quinta-feira, 30 de maio de 2013

as PERAS também esPERAm - por Simone Huck


Sei que vou morrer antes de você chegar. Já se passaram tantos anos. Ainda espero. Ontem a noite, mais uma vez, fechei os olhos e seus passos pesados invadiram o assoalho da sala. Só os seus passos fazem a madeira ranger assim. Você tem um jeito pesado de andar. 

Na geladeira, peras maduras esperam pela sua boca. Sei que será a minha, mais uma vez, a comê-las no seu lugar. Eu não desisto, nem as peras desistem de você. Nossas bocas confundem qualquer tipo de fruta. Outro dia abri a geladeira, coloquei todas as peras enfileiradas na mesa e fiquei falando de você. Agora elas sabem exatamente o gosto da sua língua, o som da sua voz, o doce do seu hálito. Esperamos com avidez que a sua boca adentre a casa e a geladeira. Todos nós sabemos que você jamais chegará antes de morrermos. As peras morrerão antes de mim. Há uma certa ordem no caos da morte.

Ontem de manhã choveu. A chuva molhou o jardim. Peguei um pano e fiquei secando as flores. Ousei secar a chuva enquanto te esperava chegar. Sou pretérito perfeito que aguarda. Falei de você para o jardim. As flores brigaram comigo, não aprovaram minha honesta espera. Disseram que fidelidade tem prescrição, validade e durabilidade. Não entendi nenhuma dessas três palavras quando se trata de você. Nada disso se aplica a você. Muitas coisas não se aplicam a você.

Pintei outro quadro essa tarde. Ficou tão bonito. É colorido e denso como você. Espesso, grosso, com nuances opacas e gêmeas. Há pedaços seus tão iguais no mesmo lugar. Há pedaços distintos. Mistura de branco e preto. Tudo e nada. 
Você nunca esteve em nada. Nunca esteve aqui. Sempre soubemos. Você ainda não sabe quem é. Nem pra mim. Nem pra ninguém.

Sei que vou morrer antes de você chegar.
Ontem à noite, antes de dormir, descobri uma música nova na rádio da Palestina. Estamos todos em infinitas guerras. As estações do rádio, a Palestina, eu e você. Sorri e fiquei ouvindo, repetindo, repetindo, repetindo aquele novo som até dormir. Você teria gostado tanto de ouvir essa música nos meus fones de ouvido. A Palestina talvez dormiria em paz assim. 

Antes de apagar a luz, subi na escada e beijei a lâmpada quente do teto do quarto. Parece que a sua imagem está ali dentro daquela lâmpada, querendo atravessar com sua lança, o raio de luz. Você se parece tanto com a imagem de São Jorge, seu protetor.

Somos apenas imagens. Estados gasosos que serão dissipados pela urgência da espera.
Acenda a luz quando você chegar...

("as PERAS também esPERAm" foi publicado em 29 de novembro de 2012 aqui, no febre CRÔNICA.)

terça-feira, 28 de maio de 2013

aUSÊNCIA - por Adilma Alencar.

Os lírios se abrindo em neons escarlates madrugada adentro, sutiã, perfume, mel e desespero.
Última madrugada nua em braços alheios, sem culpa e sem amor, o caos fotografando minha palidez cristalina.
Mulher é uma palavra aberta.
Fez tranças nos meus cabelos, suas mãos eternamente trançam, fazem nós, desfazem nódoas que o mundo cingiu. Suas raízes lançaram terra em cada gesto que se seguiu, em cada gesto diário de tentativa de amor.
Todo o meu silêncio é um prato de comida, é domingo de manhã. É raio.
Não há solidão, o que violenta meus sentidos é sua ausência na minha cama, no meu café preto de madrugada, na procura burra de minhas mãos.
Há meu pranto nos poemas de amor, leva meu corpo para servir sua eternidade, não há um traço, um risco, um vinco no meu rosto que não signifique seu meu amor.
O primeiro frio que me recebe à porta de manhã, a pressa, o prazo.
O amor é essa eminência triste e doce de romper de lágrimas absurdas.

Meu mundo berra rouco, largo, é um touro perdido. Vingo sua ausência profanando a beleza das manhãs que não lhe dei, morrer é absurdo. Seu amor plantado em meus nervos é cor primeira de tudo que pulsa. O gosto do seu umbigo é horizonte macio do corpo em gozo. Renuncio à estupidez. O amor é maior que arapucas do medo.

segunda-feira, 27 de maio de 2013

aCEITAÇÃO - Por Vinícius Linné


A dor é uma sensação. Quem disse que é ruim? Não é. Não se você se convencer disso. Se você decidir senti-la até o fim. Não é você quem vive dizendo que quer colecionar sensações? Comece, então, pelas suas dores todas. Desde aqueles cortes agudos no braço até o dedo trucidado pela máquina de moer. Desde a solidão de um domingo à noite até o fatal término do casamento.

Dor.

É mais fácil se você aceitar. Se você a vivenciar como sendo parte do que existe e do que não pode ser evitado. Diga: "É dor, eu sei" e a deixe doer. 

Não digo para você desejar a dor, para causá-la... Não... isso seria doentio. Digo apenas para que aprenda a conviver com ela. Que não coloque compressas e emplastros anestésicos tão depressa. Deixe doer. Observe como é belo o sangue vermelho pingando sobre os azulejos brancos. Veja o quanto é lindo seu rosto franzido, sua lágrima translúcida, seu afinado gemido. Conte em quantos cacos se faz uma alma, quebre os maiores, bata seus próprios recordes, se desfaça em pedaços cada vez menores. 

Há outra opção? É possível desvencilhar-se? Fingir que não dói? Mudar-se para um país em que nada jamais doa?

Não é. Aguentar é tudo que resta, então. Aguentar enquanto as agulhas entram no seu corpo. Enquanto as facas caem nos seus pés. Enquanto alguém arranca sua unha da pele. Enquanto ninguém responde ao seu e-mail. Enquanto os dias passam em branco. Enquanto você queima os próprios sonhos. Enquanto desiste de se fazer entender. Enquanto desata laços e nós. Enquanto se desfaz de quem se desfez de você. Enquanto percebe que não doer é em vão...

Dor... É só uma sensação... e vai passar. Você sabe que vai. Aguente, por enquanto.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

o EXCREMENTO - por Simone Huck


CAROS LEITORES:

A colunista SIMONE HUCK estará por um pequeno período afastada do blog, enquanto isso, republicaremos alguns textos antigos de sua autoria. Pra quem ainda não leu, aproveite.

 Rastros, 2011 - Simone Huck

Ela seguia fria, seca e cada vez mais gorda em seu ofício de alimentar-se do passado.
Acho que era ela dois meses atrás, ainda magra e filha, subindo por alguma das paredes do meu úmido quarto. Naquele dia eu tinha tanta urgência que nem poderia perder tempo acertando-lhe um chinelo. Tudo me era sempre ontem. As coisas habitavam uma pressa, uma inóspita ausência de tempo para o que eu não via. Deve ter sido num desses momentos, em que também não percebi, que o amor que eu transpirava também trazia essa certa urgência e talvez parecesse - “vazio” – retrucou ela, antes de fazer as malas e sair pela porta cinza. Somos previsíveis no erro. Desconhecidos nos acertos.

Tenho pensado em quase tudo. Tenho habitado um quase nada.
Há dias que encontro alguns cinco minutos entre um trânsito e outro para pensar um pouco além de mim. Revejo sombras. Engulo espectros.
Escrevo um pequeno poema em minhas unhas, levo o dedo até a boca e a saliva limpa a tinta. A garganta engole os vestígios. A ausência omite o medo.

Poucas coisas me espantam. Apenas ela, gorda, alimentando-se das minhas lãs esquecidas num fundo de uma gaveta morta conseguiu me fazer parar e pensar. Será que as traças engolem o passado? Qual a forma de um excremento frio e cinza, cujo nome é “passado”?

Mastigo o canto das minhas unhas enquanto penso em desistir. Há uma forma de sabedoria na desistência. Olho a sua nova fotografia e penso: eu faria melhor. Minhas presunções precisam de algumas traças, eu sei. Assim como a sua cegueira, aquela que mastigou um damasco, arrotou e depois foi pendurar nossas roupas no varal. As futuras roupas que um dia serão o passado da minha gorda amiga traça em seu ofício de limpeza.

"o EXCREMENTO" foi publicado em 19 de julho de 2012 aqui, no Febre Crônica.

terça-feira, 21 de maio de 2013

cOR - por Adilma Alencar.


Esse ano ele prometeu para os amigos que teria mais tempo para o chope, a conversa, o futebol. Mentira.
Andava triste, mas era só por dentro, ele comprou um carro novo, foi promovido, saiu com a amiga do trabalho, a mais gostosa, falavam nos corredores, assim como falavam da sua fama de galanteador.
Do seu apartamento, apreciava a vista bonita da avenida cara de morar, para ele aquela beleza escorria na solidão de uma saúde boa, na solidão dos bons vinhos, nunca amara.
Numa segunda- feira fria, de tempo seco, seus olhos esqueceram os sinais e por pouco o carro vermelho, que buzinava incessantemente atrás de seu importado, não o atingira. Foi nesse dia de dispersão que ele chorou o medo de que a solidão de todos os objetos belos furassem seus olhos.
Quis pousar seu corpo numa teia que inflamasse mais fundo, para que pudesse dar às cores da manhã um nome mulher, um nome de homem, o corpo é a ponte, ele sabia.
Sentiu medo de estender as mãos, pois não era só o corpo pronto em sim que ele oferecia, oferecia todas as estrelas que já contara, todo luar, todo o seu pranto.
Descobriu ao acaso, uns dirão, que É milagre enviesado em nervos.
Nada foi mais bonito e dolorido quanto o pranto desse homem nascendo

segunda-feira, 20 de maio de 2013

vOCÊ - por Vinícius Linné


Às vezes você volta.
Nas sombras do inverno, na neblina que encobre as árvores e nos cantos longínquos dos pássaros de mau agouro. 

Às vezes você vem.
Aos chumaços, sem percalços, inteiro de novo e pronto pra mim.

Às vezes você se faz sentir.
Na ausência à mesa, no silêncio da casa e na chaleira que chia sozinha.

Às vezes você me chama.
No voo interrompido de uma mosca à vidraça, no papel das balas que açucararam na gaveta e nas notas musicais do disco que não toco mais.

Às vezes...

Às vezes você me olha.
No reflexo. Sempre no reflexo. Você me olha e segue adiante, ainda incapaz de me ver.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

aquela DIARISTA FILHA DE UMA PUTA - por Simone Huck

Amélia, uma contemporânea mulher de verdade, abriu os olhos e não estava em seu quarto. As costas doíam. Os pés estavam naufragados em meio à talheres sujos do último jantar. Sentia cheiro de restos de cebola e óleo. O teto, que não era do seu quarto, estava amarelado e úmido. Acordou em cima da pia da cozinha ao lado de um exército invencível de pratos, talheres e panelas sujas para lavar. Não era possível. Mas também não era miragem.

Era casada com Acácio - que de inocente não tinha nada - e que saía de casa logo cedo, garantindo a grana para manter todos vivos. Ponto. Tinham três filhos. João, Pedro e Tiago. Além de sete gatos com sete vidas cada um e que, se somados à vida de Pedro, João e Tiago, seriam dez seres com sete vidas. Fez as contas mentais e chorou com a estimativa de setenta longas vidas repetindo, repetindo, repetindo. Dez vezes sete significava mais pia. Mais louça. Mais cebola e óleo. Menos ela. Amélia não tinha um tempo para chamar de seu. Chorou na água suja da pia entulhada. Sua lágrima caiu em cima da bola de óleo podre que boiava, formando um coração que se desfez rapidamente. Ironias da visão. Fúria heterogênea. Onde estava Mabelle? - que de querida não tinha nada.

Mabelle era descolada. Tinha carro e facebook. Mascava chicletes e sempre que ia guardar um livro na estante da patroa, vasculhava algumas páginas até encontrar os grifos e lia, relia, tentando decorar. Sonhava ser culta como Amélia. Era empregada diferenciada, o que chamou a atenção na hora de sua contratação. Amélia imaginou que ela poderia ajudar com João, Pedro e Tiago - que de discípulos não tinham nada - os gatos, a louça e as cuecas de Acácio. Assim, Amélia, que acabara de lançar um livro sobre arte chinesa por uma editora bacaninha e renomada, poderia viajar pelo Brasil todo divulgando seu trabalho. Nas horas vagas, ela era professora de história da arte. Em todas outras, era dona de casa, esposa, mãe e ainda alimentava gatos, cachorros, passarinhos e qualquer forma animal de vida que lhe pedisse socorro. Mabelle era a solução de todos os seus problemas. Ela dirigia. Tinha seu próprio carro. Sua independência seria a alforria de Amélia para o mundo. Fim dos navios negreiros. Santa Princesa Isabel. Com certeza, ela também teve uma Mabelle para ajudar com seu império.

Naquela manhã, porém, Mabelle não apareceu. Desgraçada, maldita, vaca, filha de uma puta. E agora? A louça, a casa, a pia, as lancheiras, a escola, os rascunhos, a agenda, o skype com a editora. E agora? E agora? E agora? Não havia eco. Nem resposta.

Não pensou duas vezes. Vacas merecem um pasto. Mabelle não poderia jamais ter feito isso com ela. Ainda mais depois de ter lido Feliz Ano Novo. Rubem Fonseca tinha razão. Agora Amélia sabia de onde vinha àquela satisfação sangrenta. Sorriu.

Afundou as mãos na pia suja e na água imunda. Achou a faca de cabo branco. Trancou as crianças em casa e disse que voltaria em quinze minutos. Entrou no carro e foi até a casa de Mabelle. Apertou a campainha enquanto a empregada mentirosa olhava pelo olho mágico tentando pensar rápido numa desculpa esfarrapada. Abriu a porta e Amélia nem precisou ser convidada, já estava dentro da casa.
Nem deixou Mabelle falar, abriu a boca e com tamanha satisfação gritou sua vaca, sua vaca, sua vaca inúmeras vezes. E quanto mais gritava, mais apunhalava Mabelle - cujo nome significava minha querida.

Juntou todos os pedaços de Mabelle em vários sacos. Uma vaca merecia morar no pasto. Ponto. Nessas horas, ficava feliz por morar em Presidente Prudente, um local afastado, próximo de várias fazendas onde a pecuária de corte tinha tradição nacional. Na estrada dezesseis haviam vários pastos. Deixaria ali, pedaço por pedaço da vaca maldita que colocou seus planos por água a baixo. Água suja, repleta de louças.

Espalhou Mabelle pelos pastos como pétalas ao vento. Não sobrou um fio de cabelo. Voltou para casa aliviada. As crianças estavam jogando vídeo game na sala e nem notaram quando ela entrou. Foi até sua mesa de trabalho e dentro do seu livro, o que está fazendo sucesso no Brasil todo, pegou a lista de candidatas. Gostou de Gabriela, cujo nome significava a enviada de Deus. Não dirige. Não tem facebook. Não masca chicletes. Só cursou o primeiro grau e colocou uma observação enorme no final do curriculum “farei qualquer coisa para ter uma patroa para chamar de minha”. Amélia sorriu aliviada. Agora teria tempo para ser uma professora com um livro de sucesso.

terça-feira, 14 de maio de 2013

aVELÃ E MARGARIDA - por Adilma Alencar.


Ela disse sim, decidiu tentar, há mais de um não que não aceitava um convite.
Os primeiros gestos tão gentis, a avenida vazia, a cidade sem fim, o desejo aceso. Acelerar o carro e despir fantasmas abraçados à cintura, acelerar.
Às três da madrugada, na cozinha estranha, matava a sede e morria de fome. Sentou no chão, amparada ao fogão, estirou as pernas.
Uma bomba silenciosa no estômago. A pele fria que dançara no sereno daquela noite, que roçava mentiras em gestos languidos, a mesma pele, agora, chorava, era açude de sertão, era açude esperando anunciação.
Cisma de um amor sem remédio, de um tempo que não escorria, insistia em voltar cada vez mais nítido.
Soluçou baixo, engoliu algumas verdades, aceitou a fome, se entregou ao cansaço.
Manhã. Uma fresta de sol aquecia os seios nus, o vento frio e o som da cidade acordaram a preguiça comum, que dividia a mesma cama. Ela se encontrou apertada entre braços quentes, abraçava também, como se um abraço pudesse alimentar a fome adormecida, pudesse enfim, a vontade ser maior que o medo, e o afeto vencer a rotina de desacreditar.
Avelã, geleia de amora, discos do Lupicínio, isqueiro amarelo, sapatos marrons, leite.
Bebiam leite frio, comiam bolachas de gergelim. Corpos em pele, olhos luzentes em caras amassadas.
O dia fuzilava de amor, a sala iluminada era tomada de um calor tímido. A nudez tão natural como a fome, não incomodava, era ingênua como tem de ser, era rotina do corpo o susto do sexo, era angustia da alma a falta de morada do desespero.
Ela estava feliz, porque pés descalços e abraço de manhã eram coisas caras à moça.
 É de outra tessitura o enredamento de seus dias comuns. É de alegrias sutis: comprar um bom livro de poesia, conversar com amigos que ainda sabem chorar, ter uma palavra nova pra dizer de dores ancestrais, ouvir música o dia inteiro e reparar nas nuvens.
Ela é mulher doce, é frágil e pode matar com uma sentença de silêncio e ausência. Às almas rasas de sentido e cegas de desejo, reserva a sua piedade. Ela se sente ofendida por palavras órfãs de bocas humanas, palavras de quem já deixou de ser e virou vazio, coisa oca.
Era doer e amar, era doer e sangrar, não via outra forma, ela não sabia colher flores sem amor, cozinhar sem afeto e passar batom rosa domingo de manhã.
Seu amor beirava a loucura, certa vez comeu margaridas para sepultar uma amizade minguada, para encher a barriga de pétalas e os olhos, de culpa branca e amarela.
A manha desfalecendo seu corpo, o instinto sustentado sua vitalidade e a imensa fome, a fome sem nome em guerra com as unhas que crescem, com a luz que atravessa seu dia, o seu dia no mundo.
Ela vai e não volta, é de tanto amor que tem.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

ELEGIA À coragem - por Vinícius Linné


Falam da coragem. Coragem de abandonar. Coragem de recomeçar. Coragem de mudar. Coragem de partir. 

Besteira.

Partir é um eufemismo para a fuga.

Coragem é permanecer.

Coragem é tentar implodir o erro. Coragem é construir-se com madeira de demolição, erguer peça por peça do que ninguém mais quis. Coragem é ver-se no espelho e não desandar, encontrar a arma e não usar, ver a armadilha ali e não desviar.

Coragem é descobrir o porão, é se equilibrar entre o que precisa ser dito e o quanto se precisa comer. Coragem é ignorar a dor nos joelhos e continuar em pé, a bendizer o vento que acompanha cada golpe de chicote.

Coragem é continuar escrevendo, mesmo na máquina enferrujada, mesmo nas pontas afiadas, mesmo na falta de fita, mesmo na falta de folha, mesmo na falta de quem leia e diga que sim, que você escreve.

Coragem é não deixar ninguém ver quando você se derruba e chora.

Coragem é não deixar ninguém saber que você só queria ser covarde.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

a ÚLTIMA SANTA CEIA DAQUELAS MULHERES - por Simone Huck


"Guernica", Pablo Picasso

Os aviões saíram da ilha no começo da noite. Camuflados. O batalhão não sabia qual ordem seria dada. Inúmeros inocentes no caminho das bombas. Alguns culpados morreriam. Sou um comandante covarde. Não sei quanto tempo demorei, dentro de mim, para tomar a decisão. Nunca acreditei na vitória dessa guerra. Engulo estratégias febris. Há quatro meses não durmo. Rabisco o teto do quarto com pensamentos sem esperança. Deus não acende a luz desse escuro. Talvez nossa trincheira esteja rasa demais.

Ela está emagrecendo velozmente. Pele, osso e olhos verdes sentam à mesa para o pedaço de pão. A ceia é farta, o corpo não. Nossa vida tornou-se uma agenda sem mês, ano ou fim. Dia de cirurgia. Dia de quimioterapia. Dia de controle. Dia de retorno. Dia de ausência. Dia de pequenos sorrisos. Dia de não morrer, ainda. Fecho os olhos e lembro quando ela me alimentava fazendo aviãozinho. A vida era mais fácil. Eu não sabia. Não havia espaços insalubres.

Meus soldados estão com fome. A noite não consegue amanhecer. O inimigo caminha na perpendicular da minha estratégia. Alimenta-se de sangue, linfa, mitocôndrias, cromossomos, macrófagos e proteína. Sou um comandante pendurado no arame farpado da própria trincheira. Os soldados me emprestam esperança.

Ela aperta o canto da boca seca e me pergunta qual caminho a droga percorrerá em seu corpo. Conseguirá atingir todos os alvos? Em poucas horas me tornei uma analista de mentiras sênior. Conto que tudo ficará bem com tamanho convencimento que nem o diabo duvida. Ele apenas sorri sarcástico, enquanto os anjos da cabeceira da cama dizem amém. Todos estão no quadro da última santa ceia. Quando terminar o vinho e o pão, cada um sacará sua arma, arrancará sua máscara e tudo será uma história contada, repleta de fins que não acredito. Mais tarde, anjos e demônios autorizarão suas guerras.

Divido os soldados em batalhões. Tenho medo do confronto. As noites são frias e lentas. Os dias são velozes e secos. Não confio em nossa infantaria. Como o inimigo me surpreenderá? Os meses se acumulam em pés cansados. A guerra durará muito tempo ainda. As fotografias que trago no bolso mostram que um dia estivemos felizes. A ilusão beija minha boca. 

Assino mais um termo de consentimento. Nunca fui tantas vezes responsável por ela. A droga entra pela veia do coração. No átrio direito encontra amor. No átrio esquerdo, medo. O septo interatrial organiza as emoções e o batalhão de defesa. Nada se mistura. Ela continua com olhos verdes que me olham. Meus olhos estão vazios. A droga ficará quarenta e oito horas sendo injetada em seu corpo por uma bomba de infusão. Nossa artilharia está pronta. Tenho medo do comportamento inimigo. O câncer é inteligente. Sou apenas um ser humano incapaz de salvá-la com minhas mãos.

Não sei quem morrerá primeiro. Eu, meus soldados ou ela. Sou um comandante sem o mérito das medalhas.  

terça-feira, 7 de maio de 2013

sEREIA - por Dilma Alencar.



De repente lágrimas.
A voz cadente silenciou, e foi brisa, foi vento nas águas de um rio calmo de manhãzinha.
Eu senti vontade de cuidar de seu soluço de mulher, de significar suas tatuagens, e acalmar esse seu medo escondido nos traços que seu erotismo insinua. Como se afoito no desejo que o impulso encerra meus olhos não acompanhassem seus símbolos na pele, no corte do cabelo, na carta de tarô, nas coisas que eu sinto, como se não soubesse do perigo de estar perto, eu sorri.
A avenida em frente ao bar enfileirava carros apressados, motoristas apáticos, angustiados diante da luz da cidade. Eu, entre gestos e risos, interrogava seu desejo, porque eu já não posso com estrelas cadentes.
Como eu direi todas as palavras que estão agoniadas no silêncio? Se depois de ditas desenham nós nos passos tortos do que queremos.
Teus ais líquidos nas noites de festas, teu som de maré, teu canto é sina de sereia perdida.
Quem navega sente.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

sUBLIMAÇÃO - por Vinícius Linné


Sarah tinha medo de enlouquecer como a mãe. A mãe que deixara a casa vazia quando Sarah era ainda uma menina. A mãe que ela chamara sem parar quando chegara da escola. A mãe de malas prontas, cadernos cheios e amante de cartola preta.

Era com medo que Sarah olhava para o filho pequeno, para o marido concreto, para a casa sólida e para o extrato do banco. Ela tinha medo que nada daquilo bastasse, assim como não bastara para sua mãe.

Ela tinha medo de palavras como abstrato, subjetivo e coração.

A casa de Sarah, por isso, não tinha canetas. Nem lápis, nem computador, nem máquina alguma que permitisse escrever. Sarah tinha medo de ser acometida pela mesma loucura da mãe. Sarah tinha medo de, de repente, fazer uma poesia.

Bastaria uma poesia para tudo se perder. Para a ordem deixar de existir e para nada mais bastar. Para a mãe de Sarah não tinha sido assim? Ela não trocara a vida segura por um punhado de rimas e sonhos? Ela não fugira com o amante de cartola para ser poetisa em algum outro lugar? Para escrever, para publicar, para ser lida... Não fora assim?

Fora. A mãe, louca, decerto em alguma esquina vendendo seus livros, gritando poemas a quem passasse, sendo gozada e servindo de chacota a uma cidade inteira qualquer. Sarah tinha que evitar isso. Por isso os papéis racionados, só usados para o essencial. Por isso nenhum caderno na casa, nenhum bloco, nenhuma folha em branco,  nenhum guardanapo que pudesse ser escrito.

Por isso a frustração de Sarah. Por isso o rancor nos olhos azuis. Por isso a rispidez, a dureza da boca, a mesquinhez na fala. Por isso a vontade de ferir todo mundo, por isso a insistência em não ver beleza em nada, por isso a loucura. Por isso a loucura de Sarah, pelo medo da loucura da mãe, aquela de ver poesia na vida.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

quem AMO - por Simone Huck


Quem amo não estava no berçário no dia em que todos os homens nasceram. Quem amo não atravessou o portão da escola no primeiro dia de aula, com mochila vermelha e medo. Não esteve na colação de grau da turma de filosofia. Quem amo ainda não me beijou. Não me congelou.
Não tem olhos, boca ou mãos. Nada fala. Nada vê. Nada escuta. Quem amo dormiu com o impossível e ainda não acordou.