quinta-feira, 27 de setembro de 2012

sAUDADE soterrada - por Simone Huck

Algumas memórias cheiram mofo, não há como evitar. Minha saudade particular não existe para os meus irmãos. Somente eu cresci naquela humilde casa, talvez, minha saudade nem alcance meus pais. Enquanto eu crescia com a única obrigação de absorver tudo, eles trabalhavam exaustivamente para comprar um lugar melhor para morarmos. A mãe costurava, o pai, projetava. Sonhavam uma casa de concreto, fria e grande para a chegada dos meus irmãos, enquanto eu, nasci naquele palácio secreto, com um quintal grande repleto de árvores, terra e histórias; capaz de abrigar meus maiores delírios infantis. Eu sempre tive sorte. Até em ser a primeira a abandonar o útero da mãe e ganhar o mundo naquele lugar que a minha memória evoca. Algumas luzes sempre estarão acesas pelos corredores escuros da alma. 

A lembrança é uma realidade inventada, não existe mais. Nem eu existo mais. Nem a casa, nem o tempo, nem meus pais. Estaciono o carro na rua onde cresci. Tudo era mais largo, haviam tantas casas. Onde todos foram parar? As árvores também fizeram as malas, partiram num dia em que não pude perceber. Abro a janela do carro, minha casa está soterrada debaixo de um prédio de vinte e cinco andares. Dos escombros, minha lembrança é um fantasma. Ali, debaixo daquele edifício, grita a casa que me fez. Está o quintal de terra, as árvores, o portãozinho branco de madeira decorando a entrada e um chão vermelho, onde minha mãe ajoelhava para encerar enquanto eu, sempre mais menino, empinava uma pipa do lado de fora. Ela ajoelhava para limpar. Hoje ela ajoelha para existir. Havia um tempo remoto apagando nossas crenças. As minhas e as da minha mãe.  

Do nada que restou gritam lembranças tomadas por um novo edifício. Já não reconheço quem sou. Também perdi a casa da minha infância. Diante dos meus olhos formam-se duas imagens; passado e presente deram as mãos mas não tornaram-se amigos. Do subsolo do prédio, as unhas da casa soterrada cravam a pele da minha saudade. A vida é um deserto sem a mínima chance de água. Morreremos sem nossas sombras.

Desço do carro e insisto na busca. Quisera ter uma pá capaz de desenterrar minha casa e enterrar o prédio. Os desabrigados dos vinte e cinco andares se uniriam a mim. Não haveria solidão se dividíssimos saudades. 
Fecho os olhos e os meninos e meninas gritam. Minha intenção veste azul mas não consegue me salvar. As mães pegam os piolhos das nossas cabeças. Os pais tentam corrigir a lição de casa enquanto a gente só queria fugir pra rua e começar a corrida nos carrinhos de rolimãs. Toda sexta-feira era dia de ficarmos até mais tarde na rua. Fazíamos corridas, competições. A meninada gritava. Os pais pediam para falarmos mais baixo. Quem obedeceria? Nossos joelhos eram marcados pelo asfalto. Nossas mãos, marcadas pelo alto das árvores. Havia urgência e cor em nossos gritos. Debaixo das minhas unhas ainda está o giz das amarelinhas brincadas naquela rua. Com os olhos fechados diante do cemitério da minha casa, uma procissão de fantasmas carrega minha memória enquanto não consigo desenterrar infâncias.

Uma lágrima escorre dos meus olhos. O chão que a recolhe é outro. Estou em outro país. Não há fronteiras amigas. Não vejo abrigos noturnos.

Os portões do novo edifício se abrem e os meninos entram em bandos, vindos da escola. Um deles se separa do grupo, vem chutando uma bola, parece querer mais rua. Olha para mim, ali, chorando parada na frente do  prédio e pergunta: “se eu te der a minha bola, você joga comigo e para de chorar?” Eu pergunto se ele mora ali. "Sim, aqui é a minha casa, você também mora aqui?" Moro, mas a minha casa está debaixo da sua. "Qual é o seu apartamento?" Não moro em um apartamento, moro na casa do subsolo. Ele não entende nada. Sorri, joga a bola nos meus pés e me pede para chutar. Quer ser goleiro quando crescer, eu, só quero fechar os olhos e acertar o chute no gol da minha infância, aquele, que montávamos na rua para ver o tempo passar. O tempo que não sabíamos, soterraria tudo tão rápido que não mais nos reconheceríamos.

Do outro lado da rua os meninos gritaram: GOL. 
Brindo uma pequena paz.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

dÍVIDAS - por Dilma Alencar.


As rugas de minha mãe anunciam as minhas. A distancia é um equívoco. Sua voz trêmula abre sua imagem: sentada num tamborete ao lado do telefone, eu sei o que ela chora. Uma mulher simples chorando sua solidão, a casa grande chora os filhos que são outros, são do mundo. Nenhum deles está para lhe lembrar de tomar os remédios, para lhe defender dos vendedores de placebos. Tantas camas arrumadas esquecidas, meu pai ainda traz flores simples da roça, mas eu não estou. Vez outra ele me fala ao telefone e sempre acha que estou rouca. Eu, no concreto oscilando entre uma anunciação e uma passagem de ida, as orações de mãe são as únicas que eu respeito, porque nelas há fé, seus olhos tristes de repetidas partidas merecem minhas mãos em amor. Falho nas escolhas, me falta seu colo e seu jeito de me explicar que a vida não é assim. Nunca soube explicar meu amor, era tanto, tão vasto, que eu virava enchente, minha mãe não sabe o quanto amei, mas soube das farpas que eu lentamente tirei do peito. O tempo nos evidenciou os erros, os meus ais querem sua palavra, ela precisa dos meus olhos calmos que ela, inocente, pensa ser olhos sábios, ignora meu desespero, ela já tem tanto para chorar, eu lhe poupo a dor, lhe digo o quanto há de vida para que ela se alegre, ela acredita, e juntas tecemos futuro, casa, quintal. Ela ver netos crescendo enquanto meu pai faz carrinho de boi e ensina como ele brincava e como todo mudou. 
Compro passagens para um tempo outro, sinto que já não estou, olho meus sinais no umbuzeiro, na telha, na cabeceira da cama e choro uma menina que morreu, uma mulher nasce com vigor, com força, com cinzas dessa menina que já não está, as mãos enrugadas de minha mãe acariciam o rosto dessa mulher, miram a menina, a menina. O que eu fiz da menina?  Foi preciso uma mulher, uma mulher para cuidar de uma mãe, pois na menina tudo era vento e flor, na mulher tudo é grave, tudo é fundura.
A mãe, o pai, a mulher. Vivos e juntos, dividem o teto com a saudade da casa cheia.
O tempo arranha uns sonhos, desvia o desejo, os laços, vínculos de sangue, de seiva. A substância cresce no meio do caos, volto ao estado de inércia de onde o mundo se repete em mantra e amor, em manto e fogo.  Minha falta, me envergonho dos dias ausentes, das coisas que não vi crescer, das conversas que não ouvi, de como não lhes disse que quase casei e comprei imóvel. Eu não vi a troca do piso, não vi que construíram mais uma igreja na rua, estive ausente. O tempo fez espaço longe, meu tempo de primavera ninguém viu, meu inverno se fez silencioso, nunca gostei de alarde. Entre corações magoados e coisas ditas o amor segue mudo, e hoje, com passagens compradas, ainda há dúvidas e dívidas!

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

camiseta AZUL - por Vinícius Linné


O apartamento todo estava cheio dele: o cheiro, a voz, o corpo se derramando lânguido pelo sofá. Ela tinha outra saída? Não tinha. Sorvia-o sem pressa, bebendo-lhe a boca, enquanto as mãos procuravam, desencontradas, colocar fim àquela roupa.

A primeira peça a voar foi a camiseta. Azul.




[uma semana]




Os passos eram perdidos. O apartamento era inteiro vazio. Com se não existisse mais nada, só os ecos do corredor. Nada dele nos armários, nada dele nos roupeiros, nada dele em cima ou embaixo da cama.

Os homens carregaram ontem tudo que era dele. As roupas, os sapatos, as meias que ele insistia em perder de par em par. As cuecas novas, as cobertas herdadas, até o computador, tudo que era dele saiu em caixas.

Nada ficou. E é como se, sem ele - e sem as coisas dele -, o apartamento esvaziasse totalmente. Como se a vida dela fosse conduzida a uma espécie de limbo permanente. Onde tudo é branco e nada é paz.

Deitada no chão, ninando a separação, ela vê um trapo atrás do sofá. Vai até lá e ajunta. Mas não é trapo. É a camiseta dele, que ficou como sobrevivente de guerra. O mesmo cheiro. O cheiro que ela tentava evitar quando jogou pelo ralo os perfumes todos. Agora é como se ele voltasse.

Mas ela não pode deixar. Não pode deixar que ele entre novamente. Ele precisa sair de vez, como se assim a dor pudesse sair também.

Ela vai até a janela e abre. O ar gelado de Porto Alegre lava-lhe a cara, consolador. Ela pega a camiseta e resiste à vontade de colocá-la. Resiste à vontade de viver com ela, como se ainda vivesse com ele. Resiste. 

Não! Ele precisa ir embora.

Então, súbita, ela atira a camiseta pela janela. Imediatamente depois, fecha o vidro e se deixa cair pelo chão, chorando outra vez.

Se ela olhasse para baixo, veria um bêbado, poucos transeuntes depois, ajudar da calçada a camiseta e colocá-la sobre o próprio ombro encardido. Ainda bem que isso ela não verá. Não verá porque a camiseta é a última parte dele que sobrou. E agora o cheiro dele se diluirá no cheiro de suor e álcool do homem da rua. A pele morta dele se embrenhará na pele do outro homem. Os pelos dele – se algum ainda há entre o tecido – se perderão entre os pelos dos cachorros vadios.

A camiseta... A camiseta era a última parte dele que ela poderia ter salvo. E não salvou. Deixou que morresse, tal qual fez com ele.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

a faca que ETERNIZA - por Simone Huck

Abriu a gaveta e pegou sua melhor faca. Desenvolvera por objetos pontiagudos e cortantes uma extrema fobia. Era convicta que em outra vida havia morrido assim, esfaqueada, e que nessa vida seu destino não seria outro. Naquele momento deveria ser forte, teria que conseguir dominar entre seus dedos a lâmina que lhe sorria debochada, dentro da gaveta. Pegou e colocou no fundo da bolsa junto a um caderno que há meses escrevia para ele. No caderno ela contava da sua saudade, da sua vontade e de tudo que pertenciam somente a eles, e pertencendo a eles, parecia não pertencer a mais nada. Tudo fora deles não habitava palavra, gestos ou escrita.

Pegou a faca, a bolsa e saiu. Tinha pressa. Tinha água em seus olhos. Tremia. Entrou no carro e errou algumas ruas dentro da sua certa incerteza. Ouviu a música que ouviram na última primavera, antes da vida ser tomada apenas por tempestades. Sua convicção fez com que achasse o caminho da casa dele. Tocou a campainha. Ele atendeu por interfone. Ficou admirado por ser ela e mesmo assim, abriu. Ela entrou. Ao vê-lo, tantos meses depois, não sabia se chorava, se gritava. Estava trêmula, pulmões vazios, tinha dificuldade pra pronunciar o menor dos monossílabos. Ele estava mais velho. O tempo não poupou as velhas cartas de amor que ansiosamente trocaram. O passado foi inundado e ainda afogava.

Ficaram um diante do outro por infinitos minutos. A vida era cinza. Os quadros das paredes sorriam sorrisos frios e falsos. Não se abraçaram, não se tocaram, nada aconteceu. O universo pareceu congelar. Os olhos, olhavam-se. As lágrimas de ambos escorriam pelo carpete e subitamente aproximaram-se com pressa, e com raiva, e com asilo, e com saudade,  e beijavam-se, dividindo a mesma poça de lágrimas por onde peixinhos acasalavam.

Ela abriu a bolsa. Pegou a faca e num movimento muito rápido, enfiou no coração dele. Ele segurou a mão dela e não fez força. Abaixou os olhos. Ela empurrou mais um pouco. Seus corpos tremiam, unidos ao hediondo que lhes pertencia. Abraçaram-se tão forte que ambos lembraram o calor do primeiro abraço, o primeiro encontro, o primeiro ato fugidio. A vida era tão bonita nesse momento. Ele disse, meio atravessado, a palavra “obrigado” enquanto ela, ao ser abraçada por ele que também trouxera uma faca irmã numa intenção gêmea, sentiu seu pulmão ser perfurado. Ela respondeu “eu que agradeço”.

Lentamente tombaram. Sangue e saliva uniram-se transformando tudo no que mais queriam: uma poça líquida de sal, eternizada no canto da sala. Nesse momento os quadros descansaram em paz, coloridos.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

a DESMEDIDA DE VER - por Dilma Alencar

Os muros escuros, tijolos tão sólidos quanto sujos. Chovia muita na cidade, a escada mijada fedia, os bem arrumados passavam xingando o lixo das gentes sujas. Dentro da casa de uma estudante os livros formavam baixos murinhos de papel, nos pés da cama, uma xícara suja de café, outra de chá, um copo de água morta da noite passada. Era um retrato manchado, esse era o cenário. A menina comia o tempo, comia sem fome, a rotina inchava seu estômago, a azia, de noite, fazia a imaginação criar flores, cultivava cactos dentro de seu travesseiro, embaixo da cama havia sempre uma peixeira afiada, eu poderia lhe dizer punhal ou adaga pela estética da letra, mas era peixeira, com gosto de sal, e furava as intenções. Olhava o cenário frio da cidade e sorvia a cerveja gelada do bar da frente. Dias de domingo sentia uma agulha nos segundos, ávida e seca de sangue, de veia. Enfraquecia na garoa, molhava os olhos, molhava a boca em corpos que nunca se souberam gente. Partia no dia seguinte com um velório nas mãos e flor de boa noite nos olhos, era uma menina crua, lia o vão das portas, o pó das borboletas e as cruzes dos cemitérios.  Odiava as cruzes e os sacrifícios, os homens santificaram o intelecto e a rotina, ela maldizia esses devotos do tédio. Falava pouco. Em dia de festa pintava o rosto, e o diabo dançava no seu corpo, goles e goles, o diabo bebeu a menina e violentou seus poros, violentou seu pulso. Na missa de domingo ela desejou o padre para brincar no inferno. Farta de corpo e morrendo no vão da carne, a unidade de uma gota de lágrima a enfeitava nas lembranças com saliva de gengibre. Ela não tinha nojo dos corpos, lhe agradava o suor gelado de uma manhã boemia; o beijo morno e ácido de saliva dormindo, lhe desagradava o escambo não declarado das relações dos corpos, os não declarados, porque quanto às putas, ela enxergava com pena, pois eram mulheres, nas mulheres tudo tem uma fundura de dor, até ferindo outra mulher, há sempre uma sangria de um afeto, vaza um cheiro de deus.
A menina não tem nome, é bonita pela tristeza de andar.  Moram com ela teorias que ela assassinou, poemas que ela jogou no lixo, um vestido preto que ela guarda com carinho. Ela mente quando não quer dialogar sobre coisas óbvias, porque nada é óbvio, falta tato, ela falta, porque ela queria mesmo era lamber palavras coloridas, adoçar a língua, acalmar a febre. Um dia, essa menina que, confesso, não é bonita desafiou uma deusa e despiu um homem de seus pudores. Chorava pouco, o luxo lhe dava muita preguiça, achou essa constatação luxuosa e repugnante. Toda violência a machucava, pois os bons modos quando são armas, são miseráveis, quem não é natural já não tem alma e só lhe resta espinhos, cercas quebradas, hálito de desespero, ela olhava o mundo e via mulheres aleijadas, numas faltava coração, noutras  pulmão, os homens, todos castrados. Muitas noites, acordava e o mundo era esse gemido, suada e ofegante, segurava o coração, ela dormia e fechava os olhos com força, pressentia um dia triste em que seus olhos em zoom arrancariam seu coração. O coração pulsava nos olhos, a menina feia transbordava um amor quase sujo, quase dos céus.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

dESPETALARES - por Vinícius Linné


Voltavam da escola. Iam os dois na quinta série. Quando passaram em uma certa casa, ela viu a flor. E a quis. Ele era apaixonado por ela, mas ela não sabia e então disse assim:

— Pega aquela flor pra mim?

— Mas há outras aqui, no canteiro...

— Não. Eu quero aquela.

Era a flor por trás de um muro alto. Altíssimo. E de repente ele não era mais um menino. Ele agora era príncipe caçador de encantos. Pegaria a flor mais rara para a princesa mais bela. Ela na certa secaria a flor dentro dos livros, como ele já vira a própria mãe fazer.

Um dia, os netos de ambos perguntariam sobre a flor. E então ela contaria de como foram felizes, diria que eles eram crianças ainda quando ele colheu aquela flor e ganhou o primeiro beijo.

Sorte era o esforço que fazia, porque ele ficou vermelho ao pensar no beijo. A flor saiu com custo. O muro era mesmo alto e ele a arrancou com raiz e terra e tudo. Mal ele tinha tirado a flor, apareceu a dona da casa a gritar, como se ao invés de uma papoula, ele houvesse lhe roubado as pupilas.

Ele só conseguiu com esforço pular de volta para a rua. Correram ele e a menina até a outra esquina. Lá ele estendeu-lhe a flor quase fechando os olhos. Quando pegou a flor, ela rompeu o caule, esfregando os torrões de terra na cara dele, carinhosa. Riram os dois até não poder, naquela mistura de terra e braços e corpos que se abatiam em luta.

Foram adiante, cansados e só sorrisos. Na terceira esquina se separaram, cada um para sua casa. Ela de flor em punho, ele vazio de beijo, mas orgulhoso pelo feito. Ela agora tinha a flor. E a guardaria para sempre.

Mais dois passos, porém, e ele a viu despetalar a flor. A cada passinho ela soltava mais outras pétalas roxas. Ia assim marcando o caminho, em um bem-me-quer que não pertenceria nunca a ele.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

a OUTRA em mim - por Simone Huck





"Primeiro ato", 2006 - Simone Huck
Liquidificadores trituravam palavras sólidas enquanto me procurava dentro de mim mesma. Ambas não sabiam: nem eu, nem eu mesma. Era difícil engolir o tempo. Tudo era pedra e ponte. Vocabulário perdido repleto de falas mutáveis. Minha boca era a própria metamorfose do tempo. Eu, contradição dela em mim mesma. Era febril. Termômetros insensatos. Ambas, anteriormente gêmeas, brigando em exércitos bélicos pela ocupação dos meus sótãos. Quem poderia tomar-me mais? Uma era vermelha. A outra era azul.

Havia sal pelo caminho depois que a chuva cessou. Cheiro de folhas pisadas. Havia um amontoado de homens tomando o fim da tarde. Incautos, deliravam o sonho do que não viviam. A vida é um controle remoto sintonizando ávidos canais ilegais. Sem uma escolha que convença. Sem uma opção que comova. Sem nada que realmente preencha os vãos das nossas unhas, quadris e boca.

Insistia dentro do meu ouvido tudo o que eu não queria admitir. Ela era um eu no meu depois. Alguma parte cega de mim que morava no escuro. De mãos amarradas a intenção não conseguia ser tátil. Noites ocultavam a identidade das perguntas. Quando ela perguntava sobre mim, eu mentia. Quando eu queria saber dela, ela engasgava alguma coisa hortelã. Eu não sabia mais dizer do que eu era feita. Nem sabia medir do que era capaz. Ela, uma abelha desesperada dentro do meu peito tentando sair, tentando ser outra. Era outubro. Um mês antes de morrermos.

Abutres brigam pela carniça das coisas que não soltamos. Abraço abarcando restos. O beijo beija o vidro límpido de um depois sem boca.

Eu só precisava deixá-la sair de dentro de mim. Fórceps da certa incerteza.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

uMA MORDIDA NA COXA - por Dilma Alencar.


Entrou. O andar de sempre, tomou água, levou o copo até a pia e abriu um sorriso sereno, se aproximou, passou a mão na minha nuca e beijou meus lábios como quem beija uma imagem de santo. Uma fé e uma força que me angustiavam. Faltou corpo para o discurso de arame.Então eu não disse. Olhei em seus olhos tentando ver além de suas retinas de onde aquela sua gravidade viera. No banheiro, os corpos nus, banhei o seu corpo com aromas de pitanga. Tontura de excesso, porque era hora da partida, a gente sempre soube que seria breve, e foi. Molhei seus cabelos, fiz espuma na sua cabeça, sem palavras, minha lágrima quente anunciou a intenção, seus olhos entenderam, seus joelhos dobraram-se, seus braços prenderam minhas coxas, sua língua encontrou a minha, me encontrou, me enviou às estrelas, como quem sinaliza os dias seguintes como procissão resignada e prevista. Queimar as asas com parafina, com sua lágrima ser minha íngua, em sintonia, ser o corpo morada de seus traços.  Saímos, fui à cozinha e fiz salada, rúcula e escarola, só porque você gosta. Me Trouxe vinho,comprou pão de mel , eu mal reparei. Quebrei um prato vermelho, seu preferido. No quarto, vesti o vestido que você gosta de me ver, quis ficar bonita para seu último olhar, vaidade descabida, meu silêncio pressentia choro e você já sabia. Ainda lhe fiz a última carta, de tantas em tão pouco tempo. Lembrei ainda de lhe comprar uma agenda, e coloquei poemas escritos num papel rosa para separar os dias importantes para você. Mas eu não consegui dizer nada inteligente, maduro e me mostrei assim crua, feia, sem conjunções que me explicassem. Os cílios piscaram cada vez mais, eu falava da conta de luz absurda do mês passado, de como é difícil tirar esmalte vermelho da unha. Eu comecei mentindo que seria melhor, você emendou meu argumento de que assim era mais bonito e que eu fui a melhor namorada do mundo, eu senti vertigem ao ouvir você, pela primeira vez, conjugando nossa história no passado, quis dar um tapa em você, cuspir em seu rosto e maldizer nosso encontro, mas só consegui apertar suas mãos e engolir seu gosto de sereno. Nós morremos docemente. Ficamos por dias, esquecidas num box de um banheiro, eternizadas em gosto, em cores de água.
Qualquer um que se aproxima consegue, ainda hoje, ver a mordida que você deixou na minha coxa direita, ainda dói, uma mancha esquisita, roxa, minha calma é desespero de tua ausência.
Esses dias um susto de acordar alheia às belezas ofertada me fez parar, desde então amadureço a mulher que já sou e guardo a menina com mais cuidado. A menina não pode morrer ou a mulher não cresce.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

distância EM 2D - Por Vinícius Linné

Deitaram os dois na cama suja.

Os lençóis duros tinham em si todo um refluxo encardido de partos e terras e ejaculações sem beijo. Os dois, apesar de magros, ocupavam cada qual o seu extremo da cama. Tomavam distância, evitavam o contato. A pele áspera de um não devia encontrar - nem por acidente - a pele áspera do outro. Respiravam o mínimo possível, assim como comiam o mínimo possível e viviam o mínimo possível. Lá fora tudo era nordeste e noite.

A distância pode ser perigosa. Porque começa nos peitos, se derrama nos leitos e termina sempre por afastar tudo de vez. Mas isso eles não sabiam. Eles não sabiam do perigo de criar outro mundo. Um mundo sem o outro.

Antes de se criar a dimensão paralela, quatro olhos amarelos, encardidos como os lençóis, estavam abertos para comer o escuro. Agora sim com gula.

E se eu tentasse, outra vez, chegar perto dela? Ele pensava no seu canto. Virou-se de costas e ela suspirou em desagrado. Melhor não tentar.

E se eu falasse com ele? Dissesse as coisas que quero? ruminou ela, limpando a garganta para começar. Fungada dele. Melhor não tentar.

Nesse jogo de não quebrar silêncio e não jogar fora distância, entraram os dois no sono. Sono pobre de sonhos, se desmanchando em novos suores para impregnar mais a cama. Cama que a esta altura já se bipartia e se replicava.

Mais tarde, cientistas dos dois lados tentariam explicar, encontrar uma causa para aquele fenômeno: o mundo se repartira inteiro. Uma nova dimensão fora criada. Igual à primeira, sem as mesmas pessoas, no entanto. Os moradores do mundo original ficaram, aparentemente de forma aleatória, separados em uma Terra ou outra. Para os cientistas mais esclarecidos, mesmo a dimensão nova era ainda um suposição. Não havia forma de contato. Não havia prova concreta. Só os polos terrestres haviam se invertido e os espelhos já não refletiam nada. Enquanto isso, os radares e sonares acusavam corpos que não se viam ora em uma, ora em outra dimensão. Mas isso tudo, como eu disse, viria mais tarde.

A noite virou dia. E quando ela levantou, não o encontrou. A cama era sozinha. A casa era sozinha. Ela mesma era sozinha. Por três meses chamou todos os dias aquele nome gasto dele. Primeiro com ódio. No fim, já em desespero. Nunca teve resposta. Ele tinha caído no abismo do mundo. E era para lá que ela iria também, jogando o corpo no poço seco.

A noite virou dia. E quando ele levantou, não a encontrou. Teria ela levantado mais cedo da cama? Paciência. Sentou-se lá fora, fumando um palheiro, dando graças aos silêncio sem suspiros. Um ano depois, ela ainda não tinha aparecido. Paciência. Era hora de buscar outra no mundo. Uma que trocasse os lençóis sujos.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

fio CIRÚRGICO - por Simone Huck

Amanheço e você não morre. Ainda ontem fui ao seu funeral dentro de mim. Vesti a roupa mais bonita. Coloquei gravata. Lustrei os sapatos. Limpei os óculos escuros para enxergar além da possibilidade de um sol que pudesse te iluminar em algum escuro de mim. Cumprimentei seus pais. Chorei perto dos seus amigos. Abracei todos os seus irmãos. Tinha a nítida certeza que te sepultava naquele vão momento. Havia uma alegria dentro da minha boca silenciosa que não podia gritar nem comemorar. Não ali. Pás de terra sobre a sua pele macia e gostosa. Grãos de areia tocando sua língua inexata, secando a saliva que você derramava sobre meu corpo. Milhares de pedras fechando seus olhos lindos. Flores ocultando suas mãos alongadas e finas. Impossíveis orquídeas. De longe, eu não mais conseguia ver o seu corpo indeterminado. Era certo que você morria. Pactos deitados em bancos de crenças.

Naquele frio cemitério do meu coração, eu voltava para casa livre, liberta. Havia um pássaro cantando a minha sobrevivência. Todos puderam ouvir os segundos da minha vasta emancipação de você. Há uma certa alienação nas convicções.
Ao meio dia, você apareceu plantado na porta dos meus olhos com um sorriso debochado. Postura firme. Olhar arrogante. Pendurava um sorriso parecido com aquele que você trazia nas noites que brigávamos. Madrugadas líquidas. Cinicamente me disse “oi”, puxou uma cadeira e sentou ao meu lado. Abriu o pacote de bolachas que estava em cima da minha mesa de trabalho e começou a olhar meus emails como se fossem seus. Você adorava bisbilhotar meu computador à procura de uma traição que nunca existiu. Mascava um chicletes irritante e usava o perfume que trouxe de Paris para provar o quanto te amava. Quanto dinheiro queimado sobre o seu corpo. Insistências imortais e amargas. Escarros amanhecidos. Você era o meu maior erro. O meu maior vício. Você era a minha febre sobre todas as coisas mortas que não se deitam para dormir, nunca. Meu devaneio. Meu complexo. Você era a outra metade de mim. Mal feita. Perfeita. Obstinada.

Amanhece uma outra vez. Costuro sua boca e mesmo assim, por algum secreto lugar, escapam suas ácidas palavras que sabem me matar. Qual fita métrica uso para medir sua indiscrição? Qual é o açougueiro que afia a faca das suas vírgulas hediondas?

Almoço e você insiste em ser a sobremesa. Anoitece e não consigo te assassinar no meu melhor e maior plano. Não, não desisto. Hoje costurei sua boca, amanhã perfurarei seu cérebro.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

aLITERAÇÕES _ por Dilma Alencar


Ela me olhou sem doçura nenhuma, o modo imperativo que conjugava seus verbos enfraquecia a semântica do discurso, esse mais persuasivo que comovente. Por preguiça, eu não quis jogar. Utopias casuais, fermentação ideológica, contratos. Eu só queria fazer um arroz, comer torrada com mel, comprar anéis de coco, fechar as páginas, esquecer as faixas, os faróis. Ela não viu a cor do céu, não reparou nas cores da minha coberta. Se ao menos ela me deixasse chegar perto sem verbos e não analisasse a minha sintaxe, mas tudo pode ser transformado em conto, em canto, pena eu não ser artista, se eu entendesse de recursos sonoros lhe faria um poema livre com aliterações em “l”, a professora disse que essas aliterações soam como água e limpam o texto, eu gostaria de lavar umas lembranças, além de café no seu tapete novo, eu sujei alguns papéis, talvez ela nem tenha visto, de repente nem eram dela, nem era ela.
Eu não disse nada, ela concentrava na fala toda a argumentação. E precisava de tanta informação, imagens, códigos, números exatos.  Por isso seu gosto por sonetos, a métrica, a estrutura. Não gostou dos haicais que risquei com giz rosa, na parede do quarto. A voz dela é rouca e sempre prende minha atenção, mesmo dizendo que quer mais açúcar ou dizendo de física quântica, prefiro quando ela pede açúcar.
Ela foi embora. Eu guardei uns substantivos que moravam em sua boca: estilete, quadro, tinta, espátula, pincel, formas. Com eles, estou montando um poema com métrica, rima e antes de enviá-lo farei escansão para assegurar seu prazer.
Vivemos pouco tempo juntas, uma semana.
A solidão dos meus móveis guardou um traço bonito do primeiro sorriso da primeira manhã. Eu, os livros, o fogão, as janelas, todos sorrimos quando ela acordou dentro do nosso silêncio. Abriu-se, de repente, um espaço maior, uma largueza dentro do quarto, meu abraço cresceu e a tive no colo.
Uma calma horizontal, plana, eu, pasma, besta de saber. Na última semana, as lembranças, as memórias que vêm na vertical e derrubam, sim, voltaram. Ela já não fez o café, eu já não a tive nos braços, as mãos se perderam, eu fiquei com saudade e a transformei numa de minhas dores verticais. Eu lhe enviei o poema, quando ele chegar ela vai saber de mim. A razão dela não dói, não comove. Ela move umas palavras em mim que são dela. Eu as dei, todas em rima. As coisas dela foram com o poema. Limpas como o poema. Eu e a solidão sorrimos. Ela anda tão bonita. Nós também.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

a alma DOS BICHOS QUE VOAM - por Vinícius Linné


Nos jornais há uma foto repetida. E aquele rosto sério e mudo me assusta. (É o meu!) Pelo rádio, quebrada em ondas, vem a voz que me fala de coisas conhecidas. (A voz é minha!) Na televisão, o rosto e a voz se fundem, o sorriso se esfumaça breve, a simpatia exala falsa. Há um homem dizendo coisas que ensaiou para dizer. (O homem sou eu!)

Tudo é uma dança em realizar de sonhos. (Só que com pisões duros nos pés) Tudo é água jorrando da fonte, implorando para ser bebida. (Só por quem não tiver nojo do limo). Tudo é um sonho pintado de lilás. (A cor exata do forro dos caixões que guardam teus velhos mortos)

Não, mas não pensem que não há alegrias genuínas, voejando pelo salão feito pássaros de furta-cor. Há. (Mas há também no salão as amazonas de zarabatanas, comendo as aves mortas com o veneno de sapo)

Para cada duas aves mortas, no entanto, eu sopro mais sete. Incansavelmente. Fazendo-as jorrar e flutuarem como flutuariam bolhas de sabão. Porque é preciso equilibrar o sonho. É preciso mantê-lo no ar, apesar dos tiros, apesar do tempo, apesar das amazonas e de suas ânsias feias.

É preciso acreditar e acreditar e acreditar. Especialmente na descrença dos outros. É dela que a força vem. Da pura descrença. É o desumano que nos faz mais humanos. São os assassinos de sonhos que nos fazem sonhar. São as amazonas, zarabatanas em punho, que nos obrigam a fugir. E é a necessidade da fuga que nos dá asas. Asas e alma. Porque só o que tem alma por dentro é capaz de alcançar as nuvens lá de fora.