terça-feira, 30 de julho de 2013

dESRAZÃO - por Adilma Alencar.


Que esses seus lábios ateus rebocados de vermelho melancia saibam bendizer nosso amor em tempo pretérito. Eu vou enlouquecer docemente entre outras coxas, entre outras avenidas.

Nosso filho, rosto meu, rude e grave e olhos seus, cínicos e moles. Ele ficará sob o teto que agora será só seu.  Os finais de semanas serão sempre a previsão de nosso encontro, onde sua liberdade e meu descaso com o corpo certamente me darão constrangimento.
Cinco anos acordando com sua mão sobre a minha. Certamente essa ausência carente de razão me trará uma gastrite. Nervoso, eu sempre fui muito nervoso.
A minha barba já começa a demonstrar minha preguiça de acordar, ela cresce e fecha meu rosto para o mundo, esconde pele, e riso há muito já não vem.
As minhas calças amassadas também denunciam meu descaso e eu não quero conquistar outras mulheres, semana passada paguei por sexo, não o farei mais, ando carente de palavra e os xingamentos dela já me deixaram lírico tal é meu estado de solidão.
Uma puta pisou no meu corpo tão seu durante cinco anos, tão seu quanto meus olhos que agora boiam pelo Tietê, decotes gulosos, pés coloridos, flores baldias, sempre com o mesmo gesto de dureza.
Eu não vou àquele Congresso de Filosofia da Linguagem, eu sei que esperei por anos para que enfim ele fosse realizado perto da nossa cidade.
Eu vou dar um tempo, meu bem.
Eu sei de minha decisão de partir, sei o buraco que abri nesse peito seu, eu vi, fiquei à espreita naquela noite que antecedeu o fim, saí do sofá e testemunhei sua agonia. Nua e alva às três da manhã com meu retrato preso ao peito enquanto fumava e soluçava como uma menina que de repente perde sua boneca preferida, choro e lágrima de mulher que durante os eternos cincos anos chamei minha.
Eu sei que me falta palavra e que a adoeço com esse repente de partir, não ignore meu amor eternamente seu, não ignore meus traços no seu filho, não odeie nossos dias santos, nossos olhares à mesa de jantar e minha ternura que tantas vezes tomou seu corpo em gozo e força.
Um homem também chora pérolas e pena sozinho a chegada da solidão arrebentando o peito.
É também por amor que eu saio de sua cama.


segunda-feira, 29 de julho de 2013

tERCEIRA ESTAÇÃO - por Vinícius Linné

Como se eu tivesse pedido uma passagem a Pasárgada. E como se me tivessem entregado de bom grado. Como se eu tivesse me apinhado no trem, tremeluzente de bagagens amarradas e malas de madeira. Como se o trem, de tanto chacoalhar, embalasse em mim um sono bom.

Como se a estação chegasse sem que eu visse. Como se o bilheteiro me sacudisse inteiro. "Senhor, senhor! Pode descer. É sua parada". Como se de ramela fresca e olhos baços eu descesse sem perguntar por nada, nessa minha ânsia maldita de jamais atrapalhar.

Como se eu tivesse reunido malas, gaiolas vazias e cachecóis vermelhos. Como se eu descesse. E só então - só então - me desse por conta: mas não é aqui! Como se o trem já tivesse se afastado depressa demais, cuspindo fumaça enquanto o bilheteiro se ria todo por dentro.


. . .


Como se essa fosse uma estação na qual jamais se quer parar. Como se a minha vida agora fosse essa, só isso. A terceira estação. A queda. A parada. Sempre igual. No meio do nada. Com a eterna sensação de "mas não é aqui."

Como se houvesse, em outro lugar, uma vida toda urgente e vazia de mim. Como se o trem nunca mais voltasse. Como se nenhum trem passasse novamente nessa estação em que eu, despreparado, fiquei.

Ah, Pasárgada. Ah, a vida. A outra vida. Quem me dera ter incomodado melhor. Ter perguntado, ter feito. Não o fiz. Fiquei. Fiquei e o longe é imenso para qualquer lado em que se olhe.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

bREVIÁRIO DUVIDOSO - por Simone Huck

"Babel", 2010 - Simone Huck
Encáustica s/tela 

23.07.2013: Nevou no sul do país tropical. Foi uma festa. O papa tirou o dia para descansar. Sem festa. Vi mais um desconhecido defunto quando ia para o trabalho. Outro caixão anônimo. Lágrimas alheias, às vezes, não molham. Vinte e três de julho de dois mil e treze. Tenho treze dúvidas e duas mil confissões. Quem poderá me ouvir? Nem Francisco. Pastor. Monge. Preta Velha. Ninguém! Anunciam que será a noite mais fria do ano. Minhas intenções cansadas continuam quentes, não possuem cor de neve, nem ouvidos que as ouçam. Tenho vontade de desligar o interruptor dos dias. A mãe também anda cansada. Hoje foi dia de nova consulta. A oncologista, atenta, discute comigo a logística da doença. O câncer tem organograma. Queria ter vinte e três anos novamente. Mais uma tomografia para controle. O meio do caminho pede novas investigações. Será que será que será? Será que a quimioterapia está algemando as mãos do invisível? Será que o papa rezou antes de deitar numa cama carioca? Amanhã é rodízio do meu carro, não vou para São Paulo, não entrarei pela lateral do velório para seguir até minha sala de trabalho. Não será dia de ver defuntos ou lágrimas desconhecidas. Talvez tenha neve. Talvez o papa tenha pesadelos. Talvez terei vontade de chorar lágrimas secas.

24.07.2013: Hoje é dia de quimioterapia. Já separei o casaco, o cachecol, as meias e recomendei que a mãe leve um cobertor para se enrolar nas quatro horas em que a droga entrará pelo portocath, o cateter instalado em seu coração. A droga entra por ali. Na veia cava de um coração com medo. Será que o coração de um papa tem medo? Francisco fez uma missa em Aparecida. Aproveitou e foi pedir ajuda para a mãe brasileira. A mãe dele, que também é sua, minha e de quem quiser - diz a lenda. Será que essa mãe tem medo como a minha? Quais medos que os defuntos que vejo diariamente pesam em seus caixões? Não nevou. Não houve festa. Agora sou eu quem cuida da mãe. Sou mãe de mãe. 

25.07.2013: A vida segue por alguma bifurcação. Tenho um organograma para cumprir. Quando chegar dezembro, será Natal. Não poderão fazer bonecos de neve no sul do país tropical. O papa estará em sua casa. A quimioterapia terá acabado. A mãe será uma diástole feliz. Eu continuarei sendo uma sístole em crise. Moraremos todos no coração do papa, ou de Aparecida, ou dos defuntos que diariamente pesam dúvidas em caixões que não falam. Talvez eu tenha encontrado a coragem para sumir. Desaparecida será meu nome.

terça-feira, 23 de julho de 2013

lUZIA - por Adilma Alencar.

Ela beijava o gesso como se invocando o signo a lágrima lhe fosse justificada.
Qual o tamanho do buraco que a morte abre nos olhos dos que tem os dias para sempre aleijados?
Para quem perde um amor para o mistério da matéria a morte é um aleijo.
Sempre órbitas boiando em rosários, em altares, em cordas, balas. É sangue no olho e verbos anêmicos apodrecendo em coroas de flores eternamente vistas. O buraco nos olhos de Maria nasceu da coroa de flores que enfeitava Miguel.
Maria veste-se com simplicidade augusta, saias de filó, vestidos em tons claros, alvos.
Os olhos crispados de uma loucura mansa fazem dó aos conhecidos seus.
Diariamente atravessa a avenida com flores e rosário nas mãos, quebra os joelhos junto à imagem de Santa Luzia colocada ali no dia do enterro, chora até o soluço lhe saltar seco na garganta.
Maria morrera junto com Miguel, embora à Maria fosse dada a cruz da matéria, presa num corpo que como um cão fareja o dono e segue seus passos, ela vive a loucura que cintila no seu olhar, acaso não é loucura,saibamos,é sinal de aleijo, falta-lhe a alma.
Desde que sua alma partiu, seu itinerário é: seu quarto, o corredor, a sala onde um quadro do Elvis enfeita a parede. Ali simula seu martírio de cemitério. A família a internara desde a morte de Miguel.
Ali jaz Maria, sanatório Santa Luzia, bairro das Flores.

segunda-feira, 22 de julho de 2013

hETERÔNIMOS - por Vinícius Linné

White paper -  Emily Jones-Blachowicz


Meus textos se apagam. No começo eu nem notava, são tantos e há tão pouco espaço na vida para eles. O que são palavras tolas escritas, afinal? Mas então eu percebi. A pilha de papéis nas gavetas, os rascunhos amassados nas caixas, as últimas folhas dos cadernos de contabilidade, tudo foi sumindo. Aos poucos. Bem aos poucos.

As letras se apagavam e, quando eu queria buscá-las, tudo que encontrava eram folhas quase vazias. Os desenhos ficavam. Os borrões também. Só as palavras sumiam. Elas eram como que absorvidas pela cor do papel, sem deixar marcas, como se nunca tivessem existido.

Eu falei para o meu psicólogo na última consulta. Eu falei tudo a ele. O que ele fez foi tentar encontrar um significado subconsciente, quase como se decifrasse um sonho. Não era sonho. Eu escrevi na frente dele. Uns versos simples. Pedi que ele guardasse no cofre. Ele guardou. Guardou com o enfado dos descrentes. Guardou para que eu me convencesse de que isso era impossível. Ontem ele me ligou. 

A folha está em branco. 

Ele pediu que eu não o procurasse mais. Ele diz que se me vir novamente, a polícia saberá que invadi seu apartamento, arrombei o cofre e tudo para trocar um mero papel. Tudo para enlouquecê-lo ou para convencê-lo da minha própria loucura.

Eu não tenho mais um psicólogo.

O que eu quero agora é me inscrever no texto. Profundamente, como fez a mulher morta. Ela fez para que sobrevivesse, para que pulsasse eterna. Eu quero fazê-lo para que eu possa sumir de vez. Como somem as minhas letras. Como somem as minhas palavras. Como tudo some quando você, meu caro, chega aqui para me roubar os restos de alma e depois publicá-los como seus.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

o ÚLTIMO GOLE DE MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO - por Simone Huck



Há um silêncio em seus cafés. Disfarça. Fecha os olhos no último gole, antes da xícara esvaziar. Mário de Sá-Carneiro tem medo de fundos vazios. Revelam a mesma face. O autorretrato dela, ou seria dele?, mora no fundo de suas xícaras de café. Ele finge que não vê a exposição. Pega um pedaço de guardanapo e rabisca alguma coisa que só a sua agonia entende “...e o carmim daquela boca Que ao fundo descubro, triste, Na minha ideia persiste E nunca mais se desloca”.

Dentro da despensa. No bar. Na lanchonete. Nas latas de lixo com restos de cacos e borra de café. Nas reuniões. Na casa dos amigos. No trabalho. Durante o dia. Durante a noite. Quando não é dia nem noite. Ela, ou seria ele?, está ali. Insistente. No fundo de cada xícara. Persistente. Ególatra. Desenhando traços em sua memória. 

Mário de Sá-Carneiro está cansado de fugir. Aos poucos, vai abandonando sua alma. Quer esquecer. “Eu não sou eu nem sou o outro, Sou qualquer coisa de intermédio: Pilar da ponte de tédio Que vai de mim para o Outro”.

Ela, ou seria ele?, mora debaixo do tênis sujo de barro da população universal, misturado a cocô de cachorro, grama, escarro e restos de café que um bêbado atirou no asfalto achando que era cachaça. Eles andam bêbados dela, ou seria dele?,. Mário de Sá-Carneiro e o homem alcoolizado confundem coisas quentes e frias. Estão equivocados e enjoados. Cheios. Mário de Sá-Carneiro e o homem alcoolizado. Mário de Sá-Carneiro e sua língua. Mário de Sá-Carneiro e sua traqueia. Mário de Sá-Carneiro e todas as xícaras de café do mundo.

Ela, ou seria ele?, entupiu o esôfago de Mário de Sá-Carneiro.
“Sou estrela ébria que perdeu os céus, Sereia louca que deixou o mar; Sou templo prestes a ruir sem deus, Estátua falsa ainda erguida no ar...”

Cinco frascos dentro da última xícara de café. Antes do último gole de estricnina, ela, ou seria ele?, sorri.  

terça-feira, 16 de julho de 2013

aNA - por Adilma Alencar.

Esquina lotada, calçadas entupidas de homens e mulheres, a renda por baixo das saias, as rédeas repousavam na fala,marcavam só um erotismo dissolvido no cheiro doce dos perfumes misturados à fumaça. A música era sons de todas as falas numa rua, era fácil adivinhar que o corpo - embaixo de sobretudos escuros, saias laranjas vestidos de bolinhas, calça verde, camiseta e calça jeans, - queria gozar uma falta de amor.
Sozinha, no canto do bar Ana fumava, fumava como se cada tragada fosse um carinho erógeno, os músculos da face ruborizada relaxavam, e o cigarro, antes de todos, recebia o batom vermelho e vibrante dos lábios dela.
Olhar arisco e fugidio. Ela pousava o olhar na rua. Um olhar que cabia homens e mulheres, bêbados, putas, padres e crianças. Ana era toda generosidade e corpo, os cabelos curtos e cacheados convidavam as mãos anônimas para passeios na nuca.
Um escapulário prata pendurado ao pescoço era contraste do seu olhar ateu. No drinque vermelho duas rodelas de limão descansavam a acidez e a língua de Ana já alisava as pedras de gelo enquanto bebia irresponsavelmente com o dinheiro do leite, da mistura, do aluguel.

Vinte anos e um filho pra criar. Tesão, abismos, voos adiados e um filho pra criar.
Um homem à espera e um filho pra criar.
Ana fumou o último cigarro, pagou o drinque e voltou pra casa antes de seu marido chegar, pegou o filho e se desculpou pelo atraso, sua sogra fica com o menino aos sábados.
Ela colocou Pedro no colo, chorou e ninou o seu homenzinho, o colocou no berço, ligou no noticiário.

Avental no corpo, Ana seguiu cortando cebolas e chorando.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

oS QUE EU NÃO SOU - por Vinícius Linné

Não sou do tipo que dança nas festas. Sou do tipo que um dia se mata. Qualquer frase que contrarie essas sentenças, não sou eu. O que enxergam quando é para mim que olham?

Eu não posso enganar. Eu não sei mais mentir. Sorrir falsamente, cantar o que todos cantam, escrever o que todos escrevem. Eu não sei. Eu desaprendi ser os outros. Logo eu, que já fui tantos, hoje sou só eu.

E eu queria que me reconhecessem por isso. Eu queria que as sombras do que eu não sou não pesassem tanto sobre mim. Mas pesam. Pesam porque cada vez que vocês dizem como eu não sou, subentende-se a maneira como vocês gostariam que eu fosse. 

Eu sou sempre menos do que vocês queriam.

Há alguém que goste do que sou?

Queriam que eu dançasse. Queriam que eu risse. Queriam que eu saísse. Queriam que eu bebesse. Queriam eu tivesse dois empregos. Queriam que eu escrevesse crônicas amenas. Queriam que eu ganhasse dinheiro. Queriam que eu calasse a boca. Queriam que eu tivesse uma plantação. Queriam que eu tivesse uma casa. Queriam que eu fosse pacífico. Queriam que eu fosse dócil. Queriam que eu aceitasse tudo. Queriam que eu relevasse. Queriam que eu me omitisse. Queriam que eu trabalhasse de graça. Queriam que eu fosse incompetente. Queriam que eu transformasse a vida de alguém. Queriam que eu autografasse. Queriam que eu publicasse. Queriam que eu escrevesse a história de um gato. Queriam que eu quisesse tudo isso.

E eu não quero.

Não tudo. Não agora.

O que eu queria era que me deixassem ser essa coisa intrincada, confusa, introspectiva e imatura que eu sou. Queria que não me atirassem na cara o quanto me queriam melhor. A cada frase, o que me esbofeteia é o quanto eu não sou bom o bastante para quem fala. Cada pequena sentença vem em tom de acusação. Diz assim: "Você não é isso. Eu queria alguém que fosse, mas você não é. Por que você não é, se eu queria?"

Estou cansado. Estou cansado dos meus não seres. Eles pesam muito. Muito mais do que aquilo que sou.

Sou o que lê, o que fica, o que observa, o que pensa. Sou o calado, o que se esconde, o que escreve para não se entender. Sou o que pesa, pondera, qualifica, o que responde, manifesta, ri quando acha graça e silencia quando tudo mais é agitação. Sou o que espera as tempestades. Sou o que ama, faz poesia e sonha. Sou o que lida com o insustentável, o que fantasia, que fotografa e estuda por horas um inseto de jardim. Sou o que pinta, o que repara, o que pensa, o que brinda sozinho e olha, pela janela, a lua. Sou o que diz mais do que deve, pensa mais do que sente e não consegue, simplesmente não consegue ser diferente.

Compreendam, por favor, compreendam: eu não sou os que eu não sou.

Os outros são. Eu não.

E se o que eu sou não basta, compreendam isso também: eu sou daqueles feitos para serem deixados no caminho.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

vENDE-SE - por Simone Huck


Gabriel Pacheco

Desce a rua dos Lírios com as mãos no bolso. O amor é a própria tormenta em forma de flor. Às vezes tem nome de rua. Tropeça num pedaço de tule vermelho da última noiva que se casou na esquina. Um pano leve para certezas pesadas. A noiva abandonou o véu do amor num cruzamento qualquer. O amor tem esquinas confusas. Cruzamentos perigosos. Trânsito de intenções distintas sem sinalização de ordem. Amar é uma colisão. Todos morrem. Ela morreu na rua dos Lírios, sem número.

O tule arranha o passado dele. Uma voz invade seu ouvido: “Prometo amar você no inferno dos dias monótonos e na insensatez das horas sem respostas”. Descobre que ela mentiu na saúde e na doença. Tira as mãos do bolso e antes de atravessar para o outro lado da rua, lê a placa em frente da casa velha: “ VENDE-SE: Três quartos com uma suíte inacabada e um sótão empoeirado para você se enforcar”. Sorri. Se tivesse comprado aquela casa, seriam felizes na alegria e na tristeza. Era o primeiro anúncio digno dos últimos quatro anos de sua vida.

Abre a porta de sua casa e antes de entrar tira os sapatos e as meias. Caminha descalço até o quintal e pendura no varal alguns de seus silêncios. Nada seca. O tule vermelho, que ele recolheu do chão e carregou até ali, pinga miçangas do pai, filho e espírito santo. O amor disse amém e atravessou a rua sem olhar. O varal escorre vírgulas sem controle. Senta num canto e chora consoantes mortas. Percebe que amanheceu sem asas, sem língua e sem vogais. Calça os sapatos, enrola-se no tule vermelho e sai de casa apressado. Atravessa a primeira avenida sem olhar.

Era tarde demais para qualquer semântica. 
O vento carrega o tule para outra direção.

terça-feira, 9 de julho de 2013

iMPERATIVOS DE MARIA - por Adilma Alencar


            Maria: o lenço, o limbo, desprezo na minha língua, as nuvens todas ainda na minha boca, meu sangue entre as pernas, a filha que vai nascer, rugas no seu espelho, primeiro desejo de morte, cafés com creme, as estações de trem ou o beco das ruas escuras, as sombras de Capitu, a cegueira de Blimunda, deus aberto em flor de mandacaru, deus entre minhas coxas, a eternidade em suor e sal, as lágrimas da mulher que enterrou o filho, as unhas cortadas a dentes, ardentes, infames e sujas. Maria: Canção torta de um lirismo de choro, esmaltes secos na minha estante, cachecol azul na minha cama, pasta de dente na minha pia, atraso de relatórios, cheiro entre papéis, papéis trocados, terapia de sol e grama, elástico de minhas vontades oblíquas, fome de cor, nas curvas de desejos fáceis, mel com cachaça, candeeiro, cangaço de minhas tentativas, arapuca de confete, bicicleta em tarde fria, água gelada, corpo em nó, em laço, lance, visgo de rotina de pele, placidez em dentes, em ferida, vontade de escrever sobre o céu, de violentar uma certeza cravada nos ombros, aliança de plástico, umbigo-mapa-mundo, estampa de poesia na nuca, angústia no nunca, abismo de boca aberta ao meu encontro, precisão, guilhotina, merthiolate, suspiro com veneno, prozac, paracetamol, chá de cogumelo, meu golpe, minha gare, emplastro, nódoa da caju, visgo de jaca, pinha, remendo de arame farpado, fiapo de manga no dente branco.

         Maria, me levanta do chão? Me abre em inferno, em tapa, em teto. Transe com um monge, com uma puta e volte para minha casa, banharei seu corpo, lavarei seu cabelo com chá de pitanga, passearei os dedos na sua nuca, abotoarei seu casaco e dormirei com essa ilusão de que seu calor, da Sibéria, compassa minhas angústias.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

iNVERNO - Por Vinícius Linné

Você coloca toalhas velhas nas frestas das janelas. Como se não bastasse, você empurra os panos com a ponta de uma tesoura afiada. Você lacra cada abertura, veda cada furo, tranca, com papel higiênico, até os buracos das fechaduras. 

Você liga os aquecedores, empilha todos os cobertores, deita de roupa, casaco, meia, tênis, manta. Não adianta.

Você vai à cozinha, ferve água e derrama na xícara sobre algumas folhas verdes. Você bebe o chá ainda fervendo, queima boca, língua, faringe, esôfago, estômago. E nada. Você descola a pele aos pedaços, estoura bolhas, puxa couros, tudo arde, mas é de frio.

Você bota as mãos direto sobre a chama do fogão. Elas grudam nas grades, o sangue borbulha, a carne vai assando, se desfazendo em fumaça e cinzas e, mesmo assim, você continua tremendo.

Demora. Demora até você entender que não adianta. Você encosta o que sobrou das mãos no rosto, seus cabelos grudam no sangue, as bolhas seguem vertendo água. A água é gelada. É gelado também o toque dessas mãos. São geladas, ainda, as lágrimas que descem pela sua face e se cristalizam, antes mesmo de chegarem à boca.

Não adianta. Nada mais adianta. Depois daquele último abraço, ao pôr do sol, você nunca mais saberá o que é calor.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

cARTA AO CALENDÁRIO - por Simone Huck

"Calendar 2013" - Mina Braun

Nunca te escrevi uma carta. Ainda tenho dúvidas se ao final, isso será uma carta. Inquieta-me sua presença numérica e fria em minha vida. Nos últimos anos você tem trapaceado sem disfarces. Finjo não ver sua apressada ordem. Vivemos no istmo entre certezas e incertezas. Eu envelheço. Você se renova. Somos assincrônicos e obstinados.

Na maioria das vezes você é de papel. Na maioria das vezes sou de carne e osso. O que nos sustenta é dúbio. Nossa natureza escorre líquida. Sem pausas. Às vezes, precisamos de mais feriados para permanecer ilesos.

Sua gênese vem das plantações. Minha gênese vem das guerras. Nunca fomos amigos. Jamais seremos. Insisto para que desista das pontuações. Seguirei escapando pela tangente de seus números ordinais. Algumas de suas datas comemorativas sigo esquecendo.

Queria agradecê-lo imensamente pelo nosso último duelo. Quando você e o médico sentenciaram a mãe, me transformei numa filha de ferro. Já não quebro tão fácil. Troquei de pele e pulso. Renovei minha saliva. Sua rotação consertou meu eixo. Perdi o pouco que sobrava da minha fé e conquistei o melhor dos lugares junto à mesa da Santa Ceia. Tenho dividido pão e vinho comigo mesma. Insisto: desista de querer nos agendar.

Para terminar essa carta - que já está longa demais – não podemos esquecer que sua origem é duvidosa. Você já foi romano, islâmico, teórico, hebraico, misto, juliano, gregoriano. Eu continuo tendo o mesmo nome, morando no mesmo apartamento e tendo a mesma obstinação: envelhecer na tangente do seu incerto sentido. Sem mais. Sem números. Adeus.  

terça-feira, 2 de julho de 2013

sOBRE TUA BELEZA LARGA - por Adilma Alencar.

Nos momentos de graça as palavras fogem. Os olhos se abertos vão virando água, se fechados, oração. Aconchego inerte que o dizer não alcança, o passar do tempo medido em cafuné e roçar de rostos. Você abriu um sorriso e eu quis acompanhar as flores que vingavam verdes no meu estômago. Inverno, os nervos de aço vão derretendo em fios de cabelos longos sobre o edredom e o atraso das horas. A casa é toda vontade de ficar, castelos de cobertas e suspiros de sereias, quase uma cena de Almodóvar a luz do computador incidindo nos teus dentes largos.
A cidade de São Paulo está fria, está vestida de flores, as viagens marcadas aguardam voo, os homens cospem acordos trabalhistas. Na cozinha, homens e mulheres se reúnem ao redor de miojo ou de lasanha, aipim ou sopa. As mãos unidas. Por força do querer, o improvável acontece enquanto a gente é sorriso e bem querer.
Eu não sei garimpar palavra para o calor de tuas pernas querendo dormir, nem recortar o silêncio de teus ombros em minhas mãos. Não quero um quadro para pendurar na parede, eu quero brincar de estar despida nas tuas mãos.
Sem arremedo nem corrente, trançando meu corpo no teu, as curvas que o teu riso desenha no meu rosto são sãs, lirismo de cheiro, de vento frio nas tuas vontades.
Som de flauta doce desenharia, se alcançasse, o ritmo que teu carinho cantou no meu pescoço, anúncio de paz no corpo todo.
A ordem do dia foi adiada, porque o calor cresceu em carinho e violentou o dia, fez sol numa manhã cinzenta.
Xícara, pão, tapete, texto na tua pele, era conto ou crônica, haicai ou provérbio chinês, não era, É.É poesia de Hilda, maçã de Raul.
O cachorro, o café, os carros, o relógio, tudo anunciava a pressa dos horários e das coisas sempre esperando a gente, a vida reta: de cortar as unhas, lavar a roupa, comprar as malas, fazer a inscrição. Tudo apressava nossa preguiça de manhã, nosso espanto dos roteiros.
No ínterim, no intento, no tesão, no passo leve de tuas pernas nas avenidas, nas ruas, na escada, no teu itinerário , que tudo seja a graça que tua luz anuncia porque tua beleza é larga.
Eu falei, tua beleza é larga.
Larga.


segunda-feira, 1 de julho de 2013

uNHA - por Vinícius Linné

— Quem tira as suas fotos? 
— Por quê?
— Porque... não sei... dá pra ver que existe uma conexão muito grande entre você e quem te fotografa. É algo que transparece. Como se vocês se conhecessem muito bem. Como se, com essa pessoa, você se sentisse livre o suficiente para revelar a alma inteira.
— Sou eu. Eu tiro as minhas fotos. O que é estranho, porque eu não me conheço. Eu não me entrego pra mim.
— Mas você pode se entregar, mesmo sem se saber. Às vezes a gente faz as coisas sem saber. Eu, por exemplo, descobri que pratico a automutilação. E sempre achei isso coisa de doido. Eu não corto meus braços, nem nada assim, mas eu tenho uma unha encravada que não deixo sarar. Eu gosto de como ela dói. Eu gosto de ver a vermelhidão do sangue que escorre dela, quando eu a machuco. E eu gosto de machucá-la. 
— Isso é estranho.
— Não é. Se todo sentimento é válido, a dor também é. Quando vou mexer nela e ela começa a doer, eu penso “É dor, é só dor. Eu aguento.” E então eu aproveito aquela sensação. Eu fecho os olhos e deixo ela se irradiar. E nunca dói mais que um coração partido, por exemplo. Mas não quero falar disso. Eu estava falando das suas fotos. Eu admiro demais sua criatividade. E com tudo. Escrita, fotografia... desenho. Você desenhava, não?
— Desenhava sim. Mas consegui parar. Foi uma das coisas que já consegui abandonar. Quero ver se abandono as outras também.
— Como assim?! Sua criatividade é um dom!
— É maldição. Imagine que alguém tem uma porção de sementes, mas não tem um campo para plantar...
— Mas, então, você poderia vender as sementes para quem tem um campo.
— E aí você nunca colheria nada.
— Tá, mas o que você quer dizer, afinal?
— Que não adianta. Eu não sei quantas coisas tenho escritas. Eu não sei quantas técnicas de fotografia eu tenho descoberto. Eu não sei quantas ideias eu tenho gerado. Eu não sei quantas músicas eu já gravei... E tudo pra nada. Eu tenho essas sementes todas, e não tenho onde colocá-las. Eu as vejo embolorar e apodrecer, sem nunca ver fruto algum. Sem nunca ver qualquer resultado. Nada de nada.
— E isso é motivo de desistir?
— O que você espera? Que eu diga para mim mesmo que “É dor, é só dor. Eu aguento”?
— Seria uma alternativa. Pessoas morreriam para ter as ideias que você tem.
— Pessoas morreriam se tivessem essas ideias e ninguém investisse nelas. Se elas não tivessem um caminho, contatos, meios de fazê-las acontecer.
— Você ainda é novo.
— Novo, mas cansado.
— É cansaço. É só cansaço. Você aguenta.
— Estou cansado de aguentar, de esperar, de acreditar, de investir, de viver.
— Te ver assim me dói. Dói mais do que a minha unha encravada.