terça-feira, 27 de dezembro de 2016

qUATRO SÉTIMOS - por Vinícius Linné

As coisas. As coisas que você conquistou e as pessoas. Acho que principalmente as pessoas porque as coisas costumam ficar.

Enfim. É assim:  o tempo passa e você se acostuma com elas. Você passa a agir como se elas fossem suas por direito. Como se.... Como se...

Como se você tivesse conquistado elas e agora pronto. São suas pra sempre.
O ser humano tem muito disso de “pra sempre”. Somos uns coitados.

Mas daí, você conquista as pessoas e não pensa mais nelas. Não pensa nas coisas que as pessoas fazem por você.

Quando ela prepara o café que você vai beber. Quando ela corta o pão, coloca o que você gosta dentro. Quando ela lembra exatamente do que você gosta.

O almoço feito. Todo dia. Ao meio-dia, quente na mesa.

Você não pensa mais nisso porque acha que sempre vai ser assim. Você esquece que algum dia conquistou isso.

Você passa a achar que é merecedor dessas coisas. E não faz mais nada por elas.

Tipo um abraço no meio da tarde, que ainda por cima atrapalha seu serviço e por isso você franze o rosto. Se você soubesse, se soubesse não franzia o rosto nunca. Porque isso não é seu de verdade. Entende? Nada disso.

Isso só é seu enquanto a pessoa estiver ali. E ela só vai estar enquanto continuar sendo conquistada. Por isso tanta gente desiste. Por isso o mundo vai ficando assim. Porque todo mundo acha que merece tudo. Todo mundo segue como se a casa arrumada, cinco minutos antes de se chegar do trabalho, o cartão feito à mão no aniversário, o cachorro, até o cachorro levado para passear, como se tudo isso fosse obrigação do outro.

E não é.

Mas você se sente tão... seguro, tão merecedor mesmo de ter sua vida facilitada.

E é assim que tudo acaba.

É assim que acaba o motivo, entendeu. Quando você não faz mais por merecer, você deixa mesmo de merecer. Entendeu? Parece complicado explicar. Mas é assim mesmo. Depois de conquistar, você deixa de olhar para aquilo que conquistou. Você para de prestar atenção. Você para de ver. Você para de ouvir. Você só toca em frente, alheio.

Até que, um dia, você chega em casa não tem almoço pronto. A roupa não está mais dobrada dentro do armário. Não há quem corte a carne do churrasco para você. Ninguém te abraça e você tem todo tempo do mundo para fazer o que quiser.

A ironia é que, nesse dia, você não quer mais nada. Você só quer um abraço mesmo.

E não tem.



quinta-feira, 17 de novembro de 2016

tRÊS SÉTIMOS - por Vinícius Linné

Em algum lugar há alguém que ainda não se compreende. E, portanto, tampouco é compreendido pelos outros. Ele tem ainda dezessete. É alguém que ouve uma música na TV e fica com ela a rodopiar a madrugada. Alguém que fica até tarde assistindo a Globo porque é a única emissora que tem. Alguém que vê uma série sobre mortos e a acha linda, mesmo sob o benzimento de uma tia qualquer. Ele é alguém que acende velas na noite do quarto. Alguém que vai para a janela sorrir só nos dias de tormenta.

Ele viu também uma série e lembrará das canções pela vida afora. Ele decorou uma das frases e vai usar como mantra para sempre: “O que há de ser tem muita força”. Há esse alguém que é especial. Porque, compreendam, numa noite insone, talvez nas férias, enquanto procura por vídeos pornôs, ele verá duas mulheres se beijando. E verá mais, verá até o final. Anotará o nome do filme e só muito depois verá o começo: “A cor púrpura”. Ele não entenderá na hora, por falta de alma, mas buscará entender. Isso é que é importante. Buscar.

Depois disso, é em busca de alma que ele vai. Ela vai ler, ele vai ver, ele vai rodopiar quando o vento vier e ele vai sorrir então. Ele vai transformar o menino em homem na via pouco usada da sensibilidade. Ele é o vaso de barro que, aos poucos, se inchará de água até brotar em flor. Flor púrpura.

Apesar de tudo, do mundo e dos muros, dos homens e dos murros, ele vai. Ele vai seguir pela fresta estreita dos olhos dos gatos. Ele vai seguir a essência dos fatos. Ele vai colorir a beleza do próprio mundo em busca de sentidos e de sentir. De sentir especialmente.

Ele vai amar. Vai escrever as palavras todas. Ele vai seguir e chorar muitas, muitas vezes, porque o que é sensível verte, derrama pranto de pouco em pouco. Mas ele também vai dançar. Sozinho, sem música mesmo, pisando folhas secas e beijando o vento que uiva.

Quando ele tiver alma o suficiente – não demais, o suficiente – ele vai sentar e profetizar o próprio passado. Aos vinte e sete, ele vai verter no papel palavra por palavra o que ele quer que aconteça. Dez anos criados em busca de mais alma. E ele vai sorrir no ponto final. Porque alguma coisa, alguma coisa só, ele já compreenderá então.

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

nECROPSIA - por Simone Huck

Você mudou de pele, de casa, de casca. Você se mudou de mim.
Trocou os dentes, o couro cabeludo, a epiderme e as roupas que costumava usar todos os dias.
Você emagreceu. Limpou todas as suas palavras. Fez a barba. Costurou a boca. Trocou a cor da maquiagem e dos olhos. 
Você se livrou de mim.

Hoje você come menos e corre mais. Percorre as mesmas avenidas com nome de velhos marechais e tenta esquecer os diálogos que pichamos nos muros da sua cidade. A cidade não mudou. Você disfarça. Finge não ver. Finge não ler. Finge não lembrar cada vez que a música toca todos os dias, involuntariamente, dentro do seu ouvido. 
Você fez uma autópsia de mim.

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

a CASA - por Adilma Secundo Alencar

As dobradiças enferrujadas ressoavam a chegada de mais um dia chuvoso. Elas enfeitam a casa com as fotografias das viagens, pôr do sol, feira livre, mar, avião enfeitam as paredes da sala. A casa tem a alegria de seus paladares, dados às novidades do mundo. A cozinha é a festa das cores, panelas e talheres colorem o ambiente de azulejos azuis, imitando os azulejos portugueses, que na primeira vigem à Salvador elas viram a enfeitar o terminal marítimo.
Os livros, prazeirosamente lidos, encontram-se por toda a parte da casa: criado mudo, gavetas, estante, mesas. Um grande mapa do Brasil decora o parede do quarto, colorido de marca-texto rosa,ele guarda o itinerário dos caminhos percorridos juntos. A velhice é uma alegria como fora sempre o encontro das duas, cuidam-se com a alegria e o espanto dos versos orvalhados de Manoel de Barros. A cebola, o gengibre, a canela, o açúcar e o cravo são os cheiros dos feriados em que não viajam, durante horas a cozinha respira a ternura da mistura quente das ervas e doces. No quintal um imponente mandacaru se exibe soberbo em sua natureza bruta de espinho e verde. A rede laranja balança nas tardes ociosas. Quando é noite de lua cheia, as duas sentam-se na varanda e, ao som cadente dos afro-sambas de Vinícius, sentem o almíscar gelado e ardido que a ventania traz do mar.
Entardecem vendo o espetáculo das tarrafas abraçando o mar. 
A casa é um encontro, dos sapatos, das malas sempre prontas às novas descobertas de pedaços de mundo. 
Elas zelam a saúde da palavra e seus silêncios também são gestos ternos, horas no silêncio de uma rede,no encantamento curvilíneo do corpo. As manhãs se erguem soberbas de luz e calor, mais à frente o mar em todo o seu mistério e força agita-se brilhante como peixes miúdos dentro de uma rede.
A casa é mais que paredes e cores, ela transborda vida, elas sabem.

domingo, 2 de outubro de 2016

dOIS SÉTIMOS - por Vinícius Linné

Eu queria que você me amasse. Não a ponto de cometer loucuras por mim, mas a ponto de eu poder pensar que sim. Não a ponto de você entrar no primeiro ônibus, de madrugada, cruzar o estado todo e chegar aqui de manhã, só porque eu pedi por telefone. Mas a ponto de eu ter seu telefone. Porque assim, sem dizer nada, fingindo nem sentir, tudo que eu tenho por dentro me afoga à garganta. E eu fico como a mulher na foto.

Eu queria que você me amasse a ponto de eu poder lhe procurar só pra contar da mulher na foto. A mulher toda fodida na foto. Olhos de ressaca. Isso sim são olhos de ressaca. Ressaca de porre, sim, mas de mar também. São olhos que parecem a qualquer momento poder derramar. E derramaram. Logo depois de eu tirar a foto. Mas na foto ela ainda tem olhos inundados. Na foto, ela tem olhos de vaca indo pro abatedouro. E isso não é ofensa. É lindo. Ela é tão fodida que sabe do abatedouro. 

Foi a foto da mulher que me fez pensar em você. Mas só depois que eu deixei ela em preto e branco, pra revista, foi daí que os olhos brilharam. Foi como se eles estivessem esperando essa escala exata de cinzas para poder vir à tona. A mulher inteira veio à tona por esses olhos. As rugas, o nariz fino, as bochechas escavadas, a boca amassada.  Tudo no preto e branco fez mais sentido. O cigarro na mão dela ganhou outro ar. A fumaça se tornou um desfoque denso, nublando a cena inteira. O decote pregado de rugas, a alça de um sutiã aparecendo, o espelho de luzes, tão clichê com seus bicos quebrados.

Essa mulher, foi como se ela tivesse nascido pra foto, pro sentimento dessa foto. Como se ela tivesse vivido sempre em preto e branco, antiga e decadente, como num filme de Bertolucci. Essa única foto conta a história inteira dessa mulher, nem precisava de texto, de entrevista, de nada. Os boás depenados refletidos no espelho, as guimbas de cigarro derramadas do cinzeiro, a barata morta sobre a penteadeira, o whisky sem gelo, suspenso no ar, e a dor naquele rosto, a dor pura de encarar a própria vida e parar de fingir. A dor de assumir que é tudo só um abatedouro. Essa dor, cara, ela vai ficar doendo em mim.

Se eu tivesse seu telefone, esse seria o tipo de história que você gostaria de ouvir. O tipo que nos faria ficar acordados a noite toda, mesmo se você não pegasse ônibus nenhum. Mesmo se eu não disse, mais uma vez, o que eu sinto. Não a história da mulher, que é tão clichê quanto ela, mas a história dessa foto. Do que eu consegui capturar ali.

Você sempre me disse que eu havia nascido para isso, para fotografar. Que eu ainda ia ficar famoso e ter exposição só com o meu nome. Quando eu vi a foto dessa mulher, eu quase acreditei. Quase acreditei em você e na sua mania de me ver em um futuro bom. Depois tudo passou. A realidade veio, o salário de merda, a revista que não serve nem pra recolher cocô de cachorro. Essa foto, esses olhos, tudo se perdendo entre receitas de dieta e inaugurações idiotas. E eu me perdendo também, entre nossa distância e o silêncio do que eu deixei de dizer, entre o arrependimento e a certeza, só agora, do que eu sinto por você.

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uM SÉTIMO

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

mETADE de um hOMEM – por Simone Huck

"Metades", Santorini,  2014 - Simone Huck
O despertador toca. 5h25. Tem sono mas não há tempo. Nem de começar a dormir. Nem de terminar de dormir. Levanta. Escova metade dos dentes. Toma metade de um banho. Enxuga metade de um corpo. Veste metade de uma roupa. Mastiga metade de um pão com manteiga vencida. O eco da casa também é metade, sem língua, ressoando um constante afogamento das coisas.
Bate o cartão de ponto. 8h. Bate uma saudade antiga de fugir. Bate medo de mais um dia igual. Bate um tédio. Ditongos e hiatos para a nova turma se repetirão por anos e anos, sem nenhum encontro vocálico que realmente justifique sua vida. Seus dias são como bailarinas mancas que brincam com demônios. De sapatilhas, não adianta correr.
Sai para almoçar. 12h. Tem fome de tudo que nunca comeu. Nem viu. Nem ouviu. Sede de oceano. Fome de solidão eterna. Vontade gritada de mastigar um silêncio e ali ficar, até secar e ser alguma outra coisa posterior ou anterior ao que é. Dentro dos restaurantes sua fome é outra.
Volta. 13h30. Volta pela mesma rua. Vê as mesmas casas. O mesmo trânsito. Os mesmos muros pichados agonizando mensagens sem sentido. O mesmo atraso. Os mesmos olhos cegos de todas as pessoas. O mesmo do mesmo.
Sai.18h. Amanhã voltará. Nada muda. Exaustiva repetição cada dia mais envelhecida. Percebe que já se acostumou a não chorar. Percebe que já se acostumou com o mofo dos meses.
Na solidão da sua casa, nu. 20h. Tira roupas e sapatos. Tira a dentadura. Tira a prótese de sua perna direita. Não fala, nem tomba. Tudo nunca lhe soou tão falso. Uma sensação de ser anterior às suas máscaras, sua real anatomia. É um homem que enxerga.
Apoiando-se em poucos móveis, arrasta-se até o espelho de moldura vermelha na parede do corredor. 20h30. Vê o reflexo de uma autobiografia manca e muda. Nada mais é verdade. É um homem em pedaços.
Na cama. 23h45. Observando a multidão de sombras no teto. Tenta fechar metade dos olhos. Sabe que não conseguirá dormir. A vida é um estado paliativo. Sem cura.


domingo, 18 de setembro de 2016

sà - por Adilma Secundo Alencar


É misticismo esse jeito de ordenar as palavras, é o jeito dela não morrer, Macabéa me veio do tamanho de um prédio na paulista quando li pela primeira o livro da hora da morte, (Eu sei que é da estrela, saibam que li). Quantas vezes foi nela que encontrei o jeito de fugir dessa cidade toda feita contra mim, toda minha de tão estrangeira que sou. Às vezes, na solidão do primeiro mês é dentro de um mundo de ficção que nos refugiamos. Há 50 anos não fazia tanto frio, foi assim que cheguei, na mala mais saias do que calças, mais sonhos do que certezas. Quanto tédio na hora do almoço, quanta vontade de ir embora eu afastei dentro de suas entranhas, dos seus abismos, da sua sintaxe de represa arrebentando cercas, do seu parágrafo estourando uma barragem. Da seca ao sumo de flores pisadas numa calçada na cidade de São Paulo. Clarice me apresentou a possibilidade de enfrentamento das horas periclitantes, resisti a vida de Ana, nunca fui comprar ovos numa sacola, o cego nos espreita em qualquer esquina.
As mulheres de Clarice são vulcões, G.H. numa fremente erupção me deu o pão. A literatura é meu lugar de descanso, na aversão aos meios, ao livro de ponto, ao livro didático, ela salva meu entendimento tão torto sobre os elos frágeis das relações.
No perigo d’As Horas, na envergadura velha dos moralismos coléricos, nas intermitências do cansaço diário, a faca só lâmina de João Cabral brilha, não a loucura e o pavor da vida, mas a luta, a lida, a caminhada severina de quem desabrochou na terra da garoa. Dentro de cada história, de cada leitura devorada na busca de comunhão, estou. A Sanidade está aquém, talvez tão fundo que desconfiemos de sua existência e quem está de fora nem sabe, mas há sentido na solidão dos livros, dentro de um livro saltam Diadorim, Casmurro, dentro de um livro eu vi mineirinho morrer, e eu também, porque quis sua morte e me senti segura. Eu morri com Macabéa e só assim pude viver fora do Nordeste.

Clarice me tirou o chão, só por isso me digo sã.

domingo, 4 de setembro de 2016

uM SÉTIMO - por Vinícius Linné

— Ah, por favor, que porra é essa? Eu acabei de acender o cigarro! ME DEEM UM TEMPO, PELO AMOR DE DEUS!
— Quer que eu...
— Claro! Você já me viu abrindo portas? Eu só passo por elas, meu bem. Pisando em tapetes vermelhos, de preferência. Ah, e traz mais uma dose dessas quando voltar. Puro!


— É o pessoal da entrevista.
— Como assim “O pessoal da entrevista”. Não. Não pode. Não. Agora não. De jeito nenhum. Não. Não mesmo.
— Eles disseram que foi a senhora que marcou.
— Senhora é a sua mãe, filho da puta. Me dá esse whisky. É “Você”, entendeu? “Você”. E não. Eu não marquei pra agora. Eu tenho certeza de que não marquei isso pra agora
— A mulher lá disse que sim, que ela chegou às sete. Como o combinado.
— Meu Deus, que burra! Às sete, sim, mas às sete da NOITE! Vá lá e avise. É às sete da noite. Não agora. Agora não. Olha o meu estado! Não. De jeito nenhum. Avise ela, benzinho. Ela que volte à noite, quando eu estiver me preparando para o show. Quando eu não estiver de maquiagem derretida, meia rasgada e dois litros de álcool nas veias. Agora não.


— Ela disse que então tá tudo desmarcado.
— Como desmarcado? Não, desmarcado não. Eu avisei todo mundo! Eu telefonei até pra Ela. Sim, até pra Ela eu liguei! Eu avisei que ia aparecer na revista! Eu avisei. Ela desligou na minha cara, mas eu avisei. Ela deve ter ficado orgulhosa, no fundo, Ela deve... Não, como desmarcado?
— É. A mulher disse que ou é agora, ou ela não pode voltar mais. Vão encaixar outra matéria no lugar. Alguma coisa sobre um livro que tá fazendo sucesso.
— Um livro, no meu lugar? O mundo está transbordando de livros. Quem precisa deles? Não, um livro não. 
— Mando ela entrar então?
— Está só ela?
— Ela e mais um cara. De câmera na mão.
— Câmera? Não, câmera não. Não a essa hora da manhã. Não depois de uma noite inteira. Não. Minha única chance na vida de aparecer numa revista. Não. Como assim. Fale com ela, por favor. Se não pode ser a entrevista agora e as fotos esta noite. Eu dou entrada de graça pra todo mundo. No meu show. Isso. Entrada de graça pra revista inteira. Mas agora não. 


— Eles já tavam indo embora.
— Como indo embora? Não! Embora não, porra! 
— Disseram que nada feito. Ou fazem a entrevista E as fotos agora, ou trocam a matéria. Parece que o livro é sobre um cachorro. Todo mundo adora cachorros.
— “Todo mundo adora cachorros”. Que enfiem no cu os cachorros. E os livros. E as revistas todas também!
— Mando eles embora?
— Ficou louco? Manda entrarem. 
— Tá.
— Mas espera! Espera cinco minutos. Pra eu pelo menos dar um jeito na cara! Merda. Tá tudo borrado. Merda! Cadê o meu batom?! O vermelho, porra! Ficou no quarto. Eu não acredito que ficou lá em cima!


— CINCO MINUTOS! Não sabe olhar as horas, idiota?
— Desculpe, aquele cara nos disse para entrar e...
— Ah, vocês!! Desculpem. Achei que era ele, aquele. Deixa pra lá. 
— Nós podemos...
— Sim, desculpem, entrem, sentem. Eu estava tentando dar um jeito nessa.... Deixa eu tirar isso daqui. Isso. Desculpem a bagunça, mas eu esperava que fossem vir à noite. Sabe, enquanto eu me preparava para o show, todo o glamour, a maquiagem, a troca de figurino. As fotos ficariam ótimas! Não querem voltar depois? Não?! Eu dou ingressos a todos vocês. Pra revista inteira! Assim vocês podem fazer também umas fotos do show. Eu até consegui um microfone emprestrado. Pras fotos. Um daqueles antigos. Heim?!
— Infelizmente não poderemos. À noite há uma recepção que precisamos cobrir e como a senhora falou que
— Senhora não, meu amor. “Você”. Temos o quê?! Quase a mesma idade?
— É... 
— Então, vocês poderiam vir à noite. A bebida vai ser por minha conta.
— Desculpe. Mas há a recepção, a inauguração de um pet shop.
— Um pet shop?! Sei. Todo mundo adora cachorros, não é?!
— Pois é. O dono é amigo do nosso editor e aí não poderemos faltar. Além disso, quando a senhora disse às sete, que bem cedo era melhor, eu imaginei que...
— Cedo da noite, meu amor! ANTES do show, eu quis dizer. Não ensinam nada nessas faculdades de jornalismo? Ainda precisam faculdade, né?!
— Olha, se for um momento ruim pra senhora, acho melhor cancelarmos tudo e.
— SENHORA NÃO! Você. E tudo bem, no fim. Pode ser agora. Eu já avisei todo mundo que estaria na revista. Até Ela sabe...
— Ela?
— Deixa pra lá. Então, o que você quer saber? Minha história, minha carreira, minhas influências musicais? Aceitam uma água? Um whyski pra me acompanhar?
— Desculpe, é um pouco cedo.  E além disso, nós estamos a trabalho. 
— Sei. Deus me livre de um trabalho em que não se possa beber! Nem o senhor me acompanha?
— Não, obrigado.
— Nossa, como o senhor é sério, heim?! Mas bonito, muito bonito. Deveria estar na frente da câmera, não atrás dela. Uma cervejinha, quem sabe?!
— Não.
— Ele não é de falar muito, né?
— Não... Essa parte fica comigo. Podemos começar?
— Claro! Mas já começamos! O que você quer saber mesmo, gracinha? Sobre como eu comecei a cantar? Bom, foi em 72. Eu era linda em 72. Tinha umas pernas. Incríveis, pernas incríveis! Você precisava ter visto! Ainda não estão de todo ruins. Não. Não estão. Mas na época eu estava com 16, 17 e. Não. Merda. Não coloca isso aí. Não coloca o ano. Senão vão saber. As pessoas calculam essas coisas. E uma dama nunca revela sua idade. Nunca. A não ser na sua idade, né?! Na sua idade não faz diferença. Quantos anos você tem?
— Vinte e seis, mas vamos...
— E já diplomada?! Muito bem! Seus pais devem estar orgulhosos. Os meus nunca quiseram saber direito de mim. Nunca ligaram muito para a arte que eu fazia. Um dia meu pai foi me ouvir. Mas foi por acaso. Ele foi à boate em que eu estava me apresentando e viu o começo do show. Só o começo, porque ele subiu no palco e minha nossa, que surra eu tomei naquele dia. Você já apanhou de um homem, meu bem? Tem cara de que nunca. Eu já. Meu pai nem foi o primeiro. Muito menos o último............ Mas onde paramos? Vocês querem um whisky? Assim  eu não fico tão constrangida...
— Não. Obrigada. Podemos começar?
— Mas já começamos! Lembrei! Eu estava falando de como foi o início da minha carreira. Sabe, mesmo no interior, de onde eu venho, eram tempos difíceis aqueles. Ditadura por todo lado. A do governo e a dos outros. A pior era a dos outros. Os outros sempre querem ditar o que você deve ou não deve fazer. Com quem você deve ou não deve sair. Por eles eu estaria morta já. Você não vai anotar?
— Desculpe. É que nós temos outra pauta.
— Como assim? Mas se vão me entrevistar, o começo da minha carreira é importante, não é?! Eu sei. Eu sei que hoje estou numa espelunca. Sei que hoje estou na pior. Mas eu tenho uma carreira. Eu sou grande ainda! Uma estrela! Estrelas não morrem, meu bem. Você sabia disso? Ensinam isso na faculdade? Mesmo as que morrem, elas continuam brilhando por anos. Bilhões de anos, depois de terem apagado já. Eu sou uma estrela. Eu vou brilhar muito ainda. Até depois de morta. Você ainda vai ouvir meu nome. E um dia você vai se encher de orgulho e dizer: “Eu entrevistei aquela mulher! Que mulher!”. Quando é que a revista sai mesmo, amor? Eu preciso comprar várias. Vou até mandar uma pra Ela. Ela vai ficar tão orgulhosa que vai me perdoar. Eu fiz tudo em nome da Arte, Ela vai entender. Até hoje, tudo. Sempre pela Arte. 
— Isso é... fascinante. Eu sei que muitas de vocês começaram com esse mesmo sonho. De ser cantora, de ser atriz. Mas quando foi que a senhora passou a ser garota de programa?



— O quê? Desculpa, mas você me chamou de quê?
— Não, é... Me desculpe a senhora. Mil desculpas. Eu imaginei que a senhora tivesse entendido. Quando falamos por telefone, eu...
— Você? Você o quê?
— Eu falei sobre a entrevista, sobre a matéria. Que faríamos o perfil das mulheres... como a senhora... Desculpe. Como você. Que continuam... atendendo... mesmo na terceira idade.
— Mulheres como eu?
— Bom, prostitutas. Eu até comentei que o título era “vovós de programa”. Eu imaginei que a senhora tivesse entendido. Senhora? Senhora? Olha, se a senhora quiser, nós vamos embora. Marcos, vamos. Acho que ela precisa... Onde é que está o cara que? Marcos! Por favor! Sem fotos agora. A senhora está bem?! Senhora? Vamos, Marcos. Chega!



— Fiquem! Vamos começar, então. E Marcos... pode tirar todas as fotos que quiser.

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dOIS SÉTIMOS

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

mONÓLOGO ANÓDINO - por Simone Huck

"Peace", 2014 - Santorini,  Simone Huck

Nossas palavras paraplégicas confundem-se enquanto caminhamos sobre as inúmeras flores dos ipês rosa espalhadas pelas ruas da cidade. Ruas coloridas vestem-se de flores mortas. Tudo se tornou tão dúbio de repente. Êxodo de pétalas e células que o vento e o sangue carregam para outros lugares. Um dia, perderemos o controle de tudo. Já perdeu, mãe?
Seu cabelo esbranquiçado e seco entre meus dedos. Quando eu era pequena, você me dava banho de sol e penteava meus cabelos. Tentava me proteger do futuro de flores mortas. Não deu certo. Claustro sem deus. O mundo nunca me pareceu tão pequeno. Deserto de paroxismo. As células nunca mais disseram nada que eu e você gostaríamos de ouvir. Está me ouvindo, mãe?
Enquanto caminhamos pela rua dos ipês, seu corpo magro sorri e sente sede. Você nunca perdeu o sorriso. Eu me tornei muito mais cinza desde que você ficou doente. Um copo de água para hidratar a cura que nunca existiu. Já parou uma gota de chuva com a ponta da língua, mãe? A mesma língua que sente as drogas, a fome, a fé e o céu.
Repouso meus braços em seus ombros e penso no quanto eu queria lhe salvar desses dias tóxicos. Disfarço. Guardo as lágrimas no oceano do meu casaco. Estou me tornando um mar estagnado. Já se afogou, mãe?
Atravessamos outra avenida que não chegará a lugar nenhum. Entramos no carro que nunca chegará ao céu. Vamos para casa. Você precisa descansar e orar. Você sempre ora. Já se passaram quatro anos desde que tudo desabou e você ainda ora. A oração me intimida. Talvez, meu terço surdo seja de plástico, como o fio transparente por onde desce a droga que invade sua alma e corpo cansados. Deus acredita em quimioterapia, mãe?

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

eLE - por Adilma Secundo Alencar


Ele é de lá, eu sei que seu silêncio também é saudade. Sessenta e nove anos vivendo sobre as mesmas pedras cicatriza de algum jeito uma arquitetura de carne: amor, filhos nascendo, filhos indo embora. A promessa que fizera para sua mãe fora cumprida, nunca abandonaria sua terra enquanto ela vivesse, ela se foi no dia de seu aniversário, doze de outubro é mais que feriado, é aniversário dele, que não quer mais música alta nem bebidas nesse dia. Ele é diferente de seus irmãos, não veio para São Paulo ser metalúrgico na região do abc, ficou roçando a terra dos outros até comprar um pedaço de terra que chama de seu. Lá tem açude, a casa que ele nasceu, tem uma cisterna que na minha infância era lugar de brincar, foi lá que aprendi a dar nó no sisal e colocar na ponta de uma vara de caçutinga para capturar lagartixas. Ele me ensinou como enterrar manivas, me mostrou que fruta de incó é boi, boneca e comida, eu tive uma luva de couro para cortar mandacaru, antes de ler Vidas Secas eu sabia dos Fabianos, os sonhos de baleia eram sonhos de meu irmão que vivia no meio do mato procurando bicho, menos por fome do que por lazer.
Ele se atrapalha com as palavras, a televisão que ele tanto gosta nunca mostrou quem ele é, os nomes estrangeiros e os costumes urbanos não são seus, ele sabe o nome das aves que bebem água no açude, do nome das prensas, do forno e das formas de uma casa de farinha, ele sempre me traz esteiras de palha e novas havaianas quando volta lá de casa. Ele está aqui comigo, mas se agonia de saudade. O que fazer acordado antes das seis da manhã numa cidade toda alheia ao seu entendimento?
Se eu pudesse, para apaziguar sua saudade, eu lhe traria o som que o pneu de bicicleta faz em contato com a terra molhada, quando a gente desce uma ladeira sem apertar o freio, traria também o barulho dos pássaros de manhã, um sofrê cantando no galho de uma jurema, traria o brilho de uma enfieira de peixes recém pescados, sei que ele gostaria também de receber o cheiro do curral, o barulho do leite na lata de alumínio, os sons de seus filhos ainda pequenos, as tarde de tanto amor e silêncio com seu bem, o barulho do dominó na mesa ,entrecortado pelas vozes que há décadas lhe são amigas.Ele é uma fortaleza, lá, é dono dos seus olhos e pernas, dirige uma moto e sua própria vida, conhece cada árvore do itinerário de casa até a sua roça.Seu eu pudesse encurtaria as lonjuras entre aqui e lá.

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

aMOXICILINA + cLAVULANATO DE POTÁSSIO - por V. Linné

37.

Febre. Todas as noites. Uma infecção de lugar nenhum. A médica a apalpar gânglios e glândulas. Nada. Talvez sejam as amídalas, ela arrisca. Talvez.

Amoxicilina + Clavulanato de potássio.
1 cp de 12 em 12 h.

A Amoxicilina é pó cristalino, branco, de massa molecular 419,45 (isso é muito importante, me parece), levemente solúvel em água, álcool metílico e álcool etílico; praticamente insolúvel em tetracloreto de carbono, clorofórmio, éter e óleos fixos (para o caso de você tentar dissolver os comprimidos em clorofórmio e não dar certo). Por ser um antibiótico beta-lactâmico (e não tetra-lacônico ou hepta-lacaniano), atua destruindo (microscópicas explosões dentro de mim!) a parede (demolições) das células bacterianas, pois se une a uma grande variedade de proteínas responsáveis pela síntese de enzimas que alimentam bactérias infecciosas, deixando-as sem ação (petrificadas, mudas, hirtas, boquiabertas com o assassinato em massa, o genocídio espectral que, de repente, começa, graças a algo com massa molecular 419,45 e praticamente, praticamente, indissolúvel em clorofórmio).

O Ácido clavulânico (utilizado farmaceuticamente na sua forma de sal de potássio, chamado de clavulanato de potássio) é um fármaco que age inibindo a ação das beta-lactamases (não das hexa-Larousses, óbvio) que são enzimas responsáveis pela perda de ação de algumas classes de antibióticos. O ácido clavulânico acaba funcionando como um agente protetor do antibiótico (benditos escudeiros, dentro de mim, Sanchos Panças em batalha), protegendo-o do ataque da bactéria resistente aos antibióticos. Trata-se de uma associação medicamentosa que propicia uma ação combinada para combater bactérias patogênicas resistentes (elas resistem. É dura a batalha).

38.

A bactéria atacada pela amoxicilina.
A bactéria tentando atacar a amoxicilina.
O clavulanato, galante,
impedindo os ataques do segundo tipo.
Tudo dentro de mim.
Os corpos,
numa trilha de pus,
boiam
em lugar nenhum.
Dentro de mim.

Não eram as amídalas então.

39.

Meu sangue é vermelho e grosso, como um bom sangue deve ser. Ele escorre para fora das veias com pressa e se não fosse o algodão que a enfermeira rapidamente aplica sobre o buraco aberto pela agulha, tenho certeza de que ele escorreria todo, empapando o chão do hospital. Ele é ansioso. Ele quer ver mundo, ele mal se contém nos muitos tubos de ensaio. Ele não é um sangue que queira ser esmiuçado, examinado, lido nas palavras científicas dos homens de bem e de branco. É um sangue propenso a tragédias o meu. Quer escorrer de preferência na rua. E aparecer no jornal.

40.

Em uma semana os exames ficam todos prontos. Como se eles adiantassem. Como se a febre não subisse, a me devorar. Toda ela vinda de lugar nenhum. É quando eu perco mais três quilos. São quase dez já. É quando eu tenho, também, uma ameaça de convulsão.

Os exames são mapas astrais. Só os iniciados sabem decifrá-los. A médica mergulha neles, traça linhas, desenha retas, tira e coloca os óculos muitas vezes, como se isso lhe ajudasse a pensar. Ela emite grunhidos de entendimento. Ela quer me dizer alguma coisa. Qualquer coisa. Eu leio em seus olhos, ora com óculos, ora sem, que ela ficaria feliz de me anunciar até qualquer morte prematura. Um câncer, quem sabe. Qualquer tentativa de me diagnosticar, de me conter, de me explicar.

Mas meu sangue é feito para mais do que isso. Ele não me revela fácil assim. Ele me pulsa forte nas veias quando escuta que os exames não mostram doença alguma. Apenas, quem sabe, um princípio de anemia.

41.

ERITOGRAMA
                                 RESULTADO            VALOR DE REFERÊNCIA
HEMÁCIAS.........:  4,45 mi./mm³    4,1 a 5,7 mi./mm³
HEMOGLOBINA......:  13,20 g/dL      13,5 a 17,5 g/Dl
HEMATÓCRITO......:  40,00           38,00 a 50,0 %
VOL. GLOB. MÉDIA.:  89,89 fL        80,00 a 95,00 fL
HEM. GLOB. MÉDIA.:  29,66 pg        26,0 a 34,0 pg
C.H. GLOB. MÉDIA.:  33,00 g/dL      31,0 a 36,0 g/dL

42.

A hemoglobina (frequentemente abreviada como Hb (o que, para mim, faz muito sentido)) é uma metaloproteína que contém ferro (indispensável em qualquer guerra) presente nos glóbulos vermelhos (eritrócitos, caso você os conheça somente assim) e que permite o transporte de oxigênio (tudo respira) pelo sistema circulatório. Composta de 4 moléculas proteicas de estrutura terciária e 4 grupamentos heme que contém o ferro, cada íon ferro é capaz de se ligar frouxamente (com descompromisso, em um relacionamento apenas casual) a dois átomos de oxigênio, um para cada molécula de hemoglobina. (As minhas se descontrolaram então. Não há moléculas suficientes. Sobra oxigênio perdido. Ele não é levado para lugar nenhum. É nesse lugar nenhum que me inflamou algo, algo que nem a médica, nem os exames sabem dizer).

43.

Mas eu sei. Com a febre em 43 graus eu sei como chegar lá. É passando pelo buraco da Alice no muro. É atravessando o caos das cidades desertas, todas elas explodidas na última hecatombe. É seguindo pela devastação, pelo verde que agora violenta os prédios, os shoppings, as lojas onde manequins de marca se atolam no inço bonito e florescente. Eu sei. Eu sei atravessar as ruas desertas, olhando o céu com o mesmo verde pálido que ele tem desde que quase tudo morreu. Eu sei olhar os cervos de duas cabeças, bebendo nos lagos amarelados, sem me enregelar, fazendo até carinho no focinho dócil e dando a morder a outra mão por aquele que parece vindo do Hades.

Mas eu sei. Sei cruzar sobre corpos, desatolar minhas botas Sandro Moscoloni dos crânios putrefatos, arrancando brincos de pérolas do solado, como se fossem tachinhas sem importância e não o presente que Ludmila ganhou em sua festa de 15 anos no Gran Palazzo. Eu conheço o mapa, a rota. Pela primeira vez, eu, que sou todo desorientação, sei para onde ir. Sei de onde vem a inflamação, a febre, o ladrão de Hemoglobina que vive dentro de mim.  Sei onde fica aquela casa. A de quartos trancados, de paredes mofadas, de janelas lacradas e de café ainda frio, vertendo, em movimento eterno, de cima da pia. Eu sei que as samambaias, as mesmas que jogamos fora, renascem no lixo, indomadas.


Mas eu sei. Eu sei porque quando vou chegando perto ouço a música tocar. Um blues ainda mais triste só porque contrasta com as gargalhadas das outras duas. Sentadas em suas malas, dentro de mim, elas me esperam chegar para quebrarmos a porta da casa. Perdemos as chaves, todos os três. Mas elas me esperam e riem. Esperam e me abraçam tanto quando eu chego, que me sinto enfim amado. Amado pelo que eu sou: letras apenas. Letras aqui. E então eu compreendo que não há clavulanato nem amoxicilina que me sarem. Não há hemoglobina que me defina. Para a minha doença não há nem causa, nem cura.

Há a febre.
E ela é crônica.


Estamos de volta.