quinta-feira, 29 de agosto de 2013

o HOMEM QUE FABRICA ELEVADORES - por Simone Huck


Não há crônica inédita hoje. Mas tem essa aqui, escrita há um ano e que fala sobre o homem mais especial e enigmático da minha vida: o HOMEM QUE FABRICA ELEVADORES. 
Boa leitura e até semana que vem. 
Huck


Entro no meu carro e ainda não amanheceu. É segunda-feira e tudo parece estático. A vida pendurada na previsibilidade de um prego invisível e rotineiro. Antes de sair procuro uma música no iPod, a trilha sonora que abrirá mais uma semana de sono e cansaço. Penso nele. Ele não combina com meu iPod. Eu não combino com o mundo. Talvez ele não combine com nenhum dos dois.

Eu passava dos 30 quando, num domingo despretensioso, ele beijou pela primeira vez a minha testa e disse “eu te amo, minha filha”. Ali, ele salvou minha vida. Resgatou de uma só vez sua ausência brusca, bruta, pouco lapidada. Eu e meu pai somos dois desconhecidos que se amam. Ele é um homem calado, pouco sei dos seus segredos. Ele pouco sabe dos meus. Nossos silêncios gritam.

Ligo o carro. O iPod toca uma música calma, quase calada. Continuo pensando nele. Uma lágrima quer saltar dos meus olhos. Uma vontade de gritar. Uma traqueia oclusa no tempo – meu e dele.  Uma consciência tão exata de que depois da sua morte, eu não serei mais eu. Eu não terei mais ele. Ele não terá mais ninguém.
Durante a madrugada, no pouco dos sonhos que consigo lembrar, ele morria. Sou uma pessoa que não lembra de nada quando acorda. Mas ao abrir meus olhos de lágrimas, ali estava ele. Algumas realidades aguardam o momento infalível de estrearem no palco dos nossos dias. Às vezes, a vida é um anúncio gritante em outdoor
Procuro pelos meus olhos no retrovisor do carro. Encontro minha covardia. Um dia ele não mais estará ao alcance do meu abraço.

Tenho quase 40 anos e poucos medos acumulados. Logo cedo o seu silêncio áspero me ensinou a não temer a vida. Ele não me emprestou um dos seus elevadores pra que eu subisse ou descesse com segurança. Disse pra eu fazer tudo usando cordas, escalando o bem e o mal. Hoje muita coisa mudou. Deixamos de ser tão silenciosos em nossos encontros. Há poucas sombras entre nós. Há muitas sobras. Hoje quem o leva ao médico sou eu. Sou eu quem escolhe a armação moderna dos óculos que ele usa. “Pai de artista deve usar óculos de artista”, brinco, enquanto o faço comprar uma armação preta e amarela. Ele sorri e me pergunta se está bonito, só depois que garanto o sim, ele saca o cartão e paga a minha escolha para os seus olhos. Hoje é ele quem precisa confiar em mim. Hoje sou eu quem anseia um outro beijo em minha testa antes da sua fria partida. 
Nos últimos dias abraço o desespero diário da sua ausência. Sofro calada um futuro próximo que mudará nossas sombras.
A morte é a única certeza da biografia.

Desço do carro e chego ao trabalho. Aperto o botão do elevador e ao entrar, procuro ávida a marca do equipamento. Sorrio. Ali está as mãos do meu pai. Estou salva naquele cubículo de metal. Meu pai é um homem que fabrica elevadores. Em seu ofício de garantir a subida ou a descida do coletivo anônimo.
Cresci procurando pela cidade os elevadores que ele criou. E quando entro em um que não há as mãos dele, não me sinto segura. Sempre tenho medo de cair. Sempre acho que alguma coisa não vai dar certo e a claustrofobia fica perto de mim na subida incerta. Só nos elevadores feitos por este homem é que me sinto livre.

O elevador sobe macio enquanto leio as quatro letras que compõem o nome da empresa das suas caixas de metal. As últimas duas letras também estão no meu nome: “IS”. Pura coincidência. Aposto que meu pai nunca pensou nessa relação. Sou eu quem precisa da segurança dos seus elevadores. Ele só precisa da minha segurança em aquecer suas mãos enquanto o levo ao médico.
O elevador chega. Sou a última a sair. Procuro mais um pouco do seu abraço metálico. Ali, sempre estarei segura. 

Olho a cidade cinza, mais um dia nasce. O homem que fabrica elevadores também já está trabalhando. Sorrio. Do meu lado a certeza de que passarei a vida inteira notando todos os elevadores só pra saber se foi ele quem fabricou. Só assim saberei que as pessoas estarão a salvo quando subirem ou descerem. Eu também estarei. Sim, meu pai é um homem que fabrica elevadores. Os melhores elevadores do mundo.

Décimo sétimo andar. Portas em perfeito alinhamento se abrem. Posso começar a escalar o dia.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

mEU PESAR - por Adilma Secundo Alencar.

Seja agora. Eu já não posso sem você. Todos os dias eu engulo uma lua sentindo seus seios em minhas mãos e um buraco na memória faz vertigem e enjoo no meu estômago.  Eu não quero discutir política, Barthes, eu também sofro desse cansaço de um mundo estúpido, entupido de palavras sem pensamento. Eu quero o silêncio de água do teu sexo, tua raiva me rasgando a roupa. Sem você eu não sei chorar. Eu não fumo, não bebo. As flores estão chegando e setembro é o mês que te veste. Vem nua para nosso pequeno inferno de amar. Esses bares todos da cidade de São Paulo só esperam nosso encontro escandaloso. Não há traição, tampouco namoro, os filmes desse semestre são estúpidos e burgueses e meus livros velhos estão inflamados de poesia com teu nome, não demora não, é fácil enlouquecer sem amor. Eu ajeitei minha cama e corrigi minha sintaxe para não reprimir teus instintos, vem com esses olhos chorosos que me devoram antes de tua boca. Entre teu choro e minha raiva, meus dentes e tua língua, vem fazer verbo do que é substância, seja com essa linguagem obscura que nossas palavras não alcançam nem alimentam.
O meu armário guarda suas revistas e aquele álbum do Noel nunca mais tocou, os sachês de chá apodreceram esperando tua sede e eu guardei a forma de pudim.
Eu comprei xícaras com seu tom de vermelho e engravidei três vezes durante sua ausência, sem você sou menos gente. É desesperador o barulho do relógio sem o teu sorriso ao entardecer, sem o teu corpo nu junto ao fogão me fazendo café, seus reclames das notícias de jornal e sua impaciência com meus carinhos.
Me deixa  cuidar do teu corpo com a mesma devoção com que guardei teus traços nas minhas mãos e teu gosto na minha boca. Fica, é simples, vem para o espanto vadio do meu querer ajustado às curvas de meus desejos entre dedos e língua, sintagmas. Manoel de Barros me nina com suas formigas de corações líquidos, Bandeira me oferece café e putas bonitas para namorar, os bares se abrem para minhas mentiras moles, mas teus braços, teus braços onde estão? Todo colo nu, agora é calçada de concreto, e eu não durmo, eu anoiteço te querendo numa tara sem satisfação, numa fome cuspida em gestos cambaleantes engendrando mais rostos que sentimentos nos meus sábados.

O amor apodrece dentro de uma gaveta que é tua, uma gaveta fechada há cinco anos.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

a QUE EU NÃO CONHECI - por Vinícius Linné

'Barren' by Daphne Ng


Se algum dia me perguntarem se conheci Beatriz, vou dizer que não. E, realmente, eu não a conheci. Não assim, como ela era nos últimos tempos. Se me disserem que encontraram meu brinco em sua mão, eu nego. O brinco não era meu, não importa com que força a mão dela tenha se fechado. (Cofre de joias em rigidez cadavérica.) Não importa o rasgo na minha orelha esquerda. (Cicatriz vespertina sem lágrimas expostas.) Se disserem que havia minha pele, meus pelos, meu DNA inteiro debaixo das unhas de Beatriz, eu ainda direi que é engodo, fabricação de prova, incriminação da mais pura e pérfida.

Eu não conheci Beatriz.

Eu não me apaixonei por ela. Eu não ouvi dela que minhas palavras eram nuvens de se flutuar, que minha voz tinha almíscar e ronronares, que meu canto a fazia mergulhar no que havia de doce e pesado no mundo.

Não. Eu não cantei nas noites de temporal para que Beatriz dormisse. Eu jamais a aninhei no meu peito e a deixei, fascinada, ouvir o meu coração pulsando. Eu jamais lhe beijei a boca agora cheia de terra, nem envolvi nos meus braços seus seios, decerto já encolhidos aos ossos das costelas.

Eu não conheci Beatriz.

Eu não falei com ela sobre a solidão e o ser. Sobre as almas irmãs e sobre a distância entre nós e o mundo. Eu não lhe descortinei os sonhos, despi os medos e teci os prazeres. Nunca, porque eu não conheci Beatriz.

Eu não sei nada sobre o que ela se tornou. As festas, as bebidas, os jogos, as máscaras. Eu não sei.

Eu não conheci Beatriz, a estranha que invadiu minha casa, que rasgou minhas telas e quebrou meus discos. Eu não conheci a Beatriz que me culpou pelo rumo que escolheu, que pediu de volta o que antes era seu, que implorou, bêbada e suja de sêmen, que eu lhe cantasse outra vez.

Eu não conheci Beatriz. 

Eu não matei Beatriz!

Não, eu não esqueci Beatriz...

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

úLTIMAS NOTÍCIAS - por Simone Huck


Krzysztof Domaradzki

O cego, de cinquenta e seis anos, rasga um pedaço de jornal para limpar os óculos. 
A estagiária, de dezessete anos, rasga um pedaço de jornal para limpar o vômito de sua chefe. 
A mãe, de trinta e dois anos, mora debaixo de um viaduto na Avenida Consolação e rasga um pedaço de jornal para limpar a bunda do seu filho, de três anos. 
O engenheiro genético, de quarenta e quatro anos, rasga um pedaço de jornal para embrulhar frascos de insulina. 
A médica, de vinte e sete anos, rasga um pedaço de jornal para embrulhar os fragmentos de um feto que acabou de assassinar do útero de mais uma cliente. 
O escritor, de trinta e nove anos, rasga um pedaço do jornal com o endereço de uma casa que fabrica personagens que ainda não foram publicados.

O córtex visual do cego jura que leu o jornal. A estagiária é virgem e todos os dias lê primeiro a sessão de classificados das putas e depois, o caderno de empregos. A mãe pensa em matar o filho e ser notícia de jornal. O engenheiro busca a glicose do amor no caderno de economia. A médica quer o homem ideal, capaz de lhe fazer um filho, lendo as combinações do zodíaco. O escritor mastiga e engole o jornal acreditando que vai arrotar algo inédito.

O delírio não está na linha editorial do dia.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

sACHÊ DE AÇÚCAR - por Adilma Secundo Alencar

Eu não soube mais falar dessas coisas depois que você partiu. O papel de carta colorido de sóis permanece virgem. Eu ainda desejo seu corpo como se seu perfume ainda estivesse aqui, mesmo depois de tanta água e sabão e ferro de passar.
Eu sei rever, sem esforço, todos os passos daquele dia: a chuva tempestiva, eu aos prantos naquela avenida verde oliva, o vermelho do meu tênis borrado de tanta água nos meus olhos. Foi nesse dia que eu percebi o estrago que você fez.
E depois, o sol, a cerveja gelada, o sexo, os dias azuis em camas arrumadas.
E depois, a dúvida, a saudade do meu nome na sua boca, do meu nome metaforizado em nuvem e vento.
E depois, a viagem, o encontro com Buda, a energia tântrica, os mistérios do sânscrito, o parto.
E depois, a cama posta, a espera pronta, seu nome em meus hiatos.
Na semana passada eu deixei minha boina na poltrona do cinema, voltei assim que percebi. Quando me aproximei da boina, vi um casal que fomos nós, um falava frases do sachê de açúcar para o outro e recebia de volta um punhado de promessas no mexer cósmico dos olhos encantados. E depois, chorei.

Um sachê de açúcar numa sexta qualquer, os vincos que seu sorriso faz aparecendo noutros rostos. A cidade está cheia de você, eu estou enchendo a cidade de sua sombra.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

dO QUE PRECISA A SOLIDÃO - por Vinícius Linné

Ela não entende, mas é preciso muito mais do que presença para acabar com uma solidão. É preciso de uma música que a aumente, de um vinho que a entorpeça e de um lugar afastado em que só a lua a ilumine.

A solidão precisa de uma cama, de lençóis limpos e de uma noite sem sono. Ela precisa do cheiro de velas e de ter muito em que pensar.

Ela precisa de um sonho que não vai se repetir, de cartas de tarô rasgadas, de um passado qualquer e dos arrependimentos certos.

A solidão precisa que se ande pela casa de madrugada, que se pegue na geladeira um copo d'água e se beba enquanto se olha pela janela, enquanto se ouve só o silêncio da cidade para sempre adormecida.

Ela não precisa de consolo, de afago, de uma poesia qualquer. Ela precisa ser. Ela precisa existir até o fim, sozinha. Ela precisa vagar, pensar, ver. Ela precisa ser amplificada até os limites da dor.

Ela precisa se nutrir, crescer, se reproduzir. Ela precisa do vento no rosto, do silêncio da noite, da indiferença de alguém, da madrugada toda.

Ela precisa da mesma música tocada em repeat, da consciência de que o sol demora a nascer, de uma mensagem que jamais foi respondida, de um e-mail que jamais será enviado e de um amor. Um amor que nunca mais será. Nem esquecido, nem vivido.

A solidão não precisa de alguém, meu amor. A solidão precisa de mim.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

dOMESTICANDO SEMÂNTICAS - por Simone Huck


"oculto", 2013 - Simone Huck


Ando com transtorno obsessivo por uma palavra nova. Abro gavetas. Vasculho dentro dos sapatos. Confiro bolsos antigos de calças jeans envelhecidas. Arranho o chão de uma língua muda. Minha busca é morta.

Deve estar guardada em algum lugar de mim a consoante capaz de me escrever. Verifico frases escondidas debaixo das unhas. Nada. Nada. Nada. Nenhuma palavra nova para descrever ânsias velhas. A palavra que não existe está escrita em minha miopia?

Dentro da estante, desconfianças e medos empilhados. Esperanças que não vejo penduradas por pregos que não foram fabricados. Escassas felicidades desbotadas pelo tempo. Como encontrar uma palavra capaz de descrever não-seis?

Dilúvios de incertezas ácidas em água doce. Lágrimas são palavras líquidas. No rádio e na igreja a mesma saliva que cospe “eu te amo” também cospe “eu te odeio”. Onde compro uma palavra nova?
Dias incertos.
Essa palavra não deve existir.

A casa que não habito está limpa. Estou lendo todos os livros sem palavras. A biblioteca e a cozinha seguem organizadas. Meu coração é um armário branco repleto de prateleiras congestionadas, pendurado na cozinha laranja que não pintei.

O telefone e a casa seguem mudos. O gato que não tenho descansa em paz no meu pé. Mastigo pão de felicidade com café de tristeza. Tudo é uma dúvida que também não foi criada. Não sei mais se sinto.

Vou me casar daqui quinze dias. Estou levando uma mala cheia de dicionários para a vida dela. Nunca será tarde para encontrar uma palavra nova. Passagens compradas. Alianças compradas. Roupas na mala.

Vou me mudar para a vida dela e não volto nunca mais. Nem eu, nem a palavra nova.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

fALTA - por Adilma Secundo Alencar.

Não me sinto confortável na vida. O meu vigor é manso e quase preguiçoso, mas ainda e sempre vigor. Envergonho-me da miséria das ruas porque tenho parte no mundo, se minha crença creditasse a sina, eu rezaria sobre véus brancos e suplicaria tempos outros para a mulher mijada e feia que chora a morte do filho num beco imundo das ruas da Mooca.
É tempo de mudança, dizem.
As músicas de protestos de Caetano embalam festinhas da Vila Mariana, maconha, cores de Frida e estômago cheio.
Mulheres bolivianas são exploradas no Bom Retiro. Na escola a sintaxe de Machado não comove o menino do nono ano que só quer “infantilizar formigas” enquanto advinha os cachinhos negros de Beatriz que senta sempre na primeira fileira.
Colorir meu quintal com terra e semente e esperar sua chegada para ninar meu silêncio é a ordem. Uma vez disseram de minha espera de flores, eu ri, um sorriso de incenso, um ar de maresia na cara e sal na língua. Minha espera é vã, eu minto, não espero. Essas cores que enfeitam a casa são murros, murros surdos no desconforto de estar.
É um espetáculo um homem, uma mulher, uma criança, a vida caminhando sobre o aço da metrópole. As rolinhas no seu revoar cru comem restos de qualquer coisa no chão.
Mas ontem, contrariando o tédio de domingo, eu vi sem choro, sem grito, sem amargura ou euforia, o sentido por trás dos espinhos, a lança primeiro que furou o homem, a nuvem carregada de tempestades frias sobre as casas pobres, a mulher segurando o filho frágil nos braços cansados de tanto ninar homens futuros.
Eu vi flores brotando como uma sombra, para cada um havia uma flor.
Hoje, mais calma e refeita da confusão de sombras e cores, eu joguei no lixo velhas cartas que estranhamente emanavam cheiro de capim cortado.

O desconforto está no meu quando, o vigor é o soco de tinta que eu lancei na parede da sala.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

cRÔNICA EM BRANCO - por Vinícius Linné

Há dias em que precisamos de um texto velho. Um que tenha sido escrito em um momento menos ruim. Escrito, quem sabe, em um fim de tarde, quando as cores eram ainda quentes e os reflexos do sol entravam pela vidraça do quarto.

Hoje eu estou assim. Eu preciso das palavras passadas, menos pesadas do que estas que carrego agora. Eu quero a leveza de antes, a inocência, o despudor ao falar de amor e ao usar reticências longas.

Hoje meus dedos estão duros. E duras seriam as palavras de qualquer texto meu. Eu não sei ser como os outros. Eu não sei compor só banalidades, dias a dias, conselhos para autoestima de meninas enjeitadas. Eu não sei ser popular, ser legível, comestível, tragável. “Valorize-se e seja feliz porque você existe e é querida por alguém.” Eu não sei.

Eu não sei escrever. Pelo menos hoje eu não sei. Eu não sei compor histórias, enfileirar sentenças, abrilhantar discursos. Hoje eu não conheço técnicas, truques, métricas. Por enquanto eu sei sentir. Eu todo me sei sentir. Há dias em que o resultado disso é que eu escrevo. Há dias que o resultado é que eu me calo.

Hoje é desses dias de calar. Dia de não fazer mais choradéu. De não reclamar, maldizer, amaldiçoar até os grãos secos da minha nova história. Hoje é dia de procurar um texto velho para a crônica semanal. Dia de chafurdar arquivos, editar pretéritos, revisar a vida.

Vasculho, então, os arquivos e neles não encontro nada que me sirva. Tudo é apertado demais para hoje. Qualquer palavra bonita me sufoca como nó de enforcado. Quando eu a escrevi, eu não sabia sequer quem era. Hoje eu sei. E é impossível continuar impassível.

Nem disfarçar eu sei mais. Nem usar um texto alegre para me fingir alegre também. Não sou poeta-fingidor, Pessoa. Hoje eu não sou. Hoje sou esse que na falta de outro texto e na ânsia de poupar meus leitores de mim, só faz um desabafo manso para ocupar o espaço lento e não revelar o que está, de verdade, por dentro: uma folha em branco e a angústia que a acompanha.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

hISTERIA - por Simone Huck


Mild Deliria - Diploma work
Pencil on paper 2003

Você abre os olhos de uma ressaca planetária.
Abraça as próprias pernas mas continua sozinho.
Uma solidão hedionda caminha por suas hemácias.

Você vai até a geladeira,
abre uma garrafa de leite mas não consegue beber uma via láctea.
Dúvidas lunares ecoam dos seus olhos.
De restos e recomeços você é feito.
Um liquidificador de traumas e sonhos.
Pão com manteiga de esperanças vencidas.
Sua língua é um trapézio sem bailarina.
Ar ou chão?

Seus ossos cansados perguntam pelo colchão da outra cama.
Você não dormirá naquela casa nessa noite.
Nem naquele coração que eventualmente jura que te ama. E grita.
Você apaga a luz das crenças sem felizes memórias.
Sua traqueia está cansada de sonhar com uma casa cheia.

Um livro sem palavras cai das suas mãos.
Sua alma cai do seu corpo. 
Uma larva fica mais gorda.
Você desiste.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

rUA- por Adilma Alencar.

Vai e vem o dia inteiro, mês inteiro, ano inteiro.
O preço, o espaço, a marquise, o curso, a escolha, o credo, o medo, a mentira, o dinheiro, o bilhete.
O rasgo de vida explodindo na cidade de São Paulo.
Uma freira de roupas limpas segue no trem, sentido Capão.
No metrô, sentido Paraíso, Ana Paula ajeita a meia arrastão, com o prazer do próprio toque simula um riso no canto da boca, finge não sentir o olhar faminto do senhor  gordo e suado que desce na consolação.
Na Rua das Noivas, um policial mal pago e cansado alivia a tensão enquanto um homem geme de dor, bater e apanhar, bater. Ele bate.
Um mendigo sente o inchaço no olho esquerdo, perdeu um dente e um resto de dignidade. Seu Zé, alagoano de Arapiraca, vende pamonha e vez ou outra é roubado, um viciado lhe rouba o dia, vez ou outra um policial lhe tira o couro.
No centro velho da cidade pomposa, as respostas e as perguntas bailam, a tensão vibra e a dança é dantesca.
Enquanto isso uma mocinha dada aos discursos analisa a sintaxe dos textos machadianos.

Um abismo dança na cidade de São Paulo.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

e AS LUZES? - por Vinícius Linné

@mrphoto27

Você chegou até ela, bem piegas, e disse "você ilumina meu mundo". Ela riu. Ela gargalhou  imensamente. Mesmo assim. Mesmo assim, você a chamou para ir em sua casa. Para lhe mostrar o jardim e as luzes. "Você quer ver as luzes?" Ela riu de novo, mas disse sim.

Nas folhas formando florestas, no gramado, nos azulejos trazidos de Portugal, no balanço comido de ferrugem e tempo, nas cercas, nas grades, nas grandes gramas, no seu próprio coração. Em tudo, enroladas, feito arames farpados, as luzes de natal. 

Não era nem setembro.

Tanto trabalho por ela. Tanto.

Quando ela chegou riu mais. Riu como se não fosse parar. Como se fosse esgotar-se de todo ar e despencar ali, morta, hirta, dura, fria. "Esse é seu mundo iluminado? Suas luzes são luzes de mentira!"

E você ali, olhando para ela que mais uma vez gargalhava. Olhando para as luzes, tão bonitas, tão bonitas...

Vá! Incendeie as luzes de mentira, as luzes que piscam e piscam a não mais poder. Vá! Mastigue o hélio dos bicos, triture nos dentes os vidros, incendeie as luzes que ela chamou de "luzes de mentira". Faça! Faça luzes de verdade.

Burn this house.
Burn it blue.

Queime. Primeiro as luzes, depois a praça e, por fim, as próprias sombras. Mostre a ela que as luzes são sempre de verdade. Que toda luz é luz. Pisca-pisca ou fogueira-que-chega-ao-céu.

Vá! Queime. Queime-se. Faça até mesmo a cegueira maior, a cegueira de olhos podres, de lágrimas de álcool, conseguir lhe enxergar.

Inteiro.
Resplandescente.
Até que enfim fatal. 
Vá!

Você não foi.

Você esperou ela sair - ainda rindo - e arrancou todas as luzes. Você enrolou fios sem se preocupar com os nós, sem ligar para as lâmpadas que se enroscavam e caiam, caim para ser pisadas no mastigar de vidros das suas botas. Você deixou tudo ali mesmo, no jardim, pegando chuva e ressecando com o sol. Ela nunca mais voltou. Você nunca mais iluminou o mundo. Fim.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

eLEGIA À VERDADE - por Simone Huck


Da janela da cozinha vejo uma tarde de inverno com ares de outono. Enquanto preparo meu café, a falta de atenção acumula na repetição do açúcar. O céu está alaranjado; meu café, melado. Como não lembrar de você, Catarina? Seu café era o próprio mel. Viscoso de tão doce. Quente. Escorria carinho, afeto, afago. Um pouco de você vinha dentro da xícara, confesse. Crepúsculo adoçado de amor. Sabedoria líquida que minha espessa memória tem sede. Neste hoje, nesta solitária xícara de café, entre um mês de agosto sem importância, escorre apenas a ausência sólida que você deixou. Antes das primeiras flores nascerem sobre a terra que jogaram em sua cabeça, eu já estava germinada de saudade e ansiedade. Tudo, de lá pra cá, foi só acúmulo, Catarina. Nunca mais esvaziei.

Fecho os olhos e estou na varanda da sua casa. Penduradas em suas sobrancelhas estão minhas verdades. Seu sorriso, escandaloso de felicidade, está desenhado na cicatriz mais grossa do meu coração. A toalha xadrez sobre a mesa de madeira larga, o cuidado, suas mãos envelhecidas que comandavam as horas e as perguntas, seus olhos marejados de saudade de mim e o café doce, o mais doce que minha pouca vida já provou.

Precisamos conversar, Catarina. As coisas lá em casa estão incertas. Cada vez mais parecidas com as paisagens do meu coração, e você sabe que isso não é nada bom. Não quero passar dia e noite comendo incertezas no jantar. Não acredito em ninguém. Você sabe que sou a filha mais velha do seu filho mais velho e que sou teimosa feito uma mula. Só pioro. Encha-me de açúcar? Pede pra eu pegar seu cinzeiro. Senta ao meu lado e acende outro Hollywood. Não, obrigada. Eu parei de fumar já faz alguns anos, lembra? Só ficou o vício do café. Acendo seu cigarro. Entre seu pigarro e minha descrença, construa a verdade que vou acatar, Catarina. A fumaça que sai da sua boca sempre desenhou uma estrada em minhas noites. Me faça acreditar em alguma coisa que se assemelhe a Deus. Coe um pouco da minha tristeza e me sirva do seu abraço. Há um deserto hasteado em meu coração.