama, toda a merda de todas as ruas."
{Caio Fernando Abreu}


Quando ouvi o primeiro trovão, eu soube que você viria com a chuva. Viria de lugares mais sujos que este, viria a escorrer pelo calçamento, a desviar dos bueiros, a ignorar os pingos grossos de chuva e glosa.

E eu ouvi sua voz em mim. Antes de ver o carro, antes de ver seu casaco encharcado, antes de ouvir as batidas na porta. Eu senti seu cheiro. Antes que a chuva lavasse seu corpo, antes que as flores despencassem com o peso das águas, antes que as crianças corressem para dentro de suas casas. Eu senti seu gosto. Antes de provar da chuva na boca, antes de soprar o fogo dos ramos, antes de chupar a última bala de cereja madura.

Eu soube, quando os ventos dobraram as árvores, que você viria com a chuva. E soube, também, que você não partiria ao final dela. Soube porque toda água escorre para algum lugar. Soube porque aqui era o mais baixo a que você poderia chegar. Soube porque sempre foi em mim que você desaguou, deixando pó, lama e merda, como no conto do Caio. Como no conto do livro que você me escreveu.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

eLA -por Adilma Secundo Alencar.

Quantos desejos atropelados na pressa do cotidiano.Ela me deu três boletos de valores salgados,sábados vistos através de vidros devidamente higienizados,livros caros,mas tão bonitos,uma saudade de casa que me fincou identidade e vertigem de cigana.Ela me mostrou luxos que eu não terei e dores que o riso me livrou.Me mostrou também que dizer,às vezes, é mais bonito calando-se, e que se você não tem um coração bobo nunca poderá ser maduro o bastante para brincar sobre a grama no sol frio do mês de maio.Ela me mostrou que a justiça nem sempre é bem recebida e que há quem prefira cadeados e cercas.
Não foi simples,mas foi preciso aprender que a liberdade  é um parto e um estigma, que é o que se tem quando seu olhar se perde na imensidão das cores. Me ensinou que a família é um mundo que comove,enreda, que machuca e dá de comer.Ela me fez lágrimas coloridas no absurdo das guerras.Ela,a vida,chorou comigo essa beleza de caos que o corpo testemunha.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

a INVEJA DOS BEM-AVENTURADOS - por Vinícius Linné

O doutor inveja o lixeiro que passa. A despreocupação do canto, a limpidez do riso, o grito para o companheiro de caminhão, o assovio para as pernas brancas que passam. Ele queria aquilo. Aquela vida. Aquele cheiro que com o banho sairia. O doutor parece ter sempre o mesmo cheiro. A mesma colônia, o mesmo perfume que o banho de cada dia só repõe. Ele queria um cheiro azedo, penetrante, do qual poderia livrar-se no fim do dia.

O doutor inveja o trabalhador que volta da fábrica. O macacão suado, a testa suja, o celular tocando uma música popular qualquer, o sentido da vida exposto, tudo simples, tudo braçal, tudo bruto. Enquanto isso, o doutor ouve clássicos da música, refresca-se no ar condicionado, trabalha em complicados casos médicos e não vê sentido na vida que vê.

O doutor inveja o nordestino que vende redes. Os produtos expostos, as melodias das vozes, a possibilidade de viajar e foder mulheres alheias. A despreocupação, as viagens em ônibus velhos, cidade após cidade, a preocupação do dinheiro que não veio, a fome, o cachorro quente na esquina, quando dá. Enquanto isso, o doutor volta à mulher, aos filhos e à pose que o aprisiona durante o interminável jantar.

O doutor não inveja o sucesso, não inveja a complexidade do espírito, não inveja a fama. O doutor só inveja o que é medíocre e puro e cheira a ocre. O doutor inveja a única coisa que não é capaz de ter. A pobreza de espírito. O céu na Terra. A felicidade, enfim.