37.
Febre. Todas as noites. Uma
infecção de lugar nenhum. A médica a apalpar gânglios e glândulas. Nada. Talvez
sejam as amídalas, ela arrisca. Talvez.
Amoxicilina + Clavulanato de
potássio.
1 cp de 12 em 12 h.
A Amoxicilina é pó cristalino,
branco, de massa molecular 419,45 (isso é muito importante, me parece),
levemente solúvel em água, álcool metílico e álcool etílico; praticamente
insolúvel em tetracloreto de carbono, clorofórmio, éter e óleos fixos (para o
caso de você tentar dissolver os comprimidos em clorofórmio e não dar certo). Por
ser um antibiótico beta-lactâmico (e não tetra-lacônico ou hepta-lacaniano),
atua destruindo (microscópicas explosões dentro de mim!) a parede (demolições)
das células bacterianas, pois se une a uma grande variedade de proteínas
responsáveis pela síntese de enzimas que alimentam bactérias infecciosas,
deixando-as sem ação (petrificadas, mudas, hirtas, boquiabertas com o
assassinato em massa, o genocídio espectral que, de repente, começa, graças a
algo com massa molecular 419,45 e praticamente, praticamente, indissolúvel em
clorofórmio).
O Ácido clavulânico (utilizado
farmaceuticamente na sua forma de sal de potássio, chamado de clavulanato de
potássio) é um fármaco que age inibindo a ação das beta-lactamases (não das
hexa-Larousses, óbvio) que são enzimas responsáveis pela perda de ação de
algumas classes de antibióticos. O ácido clavulânico acaba funcionando como um
agente protetor do antibiótico (benditos escudeiros, dentro de mim, Sanchos
Panças em batalha), protegendo-o do ataque da bactéria resistente aos antibióticos.
Trata-se de uma associação medicamentosa que propicia uma ação combinada para
combater bactérias patogênicas resistentes (elas resistem. É dura a batalha).
38.
A bactéria atacada pela
amoxicilina.
A bactéria tentando atacar a
amoxicilina.
O clavulanato, galante,
impedindo
os ataques do segundo tipo.
Tudo dentro de mim.
Os corpos,
numa trilha de pus,
boiam
em lugar nenhum.
Dentro de mim.
Não eram as amídalas então.
39.
Meu sangue é vermelho e grosso,
como um bom sangue deve ser. Ele escorre para fora das veias com pressa e se
não fosse o algodão que a enfermeira rapidamente aplica sobre o buraco aberto
pela agulha, tenho certeza de que ele escorreria todo, empapando o chão do
hospital. Ele é ansioso. Ele quer ver mundo, ele mal se contém nos muitos tubos
de ensaio. Ele não é um sangue que queira ser esmiuçado, examinado, lido nas
palavras científicas dos homens de bem e de branco. É um sangue propenso a tragédias o
meu. Quer escorrer de preferência na rua. E aparecer no jornal.
40.
Em uma semana os exames ficam
todos prontos. Como se eles adiantassem. Como se a febre não subisse, a me
devorar. Toda ela vinda de lugar nenhum. É quando eu perco mais três quilos.
São quase dez já. É quando eu tenho, também, uma ameaça de convulsão.
Os exames
são mapas astrais. Só os iniciados sabem decifrá-los. A médica mergulha neles,
traça linhas, desenha retas, tira e coloca os óculos muitas vezes, como se isso
lhe ajudasse a pensar. Ela emite grunhidos de entendimento. Ela quer me dizer
alguma coisa. Qualquer coisa. Eu leio em seus olhos, ora com óculos, ora sem,
que ela ficaria feliz de me anunciar até qualquer morte prematura. Um câncer,
quem sabe. Qualquer tentativa de me diagnosticar, de me conter, de me explicar.
Mas meu sangue é feito para mais do que isso. Ele não me revela fácil assim. Ele me
pulsa forte nas veias quando escuta que os exames não mostram doença alguma.
Apenas, quem sabe, um princípio de anemia.
41.
ERITOGRAMA
RESULTADO VALOR DE REFERÊNCIA
HEMÁCIAS.........: 4,45 mi./mm³ 4,1 a 5,7 mi./mm³
HEMOGLOBINA......: 13,20 g/dL 13,5 a 17,5 g/Dl
HEMATÓCRITO......: 40,00 38,00
a 50,0 %
VOL. GLOB. MÉDIA.: 89,89 fL 80,00 a 95,00 fL
HEM. GLOB. MÉDIA.: 29,66 pg 26,0 a 34,0 pg
C.H. GLOB. MÉDIA.: 33,00 g/dL 31,0 a 36,0 g/dL
42.
A hemoglobina (frequentemente
abreviada como Hb (o que, para mim,
faz muito sentido)) é uma metaloproteína que contém ferro (indispensável em
qualquer guerra) presente nos glóbulos vermelhos (eritrócitos, caso você os
conheça somente assim) e que permite o transporte de oxigênio (tudo respira)
pelo sistema circulatório. Composta de 4 moléculas proteicas de estrutura
terciária e 4 grupamentos heme que contém o ferro, cada íon ferro é capaz de se
ligar frouxamente (com descompromisso, em um relacionamento apenas casual) a
dois átomos de oxigênio, um para cada molécula de hemoglobina. (As minhas se
descontrolaram então. Não há moléculas suficientes. Sobra oxigênio perdido. Ele não é
levado para lugar nenhum. É nesse lugar nenhum que me inflamou algo, algo que
nem a médica, nem os exames sabem dizer).
43.
Mas eu sei. Com a febre em 43
graus eu sei como chegar lá. É passando pelo buraco da Alice no muro. É atravessando
o caos das cidades desertas, todas elas explodidas na última hecatombe. É
seguindo pela devastação, pelo verde que agora violenta os prédios, os
shoppings, as lojas onde manequins de marca se atolam no inço bonito e
florescente. Eu sei. Eu sei atravessar as ruas desertas, olhando o céu com o
mesmo verde pálido que ele tem desde que quase tudo morreu. Eu sei olhar os
cervos de duas cabeças, bebendo nos lagos amarelados, sem me enregelar, fazendo até carinho no focinho dócil e dando a morder a outra mão por aquele que parece
vindo do Hades.
Mas eu sei. Sei cruzar sobre
corpos, desatolar minhas botas Sandro Moscoloni dos crânios putrefatos,
arrancando brincos de pérolas do solado, como se fossem tachinhas sem
importância e não o presente que Ludmila ganhou em sua festa de 15 anos no Gran
Palazzo. Eu conheço o mapa, a rota. Pela primeira vez, eu, que sou todo
desorientação, sei para onde ir. Sei de onde vem a inflamação, a febre, o
ladrão de Hemoglobina que vive dentro de mim. Sei onde fica aquela
casa. A de quartos trancados, de paredes mofadas, de janelas lacradas e de café
ainda frio, vertendo, em movimento eterno, de cima da pia. Eu sei que as samambaias, as mesmas
que jogamos fora, renascem no lixo, indomadas.
Mas eu sei. Eu sei porque quando
vou chegando perto ouço a música tocar. Um blues ainda mais triste só porque
contrasta com as gargalhadas das outras duas. Sentadas em suas malas, dentro de mim,
elas me esperam chegar para quebrarmos a porta da casa. Perdemos as chaves, todos os
três. Mas elas me esperam e riem. Esperam e me abraçam tanto quando eu chego,
que me sinto enfim amado. Amado pelo que eu sou: letras apenas. Letras aqui. E então eu compreendo que não há clavulanato nem amoxicilina que me
sarem. Não há hemoglobina que me defina. Para a minha doença não há nem causa, nem cura.
Há a
febre.
E ela é crônica.
Estamos de volta.