quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

rENÚNCIA - por Simone Huck

Géraldine Georges

Havia sangue em todos os cômodos do pequeno apartamento. Havia sangue em sua roupa. Entre sua saliva. No meio das suas tranças e pernas magras. Havia sangue em suas lágrimas. No meio das coisas que não foram percebidas. Tudo fora tingido com a mais violenta intenção. Não; não queria fazer nenhum mal. Não havia ódio. Talvez houvesse o contrário disso: rastros de um hediondo amor que lhe secava a boca e os cílios. Precisava libertar-se e não sabia fazer de outra forma. A violência permitida pintava as paredes e o corpo e finalmente lhe trazia paz. Quando a alma grita, o corpo descansa. 

Um copo de vinho, ou de sangue, ou simplesmente silêncio. O vermelho era doce. Lembrava uma bandeira branca que a seu modo, declarava paz. Paz escorrida.

Naquela noite ela dormiria numa poça de sangue sorrindo. Quando ele entrasse pela porta do pequeno apartamento não teria mais dúvida de que era amor. Amor líquido.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

"dOCES DELETÉRIOS"- por Adilma Alencar.


Eu comprei um livro do Manoel de Barros, quero que você experimente as palavras que eu como toda semana, elas acompanharão nossa salada e nosso chá. Haverá sempre humor, isso não impede pequenas violências, sobretudo essas inevitáveis, de quando a gente cresce o afeto e o abraço prende as cinturas, mas há de existir sempre uma delicadeza nova para despir o corpo cansado.
Eu ando só. Costurando saias e guardando intenções, usando de ternura para moldar os ponteiros.
Hoje eu comprei um anel com uma pedra verde, pensei em comprar um vinho para acompanhar a degustação poética que farei junto às borboletas que invadem a casa pela manhã, talvez um dia você esteja para me acompanhar. Não estranhe as refeições sem hora, às dez da manhã em dia de sol é o melhor horário para comer palavras de prego, mel e pão, as palavras do Manoel de Barros sujam a gente de infância. Eu vou aprender a costurar as suas cores preferidas dentro de seu tamanho e sabor.
No inverno viajaremos em xícaras de chocolate com assonâncias de cobertor quente, vou desejar morar no seu colo e refazer o caminho da escola, quando eu não conhecia os museus e os acadêmicos com soluços de certezas. Eu sei que vai rir de mim, quando eu falar bobagens alegóricas e quando eu fizer do teto uma tela ,eu vou dividir com você minha alegria de descobrir, no centro da cidade há um bar muito enfeitado, onde violões enfeitam o teto. Vinis, livros e vitrolas se amontoam ao fundo do estabelecimento enquanto as pessoas bebem, onde se você quiser você vai levar sua solidão para beber sereno, há sempre um poeta vendendo verso avulso, um ambulante vendendo colares coloridos, um morador de rua que toca um samba de Nelson.
Roxo, azul, amarelo, bege, preto, branco, eu vou gostar das cores que vão cobrir seu corpo, seu sofá.
Vamos cuspir provérbios e escrever poemas modernos, poema unha, poema arrepio. Vamos içar signos de um lago virgem, significar gaivotas, pombas, postes, páramos, pertencimento, pinça, sabonete.
Vamos fugir à luta e cair no colo.
Que o grande esforço cotidiano de chegar, partir, produzir, ser, ter, parecer, reaver, anotar, parcelar e planejar seja menor que o movimento das nuvens quando a tarde cai que os raios, trovões e atrasos não nos roubem o olhar sobre as gotinhas de chuva que enfeitam a janela, de onde sempre dá pra ver alguém com um guarda-chuva vermelho dançando com o cinza vivo da cidade.
Matar a sede. Manuscrever as palavras: CEP, remetente, saudade. Fazer laço de fita verde naquela coletânea de crônicas do seu escritor preferido.
Mostrar minha tatuagem nas costas e dobrar minha coberta, finalmente arrumar o quarto.
Os agrupamentos rotulares serão vistos de longe de onde estivermos.
 As pontes que nos levarão ao céu são de carne, saibamos. São passos, pele, unha, gengiva, retinas, movimento na matéria, poros, cílios, cintura, movimento.
 Acerca da lógica que produz o nada, sobre o abismo que a linguagem discorre, descortina, forja e institui,deixemos para mais tarde. Sejamos comovidos e comoventes ao bater das asas das borboletas num céu de verão, ou ainda e mais às flores ao chão querendo o nosso olhar, que nunca nos falte uma pétala para nos lembrar de cor e maciez, de comida e vida.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

ENCONTRAR o desencontro - Por Vinícius Linné


Procuro nas poesias, nos homens que se desfazem em borboletas de papel, nas mulheres que cantam para as paredes amarelas, nas janelas que se entopem de tanto mostrarem a mesma fábrica de fumaça suja... e não encontro.

Procuro nas grandes alamedas, nos segredos só contidos nas tatuagens (minhas e alheias), no chão encerado que reproduz o sol, nas procissões dos mortos, nos ventos que batem janelas, nas meninas que dormem nas cadeias... e não encontro.

Procuro na bagunça dos lençóis manchados de porra, nas fotografias de quem nunca existiu, nas contas de um rosário azul, no abraço de quem vem avisar que a morte há, no medo da criança, no asco da velha, na trepadeira que enredou menina, machado e flor... e não encontro.

Procuro nos sapatos vermelhos deixados no jardim, nos sapatos brancos esquecidos no hotel, no violino que um carro despedaçou ao passar por cima... e não encontro.

Procuro nas velas, nos livros que os outros leem no metrô, nos sorrisos que quase não me dão, na flor que algumas mulheres ainda usam, na rua molhada de chuva, suor e negror, na pintora pessimista, nas ninfetas do vernissage, no último beijo do casal de um filme em preto e branco... e não encontro.

Procuro na máquina de escrever que herdei de quem ainda vive (só não entre nós), no café que me arranca a pele da boca, na janela quebrada, remendada com fita barata, na cortina comida por traça, no pão perdido da sacola... e não encontro.

Procuro no abajur inútil ao sol, no sono de quem não dorme, na pilha de livros que está há dois meses no chão, na roupa que desprende do varal e cai, na bicicleta que range ao passar, na carta escrita em um caderno qualquer... e não encontro.

Mas se em nenhum lugar eu sou capaz de encontrar, mesmo com a cólera que cada busca me dá, é porque não existe. Não existe. Não existe sentido para a vida.

E saber disso é encerrar a busca.

E encerrar a busca é o que se faz quando se encontra.

E encontrar é já não mais querer.

Não quero, portanto. Não quero o sentido. Não quero o sentir. Nem sei se a vida eu quero ainda.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

vIA-SACRA - por Simone Huck

Géraldine Georges

Ela entra no carro com dificuldades. Ainda se recupera da última cirurgia. Parece um agricultor dos infinitos campos de arroz do Camboja, cansado e com fome de esperança, tentando equilibrar entre seus dentes alguma palavra capaz de sorrir. Seus olhos verdes me encaram. Sorrio sem graça. Ela corresponde. Não contei tudo sobre sua doença. Tenho a sensação de que ela pode descobrir minha mentira. Seu otimismo é colorido. Guardo minhas mãos trêmulas no bolso. Meus dias andam cinzas. O bicho de muitos braços está no banco de trás do meu carro, vai pra clínica conosco. Não posso olhar no retrovisor. Sou um motorista sem estrada, covarde, tentando encontrar o caminho de volta pra casa. Nossa casa não existe mais.

Na rodovia ela implica com meu GPS. Diz que a moça que dita as coordenadas não sabe dirigir. É burra e repetitiva. Ela se irrita. Eu já não sei mais o que é viver sem estar irritada. Tento amenizar os caminhos de sua Via-Crúcis colocando uma música. Ela tenta me falar de Jesus. Só consigo pensar no momento em que Ele foi condenado. Todos nós seremos martelados num pedaço de madeira. O bicho de muitos braços sorri no banco de trás. Lê pensamentos. Pelo retrovisor me mostra um saco de pregos e diz que vai pregar um por um de todos os seres humanos da face da terra. Estar vivo é a nossa maior ameaça. Nossa crucificação é fato.

Sempre imaginei carcinomas como um bicho cheio de braços que lentamente abraça nossas vidas. A ciência sempre me pareceu bonita quando não estava em minha casa. Agora ele senta no sofá. É feio. Ofereço-lhe café e não sei com qual dos braços receberá. Temos que ser amigos. Seu hálito quente toca minha nuca. Farei de tudo para protegê-la. Sou um kamikase pronto para atacar.

Nossas últimas semanas tornaram-se um amontoado de horas, segundos e laudos. Sentenças impressas e contraditórias. Médicos lunáticos e inseguros. Estamos numa torre de Babel e ninguém sabe onde está Deus. Acelero e questiono:
- Já é dezembro, mãe?
- Não filha, acabamos de sair do carnaval.
- Mas eu não fui pra avenida.
- Eu fui, na ala cirúrgica.
Acho graça. Herdei seu deboche. Ajudo-a a descer do carro. Em meia hora começará outra bateria de exames clínicos. Em segundos a vida me transformou num soldado pronto pra guerra. Ela elogia minha camisa e vê minhas medalhas. Acredita em mim. Lidero o pelotão. Iniciamos as buscas. Quando o alvo for encontrado, não restará um só dedo do bicho de muitos braços para segurar a caneta e escrever nossa Via-Sacra. Já que ainda estamos em fevereiro, matarei o inimigo ainda no tempo da quaresma.
   




terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

mADALENA - por Adilma Alencar.




João acordou e cuidou das flores. Preparou café. Não gostava de café, fez só para trazer de volta a graça de Madalena, como se precisasse. Depois do banho, enquanto escovava os dentes olhava o espelho, seus olhos fundos, vermelhos, se envergonhou pelo choro, fora criado para ser homem, homem não chora,dissera seu pai. Embora sozinho, ele sentiu o olhar de reprovação do pai,esfregou os olhos e chorou,voltou para o banho, o barulho da água caindo se misturava ao som do seu soluço, sua humilhação foi lavada ali, com água quente, xampu, sabonete.
Evitou o espelho, abaixou a cabeça, pegou a toalha, cabisbaixo e grave, entoou um samba. Um homem sozinho engasgando um samba quase fado era o avesso das alegorias. A sala era a avenida solitária, onde as fantasias, pequenas pistas de enredos, repousavam à espera de Madalena. Abriu a janela da cozinha. No varal, o sol intensificava as cores azul, verde, branca, da saia que Madalena desfilou sobre seu colchão. Seca e leve, a saia dançava límpida como aquela primeira manhã de ausência.
Na brisa fresca a vida era uma ofensa ao seu luto de ser homem sem Madalena.
Ele, menino, cheirava a renda perfumada da noite que Madalena estava.
O violão convidava João à cadência em Lá Menor, entre seus dedos de tantas linguagens ébrias, era Madalena que silenciava. A flor de pano sobre a cama, desamparada sem os cachos dourados dela. A tristeza do pote de açúcar junto ao de café. Existir entre aquelas paredes testemunhas de tanto visgo de amor era uma ferida nova que fazia de João outro homem, O que podia João diante do cenário vazio? Sina ou cisma?Não se sabe.
_Puta, puta.
Ele repetia. Os nervos do pescoço saltando quentes, nos soluços de raiva e paixão.
Na cozinha, passos lentos entre o fogão e a geladeira.
O pano de prato sujo estranhava a ausência dos gestos femininos, a casa secava sem perfume e sem barulho.
Ladeiras, ladainhas, enredo primeiro amor, nó cego, cipó de corpo junto.
Meses de noites caras, de dias de cio e chuva, cerveja e suor. O preço não excluía o encantamento, antes estimulava, e o sexo tomara a rotina sob seu teto marrom.
Há oito meses, convidara Madalena para dançar, com a intenção de conduzir fora conduzido, hipnose ou a embriaguês de boêmio fez com que o decote de Madalena roubasse a cena. Vaidosa dentro de suas curvas macias, ela sorria e suspirava leve no refrão de Noel.
Perfume, colar, anel e aos seus pés, João. Homem maduro em plena meninice de primeiro encanto, sem dinheiro para mais nada, manter Madalena brilhante custava um coração e metade do ordenado tímido de marceneiro, profissão que aprendera com o pai.
Os encontros, assim como os desencontros, podem acontecer ao acaso, sem explicação.
É a dúvida que desce goela abaixo junto com a cachaça com limão, que João toma entre um móvel e outro, um intervalo e outro.
Ela partiu como tantas vezes partira. Sem dor, com alegria e fome, é de Madalena ser do mundo, do seu mundo.
Foi rainha, foi senhora de João. Teve o homem.
Teve.
Como nenhum homem há de tê-la, teve.
Ela pintou o rosto, os olhos destacados, olhos insinuantes, cínicos, delineados por lápis preto repetidas vezes, sombra dourada como sua alma em dia de avenidas abertas. E batom rosa, escandalosamente rosa, unhas cobertas de vermelho púrpura.
E o olhar de quem acabara de gozar. Assim saiu às ruas, exibindo suas vontades em símbolos vermelhos e macios.
Madalena segue pura de platonismos, isenta da rotina.
Madalena fuma e ri, enquanto passa em frente à Catedral da Sé com um novo cliente.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

sAGRAÇÃO - por Vinícius Linné


Ela aponta para a janela e pergunta:

— Posso?

Por um segundo ele fica atônito. Ela está pedindo permissão para se jogar do oitavo andar? Ela percebe pelo pavor dele a confusão. Remenda-se:

— Abrir a janela, eu digo. Posso? Queria ver a cidade daqui de cima...

— Lógico, lógico. Só tome cuidado porque o trinco às vezes emperra.

Não emperrou. Ela abre a janela e chuva e vento lhe atingem nos óculos. Não importa. Ela mantém os olhos fechados o tempo todo. Ela não quer a cidade, ela quer a chuva e o vento. Ela quer mais daquele momento. Ela sente os olhos dele às suas costas e respira mais fundo. Ela sabe. Sabe que aquele é um fragmento de minuto perdido. Um momento que ninguém conhecerá, que não mudará coisa alguma, que não importará para quem quer que seja.

Anos depois ela ainda se lembrará dessa sensação. O frescor na pele, a paz no peito, o sentimento de felicidade com que a escuridão lhe beija. Ela jamais sentirá isso de novo. Nem nos braços de homens e mulheres, nem no nascimento dos filhos, nem nos aplausos do público, nem nas comemorações dos prêmios, nem nos cheques da editora, sequer no alívio da morte. Ela nunca mais se sentirá tão plena. E ninguém sabe. Nem ele, ali, esperando que ela tome a decisão de beijá-lo na boca ou não.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

vALENTINE'S DAY - por Simone Huck

Geraldine Georges

Teu olho me goza.
Tua boca me enforca.
Tua faca me conta.
Tua palavra me risca.

Teu suspiro me olha.
Tua corda me habita.
Teu beijo me disfarça.
Tua pele me frita.

Pronto. Tatuarei de vermelho e com letras garrafais todas essas confissões no meu antebraço. E com o mesmo antebraço seguido da minha mão, invadirei sua cara com tanta força que construirei um hematoma no seu rosto. Um quadro sanguíneo pendurado na sua cara. E se eu usar o anel chuveiro que você me deu, com diamantes e safiras, conseguirei perfurar seu olho e cegar parte da sua visão. Você merece uma longa vernissage. Teu olho há de me gozar.

Você não poderá falar nada. Farei tudo isso no meio do seu trabalho. Invadirei sua sala de reunião com toda a diretoria. Vou picar aquele vestido verde, da Animale, que você me deu na primeira vez que foi na minha casa. Qualquer semelhança de atitude com o nome da marca não será mera coincidência. Vou deixá-lo bem pequenininho no meu corpo, e olharei para cada homem que tentar te defender e gritarei “quem se atreve a ser o próximo?”. E vou gargalhar muito alto, feito louca, descabelada, com a maquiagem borrada, mas acima de tudo gostosa, muito gostosa. A dúvida não estará em pauta. Teu suspiro há de me olhar.

Depois que eu arrebentar a sua cara. Vou abrir toda a sua camisa fazendo voar botão por botão. Minhas unhas estarão grandes e afiadas do jeito que você sempre gostou. Um punhal de osso humano e quente, pra te fazer carinho, meu bem. E vou cravá-las no seu mamilo, descer pelo músculo reto do seu abdome até chegar na sua crista ilíaca. Onde finalmente perfurarei com cada dedo que você um dia jurou amar, o tamanho da sua mentira. Tua corda há de me habitar.

E quando os seguranças invadirem a sala pra te defender, vou correr até a sua janela no vigésimo sétimo andar e ameaçar saltar, perfumada e linda, a menos que me obedeçam e peguem o seu HD, que roubei da sua casa e trouxe naquela bolsa da Louis Vuitton que você me deu quando me pediu em noivado, e coloquem no sistema de vídeo do prédio todo sua coleção particular de imagens.  Quero que todas as salas e todas as pessoas, dos trinta andares, vejam os inúmeros vídeos eróticos que você gravou jurando que era a primeira vez, das inúmeras mulheres que você disse que amou. Nesse momento, meu amorzinho, tua pele finalmente há de me fritar. E quem gozará, serei apenas eu. Vingada e linda.

"Ops"...borrou o meu batom!
No elevador tem espelho? Preciso me retocar antes de ir sorrindo pra delegacia.


terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

dESFECHO - por Adilma Alencar


Perfumado, bem vestido, limpo e encaixado numa maneira óbvia de parecer, ele saiu às ruas.
Atravessou a cidade e se sentiu seguro dentro de uma virilidade construída. Imaginou indecências observando as bundas nas avenidas. Estacionou o carro na rua. Foi até o bar em que combinara algumas horas antes, encontrá-la.
Ela o esperava com simplicidade e leveza dentro de um vestido verde com estampas brancas e azuis.
Ele falava dos negócios, de política, como se soubesse todas as respostas. Uma segurança que ela desconfiava.
Disse dos planos para fevereiro, do investimento. Negando as afirmativas do discurso, sua mão suava, o pé esquerdo parecia batucar um candomblé insano e bebia mais do que de costume.
Ela estava calma, embora seus olhos escuros já brilhassem o desespero da saudade que viria.
Aquele homem mecânico, aquele homem viril de roupas passadas e sapatos pretos limpos não fora o mesmo que caíra de uma nuvem, com o braço quebrado que ela cuidou, não fora o mesmo para quem ela abrira as portas, os pântanos, as pernas.
Ele não era mais o seu quintal de brincar descalça, abrir zíper, fechar portas, apagar luzes.
O homem no desespero do fim, na música do Cartola, no quinto drinque, pensava nos filhos que não teriam e na dor no estômago que sentiria entre as pernas de outra mulher.
Todos esses pensamentos mergulhavam no suco de laranja dela, boiavam no uísque dele. Fora tudo que se engolia com drinques caros e temperatura arejada, a conversa seguia estúpida e clichê.
Ela saiu, foi ao toalete, retocou o batom vermelho, arrumou o cabelo. Voltou.
Olhou para ele com uma serenidade que já era um argumento. Ele entendeu.
Sem escândalos, tentativas ou lágrimas, aceitaram a linguagem que os gestos denunciavam.
Ela entrou num táxi e chorou até seu apartamento, depois seguiu esvaziando gavetas.
Ele acelerou, acelerou e chegou até o ponto de bala com loiras oxigenadas tão viris quanto ele, não fosse certa névoa de angústia que chega quando o sereno some.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

é CARNAVAL - Por Vinícius Linné

Toca Wagner.

Enquanto desenrola a meia arrastão pela perna, ela sabe. Sabe que a meia se rasgará quando ela for prensada por outro corpo contra um muro de cimento salpicado, isso em um beco qualquer.

O vestido que ela veste pelos pés será arrancado, com fúria, pela cabeça, entre beijos em outro quarto de hotel. E ele amanhecerá em um tapete sujo, estranhamente incólume, com todos os paetês pretos e encarnados em suas devidas linhas.

O batom, vermelho como o inferno, irá se perder na noite, entre bocas e latas de cerveja quente. O rímel, no entanto, não escorrerá dos olhos. Ela sabe. Não haverá lágrimas nessa noite. Já o gliter da sombra, que ela agora espalha com cuidado imenso, partirá para incontáveis outros corpos, em esbarrões e beijos e mãos que cobrirão seus olhos.

A máscara que ela veste agora, de renda negra e cristais de luz, será encontrada só amanhã, por alguma criança ao atravessar a rua. O perfume intenso que ela borrifa em si amanhecerá inesquecível para alguém.

Ela calça, por fim, as botas, cujo salto só quebrará de manhã, na volta para o seu quarto de hotel. Embora, ela saiba: os tacos serão perdidos muito antes.

Já pronta para sair, desliga Wagner.

Naquele instante em que tudo se faz de mais silêncio, ela encara-se uma última vez no espelho grande.

Não! Não queria isso...

Não queria enxergar-se ali, pintada feito uma palhaça, vestida como uma prostituta, toda disposta a se expor ao suor dos outros, a se degradar pela cerveja (que de mais a mais sempre julgou amarga), a ouvir um ritmo que nunca gostou e nem soube dançar.

E agora como? Como ao voltar à consciência de si ainda ir ao baile? Como se anestesiar novamente? Como acreditar outra vez que por uma noite (uma noite só!) ela poderia ser banal? Sem vulgaridade, sem objeções, só banal. Só simples. Só capaz de ouvir a música e mexer o corpo e rir e se deixar entorpecer pelo álcool e pelo cheiro do que lhe é alheio.

Ela não sabe. Não sabe mais como.

O rímel dos cílios borra enfim. Ele parece escorrer em slow pelas rendas da máscara, encontrando caminhos.

Os olhos fecham. Quando abrem novamente, focam o livro de Tólstoi sobre o aparador, o corpus de sua tese de doutorado. Seu corpo perde de vez a determinação, seu ar a graça, seu gliter o brilho.

O perfume que infecta o quarto de repente é doce demais. Ela abre uma janela e, ainda arlequina, senta-se na cama com o Tolstói nas mãos.

Continua. Continua a releitura na página dezenove.

Lá fora, lá fora tudo é barulho.

Afinal, é carnaval.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

pRÓXIMA QUINTA-FEIRA - por Simone Huck

Caros leitores, por motivos de força maior, a crônica desde dia ficou no silêncio.
Aguardo vocês na próxima quinta-feira.
Obrigada e até breve,
Simone Huck

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

dAS COISAS QUE EU NÃO SEI - por Adilma Alencar.


Sobre seu colo, com sua mão direita quieta sobre minha testa, eu chorei, com um pouco de vergonha por estar diante de um estranho, tenho por estranho quase todo o mundo, fato que não significa falta de amor ou mesmo intimidade, o outro é sempre estranho.
Eu quis dizer que às vezes sinto dor, sem ferida assim aparente. As coisas que machucam saltam, descaradas, por trás das cortinas, dos muros, uma tensão no discurso do mundo, os símbolos que nasceram rente à carne vão perdendo o fio e constroem já outro mundo, onde o horizonte é quadrado e os olhos são de outro que vê.
Eu não sei entender o mundo e não sei qual o espírito que liberta carne. Há espírito.
Eu me deito com alegria entre mil pétalas amarelas, nua como vim e vou daqui, sem glamour, sem sedução em carne.
Não é só de cio e sangue que meu corpo está no mundo.
Se deixa que meu desespero pouse em seu colo e me faz livre pra ser sono e água, se confia sua mão terna sobre a testa delirante em que meu pensar cisma. Toma meu corpo como pão e alivia meus pés cortados de vidro e arame.
Mas saibamos, unindo a carne, nos perdoar a rebeldia do espírito.
O corpo é domesticado pelo espaço, pelo jeito de dormir, modo de gozar, as vontades não. Elas saltam, sãs, maciças em ímpetos de voos e abismos.
A morte virá com um nome: homicídio, infarto, queda... Apuremos o sentido para a música, para o silêncio que a vida alcança.
Se o verso do poeta alivia minha ferida, se nas dores que meus nervos reclamam eu tiver flores para oferecer, haverá então lágrima, haverá milagre. Pois é do homem dar símbolo ao desespero contínuo da vida.
Eu choro, eu calo, eu também canto. Tenho febres que duram semanas, vejo anjos me afagando o rosto e sei da eternidade que o espaço desenha.
O pão pressupõe o suor anêmico do homem angustiado pelo itinerário. Santificaram objetos de tortura, não vê?!
Grandes monumentos saudando a guerra, o fogo. O código quer substituir a vida, chorar virou doença, sorrir virou ordem, no meio do caminho quem conseguiu ser gente, hesitou.
Meu riso às vezes quer cuspir um cansaço, outras, amor, porque eu me alimento de sol, lua e também, hoje, com um pouco de sua saliva.
Deixe também, se puder, que eu derrame essa ternura muda sobre seu corpo quente, quente em veias cheias, em vertigens de tantos desejos, de cansaço, de banho.
Todo ele, força e medo.
Não tema todas as coisas que eu não quero. Eu não quero precipitar a morte diária de uma mulher, não serei sua. Não faça de mim sua oferenda, já não há nó. Não vê que eu não caibo dentro do seu verso cotidiano, meu choro ofende sua certeza de ser visgo, de ser terra.
Minha tristeza é altiva e escorre no meio da tarde,assim como sob a lua, eu banhei você com a serenidade que roubei de uma deusa nua com quem dormi uma semana que me valeu a vida.
Eu chorei, porque eu sou sensível ao sereno que entra pela janela.
E estar em hipnose com a fertilidade da vida me alarga o peito, e agora eu jogo rosas para a miséria dolorida que teima em ofender os crepúsculos em que deus escorre laranja dignificando o homem,ofendendo o homem,a beleza pisa em mim.É um deleite.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

há VAGA? - por Vinícius Linné


— Há espaço nos teus textos? 

— Como?

— É. Há espaço, há vaga para fazer parte deles?

— Não entendo... 

— As letras, só as letras nos fazem imortais e eu queria, portanto, virar letras, ter espaço nos teus escritos, me mudar para dentro deles e ser importante em qualquer parte. Até onde vão esses textos teus, por falar nisso?

— Eu... eu a bem dizer não sei.

— Não importa. Há vaga? Eu sei.... sei... sei que não posso morar nos textos assim, direto. Eu entendo que primeiro eu preciso morar nos teus pensamentos. Eu preciso viver neles, abrir as janelas quando amanhece, fechar quando a noite chega, cuidar de matar as raposas no sótão e calar os cães no verão. Pago adiantado qualquer aluguel. E eu sei também que quando morar nos teus pensamentos por tempo suficiente, eu precisarei me mudar. E vou, vou abrir caminho entre mata fechada e poder, enfim, lotear teu coração. Sei. Sei que lá o barulho é mais calmo, o tempo é mais quente, o ritmo é mais incerto. Sei, mas me disponho de qualquer forma. Eu capino o terreno, reformo teu peito, conserto tudo que estiver quebrado. E ali fico morando até que, enfim, eu possa caber nos teus textos. Do pensamento ao coração, do coração aos textos. É esse o fluxo, é esse o caminho, eu sei. E não me importo. Quero. Há vaga?

— Se houvesse, mesmo se houvesse - e não digo se há ou não há - tu não ias gostar. Meus textos tem espaço demais, imensidões de solidão. A delicadeza deles é escura e lá faz sempre frio. O amor é quebrado, o ódio inteiro, o sofrimento intenso. Nenhum texto meu acaba bem. Então para que morar lá?

— Porque às vezes o sofrimento é mais bonito que a banalidade. A delicadeza, mesmo escura, é ainda delicadeza. E necessária. Então eu não me importo. Eu sei, sei que há infiltrações nos textos teus, e solidão e descaminho em cada letra. Sei que lá não há chance de final feliz. Mesmo assim eu quero. Há vagas?

— Meus textos são maldições, não quartos de porões que podem ser alugados.

— Mesmo assim. Se de um deles só eu fizer parte, já terei realizado o que de mais bonito eu poderia realizar. Eu já teria me convertido no sentimento de outro alguém. Eu já deixaria minha marca impressa em outros olhos, em outros peitos, em outros ossos. Eu já não seria mais sem motivo. Eu teria razão, eu teria porquê. Enquanto aqui, fora dos teus textos, sou só desproposital. E então, há vagas?

— Houve. Houve...