segunda-feira, 31 de outubro de 2016

nECROPSIA - por Simone Huck

Você mudou de pele, de casa, de casca. Você se mudou de mim.
Trocou os dentes, o couro cabeludo, a epiderme e as roupas que costumava usar todos os dias.
Você emagreceu. Limpou todas as suas palavras. Fez a barba. Costurou a boca. Trocou a cor da maquiagem e dos olhos. 
Você se livrou de mim.

Hoje você come menos e corre mais. Percorre as mesmas avenidas com nome de velhos marechais e tenta esquecer os diálogos que pichamos nos muros da sua cidade. A cidade não mudou. Você disfarça. Finge não ver. Finge não ler. Finge não lembrar cada vez que a música toca todos os dias, involuntariamente, dentro do seu ouvido. 
Você fez uma autópsia de mim.

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

a CASA - por Adilma Secundo Alencar

As dobradiças enferrujadas ressoavam a chegada de mais um dia chuvoso. Elas enfeitam a casa com as fotografias das viagens, pôr do sol, feira livre, mar, avião enfeitam as paredes da sala. A casa tem a alegria de seus paladares, dados às novidades do mundo. A cozinha é a festa das cores, panelas e talheres colorem o ambiente de azulejos azuis, imitando os azulejos portugueses, que na primeira vigem à Salvador elas viram a enfeitar o terminal marítimo.
Os livros, prazeirosamente lidos, encontram-se por toda a parte da casa: criado mudo, gavetas, estante, mesas. Um grande mapa do Brasil decora o parede do quarto, colorido de marca-texto rosa,ele guarda o itinerário dos caminhos percorridos juntos. A velhice é uma alegria como fora sempre o encontro das duas, cuidam-se com a alegria e o espanto dos versos orvalhados de Manoel de Barros. A cebola, o gengibre, a canela, o açúcar e o cravo são os cheiros dos feriados em que não viajam, durante horas a cozinha respira a ternura da mistura quente das ervas e doces. No quintal um imponente mandacaru se exibe soberbo em sua natureza bruta de espinho e verde. A rede laranja balança nas tardes ociosas. Quando é noite de lua cheia, as duas sentam-se na varanda e, ao som cadente dos afro-sambas de Vinícius, sentem o almíscar gelado e ardido que a ventania traz do mar.
Entardecem vendo o espetáculo das tarrafas abraçando o mar. 
A casa é um encontro, dos sapatos, das malas sempre prontas às novas descobertas de pedaços de mundo. 
Elas zelam a saúde da palavra e seus silêncios também são gestos ternos, horas no silêncio de uma rede,no encantamento curvilíneo do corpo. As manhãs se erguem soberbas de luz e calor, mais à frente o mar em todo o seu mistério e força agita-se brilhante como peixes miúdos dentro de uma rede.
A casa é mais que paredes e cores, ela transborda vida, elas sabem.

domingo, 2 de outubro de 2016

dOIS SÉTIMOS - por Vinícius Linné

Eu queria que você me amasse. Não a ponto de cometer loucuras por mim, mas a ponto de eu poder pensar que sim. Não a ponto de você entrar no primeiro ônibus, de madrugada, cruzar o estado todo e chegar aqui de manhã, só porque eu pedi por telefone. Mas a ponto de eu ter seu telefone. Porque assim, sem dizer nada, fingindo nem sentir, tudo que eu tenho por dentro me afoga à garganta. E eu fico como a mulher na foto.

Eu queria que você me amasse a ponto de eu poder lhe procurar só pra contar da mulher na foto. A mulher toda fodida na foto. Olhos de ressaca. Isso sim são olhos de ressaca. Ressaca de porre, sim, mas de mar também. São olhos que parecem a qualquer momento poder derramar. E derramaram. Logo depois de eu tirar a foto. Mas na foto ela ainda tem olhos inundados. Na foto, ela tem olhos de vaca indo pro abatedouro. E isso não é ofensa. É lindo. Ela é tão fodida que sabe do abatedouro. 

Foi a foto da mulher que me fez pensar em você. Mas só depois que eu deixei ela em preto e branco, pra revista, foi daí que os olhos brilharam. Foi como se eles estivessem esperando essa escala exata de cinzas para poder vir à tona. A mulher inteira veio à tona por esses olhos. As rugas, o nariz fino, as bochechas escavadas, a boca amassada.  Tudo no preto e branco fez mais sentido. O cigarro na mão dela ganhou outro ar. A fumaça se tornou um desfoque denso, nublando a cena inteira. O decote pregado de rugas, a alça de um sutiã aparecendo, o espelho de luzes, tão clichê com seus bicos quebrados.

Essa mulher, foi como se ela tivesse nascido pra foto, pro sentimento dessa foto. Como se ela tivesse vivido sempre em preto e branco, antiga e decadente, como num filme de Bertolucci. Essa única foto conta a história inteira dessa mulher, nem precisava de texto, de entrevista, de nada. Os boás depenados refletidos no espelho, as guimbas de cigarro derramadas do cinzeiro, a barata morta sobre a penteadeira, o whisky sem gelo, suspenso no ar, e a dor naquele rosto, a dor pura de encarar a própria vida e parar de fingir. A dor de assumir que é tudo só um abatedouro. Essa dor, cara, ela vai ficar doendo em mim.

Se eu tivesse seu telefone, esse seria o tipo de história que você gostaria de ouvir. O tipo que nos faria ficar acordados a noite toda, mesmo se você não pegasse ônibus nenhum. Mesmo se eu não disse, mais uma vez, o que eu sinto. Não a história da mulher, que é tão clichê quanto ela, mas a história dessa foto. Do que eu consegui capturar ali.

Você sempre me disse que eu havia nascido para isso, para fotografar. Que eu ainda ia ficar famoso e ter exposição só com o meu nome. Quando eu vi a foto dessa mulher, eu quase acreditei. Quase acreditei em você e na sua mania de me ver em um futuro bom. Depois tudo passou. A realidade veio, o salário de merda, a revista que não serve nem pra recolher cocô de cachorro. Essa foto, esses olhos, tudo se perdendo entre receitas de dieta e inaugurações idiotas. E eu me perdendo também, entre nossa distância e o silêncio do que eu deixei de dizer, entre o arrependimento e a certeza, só agora, do que eu sinto por você.

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uM SÉTIMO