"Peace", 2014 - Santorini, Simone Huck
Nossas palavras
paraplégicas confundem-se enquanto caminhamos sobre as inúmeras
flores dos ipês rosa espalhadas pelas ruas da cidade. Ruas
coloridas vestem-se de flores mortas. Tudo se tornou tão dúbio de
repente. Êxodo de pétalas e células que o vento e o sangue
carregam para outros lugares. Um dia, perderemos o controle de tudo.
Já perdeu, mãe?
Seu
cabelo esbranquiçado e seco entre meus dedos. Quando eu era pequena, você me dava banho de sol e penteava meus cabelos. Tentava me proteger do futuro de flores mortas. Não deu certo. Claustro sem deus. O mundo nunca me
pareceu tão pequeno. Deserto de paroxismo. As
células nunca mais disseram nada que eu e você gostaríamos de
ouvir. Está me ouvindo, mãe?
Enquanto
caminhamos pela rua dos ipês, seu corpo magro sorri e sente sede.
Você nunca perdeu o sorriso. Eu me tornei muito mais cinza desde que
você ficou doente. Um copo de água para hidratar a cura que nunca
existiu. Já parou uma gota de chuva com a ponta da língua, mãe? A
mesma língua que sente as drogas, a fome, a fé e o céu.
Repouso
meus braços em seus ombros e penso no quanto eu queria lhe salvar
desses dias tóxicos. Disfarço. Guardo as lágrimas no oceano do meu
casaco. Estou me tornando um mar estagnado. Já se afogou, mãe?
Atravessamos
outra avenida que não chegará a lugar nenhum. Entramos no carro que
nunca chegará ao céu. Vamos para casa. Você precisa descansar e
orar. Você sempre ora. Já se passaram quatro anos desde que tudo
desabou e você ainda ora. A oração me intimida. Talvez, meu
terço surdo seja de plástico, como o fio transparente por onde
desce a droga que invade sua alma e corpo cansados. Deus acredita em quimioterapia, mãe?
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ResponderExcluirTanta poesia numa doença, como é que pode?
ResponderExcluirMuito bom, Huck. Muito bom.
Seu texto umedeceu as paredes daqui, a maresia tomou conta de tudo. Da sala de informática, da escola, das nuvens que cobriram de repente a cidade inteira.
ResponderExcluirHoje de manhã eu ainda tirei uma foto do chão coberto de ipês...
Eu senti cada letra desse texto em mim. Fui oceano também. Oceano triste.
Hoje, na saída, vai chover. Tenho certeza.
Seu sentimento é lindo, ainda que melancólico até a medula.