quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

a PROPOSIÇÃO DE DINORAH - por Simone Huck

 Ilustração de Ricardo Bezerra

Não vamos confundir preposição com proposição. Um prefixo pode mudar uma sentença; uma sentença pode mudar uma vida. Muita coisa cabe dentro de uma vogal - solitária letra. Imagina o que não cabe dentro de um prefixo? Mas não vamos perder a proposição desta crônica. Convido-os a pensar nas preposições. Gramaticalmente, há grande diferença entre o significado das duas palavras. Em retórica, podemos ousar colocar as duas dentro de uma mesma frase ou pensamento. O autor pode tudo. A Sra. Dinorah, também.

Segundo explicações gramaticais, preposição é a palavra que liga dois ou mais termos de uma oração. A relação entre os elementos ligados é subordinativa. Se não houver ligação, não há entendimento. Mais ou menos como a ordem do chefe e o chefiado. Nunca tive chefe. Não saberia ser uma preposição. Já o significado da palavra proposição, segundo dicionários, é a ação de pôr diante dos olhos, propor, apresentar, expor um assunto, provar, estabelecer. Tenho dúvidas se conseguiria ser uma proposição. 

Na escola eu tinha um caderno onde anotava, repetidas vezes, todas as palavras que ortograficamente eu escrevia errado pelas diversas redações semanais. Se trocasse X por CH, por exemplo, lá ia a palavra ser escrita trinta vezes no maldito caderno até o burro aprender. Chateação, chateação, chateação, chateação, chateação, chateação... chateação.  

A Sra. Dinorah, minha inesquecível professora de português, era dessas megeras que bem cumpria seu papel e suas proposições. Seu rosto, também gravado e cravado em minha memória, está presente nos meus olhos feito assombração de filmes de terror. O caderno que ela inventou era a sentença que carregávamos o dia todo. Quanto mais palavras ortograficamente erradas em nossas redações, maior o calo nos dedos pela repetição da palavra certa. "É preciso escrever trinta vezes a grafia certa de uma palavra! Assim vocês jamais esquecerão!". Xingar, xingar, xingar, xingar, xingar, xingar, xingar... xingar. Trinta vezes! Me controlei para que essa palavra ficasse apenas no caderno e nunca fosse um ato.  

Jamais conseguirei esquecer a Sra. Dinorah. Ela é a correção de uma grafia errada martelando minha memória? Defuntos também são eternas proposições. Calma, leitor, já chegarei nas preposições. Prossigamos:

Apesar dos seus rituais nazistas, devo admitir que ela foi a grande responsável pelo meu amor e ódio por algumas palavras - o bem e o mal andam de mãos dadas pelos parques do mundo. No calo de nossos adolescentes dedos, sua ênfase na repetição queria fazer de nós, no mínimo, pessoas capazes de escrever minimamente bem. Devo admitir que sua cruel proposição foi e é até hoje eficaz comigo. Quando olho para a minha mesa de trabalho, percebo que há inúmeras dinorás escorrendo dos meus textos, pingando da minha mesa, molhando chão, deixando rastro. Sua voz sobe pela terra seca, grita, acena e pontua. Sua morte faz florescer as palavras que não esqueço. Ela é uma grafia certa na minha língua.

O caderno das palavras repetidas, que chamávamos de caderno do diabo, não era preto. Era encapado com aqueles plásticos quadriculados de vermelho que se parecem com toalhas italianas. O meu era encapado com o quadriculado azul. Nunca gostei de regras. Só as ortográficas da Sra. Dinorah. Sempre fui uma proposição contrariada. Neste caderno anotávamos também algumas regras gramaticais que tínhamos, segundo a nazista, que decorar. Me lembro das preposições. Passei dias, meses, séculos, gerações tentando decorar as dezoito preposições: a, ante, até, após, de, desde, com, contra, em, entre, para, per, perante, por, sem, sobre, trás... Nunca consegui gravar as cinco últimas. Hoje compreendo que tenho problemas com "per, perante, sem, sobre, trás". Sempre fui uma preposição incompleta. Não consigo estabelecer certas relações de subordinação. Sou uma preposição acidental, um "exceto". Muitas vezes sou um "senão". Às vezes não consigo ligar dois termos de uma oração. A expressão fica perdida num canto da minha intenção. Falo sozinha comigo mesma, entendo minhas frases insubordinadas. Sou um perante. Talvez um trás. Um sobre sem per.

Muitos anos se passaram. Sempre que escrevo um texto ou me debruço em pesquisas, me lembro da megera e do caderno do diabo. Já falei que ele era azul. Não sei se contei que ela já faleceu. Nem sei se atualmente ela ainda dá aulas. Não sei se no céu os anjos precisam de cadernos do diabo. Talvez ela tenha ido para o inferno. Dizem que lá eles não usam cadernos. Ela deve sofrer com esse detalhe.

Criei uma pasta no meu iPad para as palavras que ortograficamente escrevo errado. Digito cinquenta vezes a mesma palavra. Sou muito mais cruel que a Sra. Dinorah. Não há exceção entre as minhas preposições. 

Aprendi a escrever “exceção” depois de ganhar dois calos nos dedos. Nunca mais esqueci. Como não me esqueço dela. Sempre entrava na sala com sua farda de general: avental rosa com um bolsinho na frente repleto de giz colorido. Para cada erro específico, uma cor. Erros são coloridos. A Sra. Dinorah era branca. Não sou nem colorida, nem branca. Sou a lousa. Talvez, ainda seja o caderno do diabo tentando aprender a grafia certa da vida. 

Um dia encontrarei a Sra. Dinorah. Tomaremos um café com açúcar de silêncio eterno. Não precisaremos mais de nenhuma palavra.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

cASAL - por Dilma Alencar.


Passos tristes em direção à estação, a chuva fina molha as mãos dadas, os casais passam no sentido contrário, um homem com boina vermelha e calça justa improvisa Chico Buarque em seu violão preto, enquanto dois bêbados abraçados soluçam cerveja e descem a rua.
Um casal caminha sem pressa, no início os passos parecem tomar a mesma direção: o metrô.
Ela conheceu Eduardo numa tarde de sexta, entre uma página e um cigarro, ela sofria a angustia das personagens Clariceanas.
Depois de chamar três vezes, finalmente Eduardo conseguiu ser ouvido. E sim, ela tinha fogo.
Os sorrisos foram embalando os braços, os olhos adivinharam alguma coisa por trás das coisas óbvias dos parques.
A grama parecia mais verde, o céu pintou umas nuvens de laranja e alguém tocou a música “vinte e nove”, falaram, ao mesmo tempo, o quanto gostavam daquela música.
Ela reparou uns fios grisalhos no cabelo do homem, notou uma cicatriz no modo dele olhar o horizonte. Sua imaginação feminina e passional deu a ela um nome de mulher, foi o primeiro sinal de querer Eduardo, muitos sentimentos nascem assim, de um nó inventado, de uma cicatriz imposta rente à carne do outro.
Nada doía, saibamos. Os olhos faiscavam alguma coisa além do tesão.
Ele falava pouco, desajeitado com as palavras que sempre foi. Mas fazendo esforço para ser agradável e permanecer ali, perto da voz e do decote da moça. Ele gostou das cores do lençol que cobria a grama, achou graça por ser um lençol e não uma toalha de mesa como de costume no parque.
Comprou água com gás e guaraná.
Um homem passou oferecendo fotografias ao casal.
-Registrem esse momento. Dizia.
Eles sorriram, pois não eram nada além de desconhecidos, se assim se souberem sempre, desconhecidos, terão graça.
Um outro homem passou oferecendo a preço de alma e culpa a história de um homem crucificado.Eles não ouviram.
Fumavam mais e falavam mais perto um do outro.
Eduardo chegou mais perto da moça, rio um riso que interrogava a aproximação dos rostos. Ela disse que sim, com um olhar demorado que anunciava ternura em pétalas lilases.
Ele, inseguro como os homens negam ser, tocou a cintura dela.
E logo, casal.
No fim do dia, casal.
As mãos, ainda tímidas da novidade, ora juntas, ora soltas.
Caminhavam em direção ao portão de saída.
Eduardo, devagar, como se a moça fosse de porcelana cara, passou seus braços pela cintura dela e a abraçou como um namorado faz.
Ela deslizou os dedos entre os cachos castanhos que cobriam a nuca de Eduardo.
Telefones trocados, vontades ditas entre um beijo e outro, um amasso e outro.
Antes de dormir, ela mandou um haicai do Leminski para o homem, Eduardo não estava em casa ainda, mora longe do parque e dela.
Ele enviou como resposta uma “carinha” feliz, e escreveu logo em seguida, para se redimir da economia linguística, uma frase explicando a alegria que o cheiro da moça anunciou aos seus sentidos.
O primeiro café juntos. Ela escolheu um lugar bonito: xícaras estampadas de verde oliva, frases nos pires. Ele usou um tênis vermelho. Ela provou seis vestidos antes de decidir usar uma saia.
Sabiam pouco um do outro, se queriam. Ela não fez perguntas.
Ela viu que ele dispensa canela e gosta de café carioca.
Eduardo disse do trabalho com entusiasmo, diferente da moça, que vivia a dúvida de dizer sim a estabilidade ou arriscar dois anos fora do país, conhecer “gente nova”.
Seis meses. Hoje faz seis meses do dia do parque.
É noite, os passos desse nosso casal caminham sob o céu cinzento e chuvoso.
É mês de festa. As mãos já não se sabem soltas.
Em frente à estação, um beijo demorado sela o fim do domingo.
Doces, cheios de luz, encantados com o brilho azul que a chuva trouxe à cidade. Eles se despedem, tristes, como se uma semana fosse uma ano longe dos sentidos um do outro.
Um casal sob a garoa humaniza o olhar.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

sANTA - por Vinícius Linné

Eu queria estar longe, toda distância ameniza a dor, mas estou ainda aqui.

De longe os números soariam números. A notícia seria triste, mas não imensa como é.

A comoção seria a mesma – uma das meninas posso dizer que vi crescer –, mas não haveria estas ruas cheias de sirenes com notas fúnebres. Não haveria a certeza de que o mesmo ar que agora respiro infeccionou-se de fumaça negra e letal a algumas quadras daqui.

As casas são tristes. A palavra “LUTO” se multiplica pelas ruas, os panos negros acenam nas janelas. Carros, gente, gritos, lágrimas mancham a cidade com nome de santa. A cidade pandemônio. A cidade inferno.

E só de pensar o quão pouco me colocaria naquela boate, estremeço. Um convite, um amigo, uma vontade súbita, uma coincidência qualquer e então a fumaça me consumindo também. E então os sinos aqui e lá em Tapera dobrando por mim.

Na verdade, não se pode pensar. Nem dizer ou escrever se pode. Não é esse o tom. O tom aqui é de minuto de silêncio. Minuto eterno, que congelou a vida toda de quem ficou. Dos pais, dos filhos, dos irmãos, dos amigos... Nenhuma vida voltará a andar. Tenho a impressão de que todos morrerão (daqui a anos) ainda nesse silêncio de sepulcro.

Respeitemos, então, o silêncio deles. E busquemos o nosso próprio. É no silêncio que as feridas se fecham. É no silêncio que os últimos rastros da fumaça somem. É no silêncio que podemos doer, enfim, até a dor amansar. Sim, amansar, porque a dor, ao contrário de nós, não morre jamais.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

o ESPARTILHO BRANCO - por Simone Huck

"The Corset", Valerie Steele.
(Raio-X de Cathy Jung usando um espar­tilho).

(para A. M.,  entre nossos longos cafés e diálogos).

Suas manhãs eram feitas de lancheiras, cadernos escolares, lápis de cor, o jornal do dia, desenhos impressionistas com giz de cera, sucrilhos, leite semi-desnatado, a pasta do marido – o primeiro a sair de casa, preocupado restritamente com seus compromissos – e as coisas dela; última a sair, carregando os dois filhos pelas mãos com suas respectivas mochilas. As crianças começam cedo a carregar nas costas seus pequenos mundos. Bom dia, Vietnã.

Entra no carro, acomoda os filhos no banco de trás, as mochilas e lancheiras, sua agenda e no banco do passageiro acomoda sua solidão. Ajusta o cinto de segurança com uma leve vontade de ajustá-lo em seu próprio pescoço e apertar até o ar ser a última coisa a invadir seu corpo cansado de uma rotina silenciosa e cheia. Não estava triste. Não era infeliz. Liga o carro. Queria ouvir Marisa Monte cantar Give me Love no último volume mas o filho grita do banco de trás “mamãe, coloca a música do Patati Patatá?” Se ela pudesse, compraria uma metralhadora na primeira boca de fumo – correria risco de vida – só para poder entrar no primeiro circo e matar a primeira dupla de Patati Patatá que encontrasse pela frente. Seriam dois palhaços a menos dos três milhões que se disseminaram nos últimos anos. O lixo sempre tem um marketing inteligente. Trocou o CD a pedido dos filhos e foi Patati Patatá quem metralhou Marisa Monte. Ela não ganhou amor. Give me Love não existe. Deixou os filhos na escola e sua solidão, sentada no banco do passageiro, fumava um debochado cigarro e vestia Calvin Klein. Tinha um sorriso elegante tanto quanto sua postura e roupa. Repousou suas mãos em cima das mãos dela quando tentava trocar a marcha do carro e disse “agora vamos tomar um café de verdade?” Concordou sorrindo. Trocou o CD do carro com tanta raiva que quase esfarelou Patati Patatá entre seus dedos. Give me Love começou a tocar. Ainda era possível. Chorou. Cantou. Batia no volante com dedos ávidos, acompanhando o ritmo da música. Finalmente era seu próprio metrônomo. O ritmo, a vida, o ar que entrava pelos seus pulmões e atravessava sua alma estava em Adágio. Naquela hora da manhã, tudo era somente seu e seguia o seu ritmo. Lembrou que antes de sair de casa havia vestido por baixo da roupa cotidiana um espartilho branco que o abraço frio e rápido do marido não notou. A rotina é uma tesoura diária que recorta detalhes.

Faltavam duas horas para o trabalho. Precisava mais uma vez daquilo. Não, não era vício. Nem fuga. Não era louca. Não estava possuída por um espírito. Tinha o exato controle de sua mente, coração e vida. E justamente por ter o controle de todas as suas razões e emoções, sentia-se plenamente lúcida para mais uma vez estar ali. Estacionou o carro numa garagem larga com vários outros carros. A casa era bonita por fora, clara, com algumas flores debochadas no canteiro de entrada. Tocou a campainha e o interfone pediu a senha. Aproximou a boca no microfone e disse alguma palavra em inglês que lembrava peixe, seguida por três números repetidos. Nosso maior segredo pode habitar uma simples senha. A porta abriu. O que estava lá dentro em nada se parecia com o que estava lá fora. Era escuro, muito escuro. Corredores, balcões, quartos. Não havia flores. A casa parecia um labirinto sem fim. Anônimos da manhã misturavam-se com os anônimos da madrugada. Entrou no terceiro quarto escuro depois do segundo corredor. Fechou a porta e os olhos. Em menos de dois minutos sentiu uma boca a percorrer seu pescoço e corpo. No escuro, uma boca é uma boca, nada mais. Quem a beijava sentiu seu espartilho, suspirou alguma coisa inteligível e gostou. Os desconhecidos alimentam-se de detalhes que os conhecidos não enxergam. Em poucos segundos estava nua, abraçada, beijada e domada. No escuro anônimo, Maria Bethânia cantava “Dentro da noite feroz, no breu das noites brancas de hotel, no clarão, no vão, no não... na multidão. Tua. Tua e só tua”. Misturado a um cheiro velho de almíscar, ela sentia-se completamente de alguém com vontade, suor, tremores e silêncios. Escamas córneas escorriam pelas paredes. Dentes, mãos, pelos e pele. Tudo era minuciosamente percebido e sentido. Ficou por duas horas naquela casa. A porta abriu e fechou algumas vezes. Outras pessoas entram e saíram. Todos notaram seu espartilho.

Entrou no carro. Antes de sair passou um batom, arrumou o cabelo e foi para o trabalho. Atendeu telefonemas. Resolveu situações adversas. Autorizou a contratação de dois novos funcionários e saiu para almoçar no horário de sempre. Conversou com todos normalmente. Resolveu tudo com a eficiência diária e as dezoito horas em ponto estava no portão da escola para pegar seus filhos. Em cinco minutos as crianças saíram com um sorriso largo pendurado no pequeno rosto, abriram os braços e correram em sua direção. Ela os abraçou como se abraça alguém que vai para a guerra sem a certeza do regresso. Eles a abraçaram como se abraça uma mãe, na rotina dos dias. Foram todos para casa. Não tiveram tempo de pedir Patati Patata porque ela já havia deixado pronto para tocar. Voltaram cantarolando os palhaços. Ela achou a vida uma ironia. Um picadeiro com a melhor fantasia. Um palhaço no auge de sua melhor palhaçada. Ela nunca conseguiu sorrir com um palhaço.

Chegaram em casa. Deu banho nas crianças e quis terminar de preparar o jantar. Fazia questão de finalizar o que a empregada deixava pronto. Queria ser a última a dar uma pitada de gosto em seu pequeno desgosto particular. Enquanto os filhos brincavam na sala, o marido e sua pasta entraram. Ele abraçou os filhos como se abraça um gato. Sorriu. Foi até a cozinha e beijou-a como se beija a foto da própria mãe numa lápide fria. Ele era muito educado. Elogiou o cheiro da comida e quase não notou que ela terminava de preparar o arroz com carne que ele mais gostava. Foi para o banheiro em silêncio. Tomou banho e não ousou cantar uma única vogal. Quando terminou, todos o esperavam na mesa. Antes de começar a comer, ele quis colocar uma música para tocar baixinho na sala ao lado. Ela concordou. Ele foi até o aparelho de som, colocou o CD e deu play. Maria Bethânia começou a cantar: “Dentro da noite feroz, no breu das noites brancas de hotel, no clarão, no vão, no não... na multidão. Tua. Tua e só tua”. Ela parou de respirar. Ele voltou para a mesa e começou a comer. Ela perdeu a vontade de comida e começou a mastigar a música que deitava em seu prato. A rotina tinha fome e apreciou a carne com arroz que ela fez. A música tinha fome e notou o espartilho dela. A rotina e a música lamberam os beiços.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

mARINA - por Dilma Alencar.

Os abismos apartam o homem do óbvio. Os cabrestos orgulham os pares desavisados da morte, os horários, as brigas, as rédeas que qualquer relação pressupõe. Enfeites, o fogo foi nosso primeiro símbolo, luz, enfeite.
A solidão não é um prêmio aos desajustados do mundo, esses por aí, que tem angústias embutidas até nos goles de cerveja, a solidão é um segredo dos primeiros homens, é uma linguagem que não se ajusta aos pacotes de viagem nem às noites eróticas de rezas, a solidão é um estado de silêncio em que os fantasmas nos amam, solidão é o espaço entre meu copo e o seu, entre meu filho e seu parto, a solidão é um estado de dor inseparável, de uma regularidade que envergonha qualquer namoro,
A mãe que guarda a roupa do filho morto. A fome de pão alimenta a linearidade do operário feliz, a fome de corpo estrangula o corpo de adultos violentos.
Com três tiros levaram o menino vadio.
Com três terços banhados em ouro, ela voltou sem comer, cada conta uma lágrima e o filho morto, um soluço e um filho morto, um orgasmo e um filho morto. Um pedaço de pão dormido e um filho morto.
A vertigem anula absurdos e o que dói já não precisa de nome, assim também como o que dá prazer. A cidade é palco, é também vida. A cidade é.
Há fome de carros, gravatas, crachás, apartamento, viagens, drinques, novas línguas, sex shop, pubs, yoga, comida vegetariana, piscina grande, feriados longos, havaianas, jeans, cinema, teatro, açougue, asilo, creches, campanhas, acampamento, escritura.
Jornais, estúpidos e niilistas, organizam o caos no discurso de quem manda, quem lê ri e arrota as últimas teorias para explicar a guerra, a impotência sexual, a bipolaridade, a depressão, o barroco, a renda da saia, o fio do cabelo, a partícula de deus, o buraco do asfalto, a fumaça da boca do mendigo, o fedor do rio, o músculo da perna do jogador, o dente quebrado do artista fenômeno do minuto, o imposto que não rende rente aos olhos de quem paga, o sangue na escada perto da avenida.
Mãos e pés, escadas e corrimãos. O cenário da lida, as estações inchadas de pressa.
À primeira luz, poucos sabem, ou podem, ver além da plataforma e do trem. A maioria dos olhos está no pulso e nos trilhos, os passos apressados, os corpos cansados, antes mesmo das seis.
A ordem do dia é a vida regulada pelas horas aceitas.
Na contramão do fluxo, do óbvio e do apetite geral, Marina volta do velho centro.
Tocara percussão durante 4 horas. Boêmios brindaram à música, ao diabo e principalmente às pernas de Marina, vistas redondamente vistas com desejo, saltando de um vestido azul.
Deus põe poesia no sereno, e Marina aos olhos de poetas.
Nos intervalos, ela fumava, doce como só ela sabe ser.
Solta, irresponsável à correnteza dos atos clichês, Marina foi a um quarto tão desconhecido quanto a sua companhia despiu e foi despida.
Quente, esguia e ávida, matava a fome, alimentava os versos que um dia alguém, de certo, escreverá.
Marina, agora, voltava para o lar: filho de um ano, marido e no domingo, almoço na casa da sogra. É muito feliz.
Ninguém duvida.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

PRETO no BRANCO - por Vinícius Linné

"Ela mostrou. Ela mostrou um papel em que dizia que a casa toda era dela. E que eu tinha umas tantas horas pra sair de lá. Eu saí. Saí, né?! Saí porque se está escrito lá no papel, então é verdade. Se ela só dissesse, eu não acreditava não. Mas tava no papel. E era papel bonito, viu?! Com letra desenhada e tudo. Carimbo? Não, não tinha carimbo não. Sinatura? Sinatura é quando escreve com letra tudo junta, né?! Sinatura tinha sim. Era bem vermelha, coisa mais linda."


"A Maria Izildinha disse que tava escrito lá no livro. Tava no livro que ela leu na escola que no Japão o céu é embaixo. Coitadinhos dos japoneses, devem viver no mundo da lua. Por isso é que são tão avançado, né?! Queria eu na época dela ter ido pra escola. Eu ia saber daí dos japoneses e de tudo mais que tá escrito nos livro. Eles fazem os livro tudo contando o que existe, sabia? Outro dia ela tava lendo um cheio de ET, até me mostrou uma figura. Eita bicho zuiudo. No mínimo eles moram lá no Japão também. É tudo mesmo meio céu, né?"


"Mas é verdade! Tá até escrito! Deixa que eu vou pegar o papel pra você ver como que é verdade"


"Então escreve! Não, não, não. Negócio de promessa não me vale de nada. Palavra de homem só se bem escrita aqui no papel. Se eu tiver o papel escrito e tu não cumprir, depois eu posso ir lá na polícia e mostrar: tá aqui, ó! Tá escrito o trato todo. Escreve logo. E daí se eu não sei ler? A polícia sabe... a polícia sabe..."


"Escreve. Escreve tudo aí, seu moço. Escreve porque se a gente não tá escrito, a gente nem existe. Pelo menos foi assim que me falou o homem lá do cartório. Disse “Senhora, se não tem o papel dizendo que a menina nasceu, ela não existe”. Agora veja, a menina já tá quase criada, crescida e depois de tanto tempo parida nem gente é. Pra ser gente tem que tá escrito em algum lugar que se é gente, então escreve aí, seu moço: Ana Francisca Clementina das Almas existe. E é gente! Apesar de que não muito..."

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

a CHUVA LÁ DE FORA E AQUI DE DENTRO - por Simone Huck

Aquarela de Joana Vieira

Visto-me de janeiro e tento compreender a espera das horas que me escurecem. Ontem tive uma súbita vontade de vender todas as minhas palavras. Quem daria cinco centavos por elas? 

Desconheço a extensão da letra e do motivo. O que será que nos move de fato? A palavra ou a intenção? Memórias póstumas estão ancoradas no presente do meu fígado. Martelam regras, odores e nãos. Sou um pirata ilhado no meu próprio mar. Tenho saudades de casa.

Hoje o dia foi um suceder de tempestade e sol. Nem os céus sabem o que querem. Todos estão loucos; não faço parte desse hospício sozinha. Será que Zeus quer chamar atenção ou está numa crise de identidade e idade? Estamos todos envelhecendo. Nos céus ou na terra. Controlando chuvas ou palavras, todos querem vender alguma coisa que pensam possuir. Seremos eternos mercadores. Deuses e homens em conflitos e trocas. Vamos descer? Ou melhor, remar?

A falta omitida. A presença adiada. A saudade guardada num baú empoeirado, repleto de relicários e traças famintas. Agarrados a um pedaço vão de fé, somos um exército de maltrapilhos pagando promessas mudas por coisas que não mais acreditamos. Não desistimos. Somos homens da insistência. Quem ousa dizer que não somos felizes? Mas é claro que somos!

Janeiro é uma repetição de chuva, sol e tempestades. Tempestades externas e internas. Qual será que destrói mais? Enquanto a tempestade desce dos céus, vejo a porta dos estabelecimentos repletos de gente que buscam abrigo. Padarias, bares, mercados, bancos, hospitais, ficam com as portas de entrada obstruídas por uma multidão se protegendo da chuva. Possuem olhos ávidos. Olhos de esperar chuva passar, tempestade acabar, água secar. Olhos nostálgicos também. A chuva sempre molha alguma coisa interna do nosso humano. Amontoados, homens e mulheres com medo dos céus a espera de um segundo de trégua. Quando os pingos chegam, eles se atiram ao anonimato das ruas e seguem seus solitários caminhos. Passos apressados. A dúvida sempre corre.

No fundo, só queremos voltar pra casa. O guarda-chuva de pedra das nossas vãs ilusões.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

o DIA EM QUE AS LÁGRIMAS ABENÇOARAM O FIM - Por Dilma Alencar


À mesa posta, nos olhamos em silêncio, o silêncio árido, ali nasciam nossas sepulturas.
Os pratos brancos e limpos dispostos elegantemente sobre a mesa não se comoviam com nossas vergonhas e cicatrizes.
A carne, a salada e o vinho, ofendidos do nosso fastio, exibiam irresponsáveis, seus aromas.
A sala, pouco iluminada pela luz da cozinha, abrigava nosso medo de morrer na primeira noite de um verão que se abria em icebergs nas camas arrumadas.
Seus óculos na estante atacavam meus nervos com pistas do que faria falta.
As velas acesas aos pés de Iemanjá faiscavam meu desespero de partir.
Nos falamos com o cuidado de ser breve,pois o tremor e a rouquidão da voz diziam da debilidade de nossas decisões.
Após o primeiro corte, a primeira garfada engolida com dor no nó da garganta, depois de engolir sem prazer, os olhos se encontraram com uma distância aguda, um aborto doeria  menos do que aquele vislumbre.
Úmidos, salgados e rápidos em sua rota de fuga, nossos olhos encontraram o molho, o sal, o guardanapo.
Bebemos vinho. As taças transbordaram como açudes barrentos, revoltos e sujos de terra vermelha, mas os olhos permaneciam fiéis ao cenário de serenidade e amadurecimento que pretendíamos.
Na cozinha, o verde rompia a terra preta, as sementes plantadas brotavam brutas e indiferentes à ruína da janta, confortáveis em seu vaso rosa. Mais um verso tecia o confuso espetáculo da nossa linguagem.
Sobre o sofá, uma mala pequena estendia a alça convidando minha partida. A mala pesava uma vida.
Recolhidos em papel, panos, escova de dente e caneta bic, todo objeto carregava a dor de um filho morto, morto antes de ter asas.
Sem orações e sem fé, a parafina inundava o chão da sala. O som da TV não alcançava nossos ouvidos úmidos das promessas que os corpos gozaram.
A toalha de mesa branca pedia paz na fronteira da dor virando água. Deixaríamos um filho nas entranhas.
A mesa coberta de orvalho rompia as raízes do orgulho e da violência. Lírios brancos flutuaram acima dos pratos sujos.
Arriscamos um riso sem motivo, ensaiávamos a persona do próximo carnaval.
Sentimos o penhasco embaixo da mesa.
Partimos para uma realidade por fazer. De metal ou de manto, partimos.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

a MÃO DO TOQUE - Por Vinícius Linné


Depois de morta, falou e escreveu de uma maneira sem igual. Atingira, enfim, a compreensão sagrada do que já acabou. É no final que muitas obras fazem sentido. Foi do túmulo que ela compreendeu que não se compreende a vida. E então contou.

As suas frases ditas entre o sopro azul dos mortos, pontuadas pelos olhos baços, entrecortadas por pupilas dilatas, e tamboriladas pelos dedos tortos, dedos mortos, tornaram-se meu epitáfio.

Cada frase reverberou no meu corpo vivo – e o matou um pouco. Cada frase se aglutinou ao meu sangue e ali corre, sem parar. As frases da morta eu tomo como minhas. Se há bíblia em mim, é o seu livro dos mortos, cheirando a alcatrão e perfume caro.

Para cada palavra que sua boca dizia, meu peito captava mais outras no ar. Não era simples a morta. Se fosse, morreria, deitaria e se manteria calada, segurando o riso e as lágrimas até a platéia sair. Não. Era complexa. Falava e entristecia, despudoradamente.

Quando a morta falou “ou toca, ou não toca”, eu sabia do resto. Eu sabia que ela mesma não gostava de ser tocada, não se permitia ser tocada. Ainda assim, não havia nada que desejasse mais do que o toque. Nada ela queria tanto como que segurassem sua mão de morta, aquela queimada e atrofiada e apodrecida e feia. 

Alguém queria segurar a mão da morta?

Ninguém.

E se alguém tentasse, se alguém arriscasse a sanidade e a vida, se alguém estendesse sua mão viva à mão da morta, ela recolheria a própria mão tomada de horror. E pudor. A mulher que só era compreendida pelo toque não se deixaria tocar. Ela não queria compreensão. Não precisava. Queria contato. Puro. 

E por serem minhas também as frases, por haver morte correndo em mim, eu também preciso ser tocado para que me possam compreender. E eu também me esquivo. Eu também tenho horror ao contato do que é humano.

Ultimamente, no entanto, tenho me deixado tocar. Tenho me deixado ser. Tenho deixado a aproximação de quem tem a coragem de se aproximar.

E descubro, então, fascinado, que tocar é deixar-se tocar. Que ser é deixar o outro ser. Que a proximidade não fere, mas antes dá a impressão de vida. Era isso. A morta queria ser tocada e tocar para ter a impressão de que ainda estava viva. Só isso.

E então eu quero também. Quero porque isso revive o que em mim é catacumba. Quero porque o humano me aproxima de ser humano. Quero porque o oposto de tocar não é não tocar. O oposto é deixar-se morrer. Mesmo em vida. E eu, apesar de ter as frases dela, não lhe tenho o mesmo senso. Não, eu não. Eu não quero guardar minha mão pra morte.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

palavras E VIDAS COSTURADAS - por Simone Huck

A casa estava sempre cheia de linhas coloridas, moldes, panos e agulhas. Cresci vendo minha mãe costurar tecidos. Minha mãe envelheceu me vendo costurar palavras. Com agulha ou caneta, estamos sempre costurando os panos da nossa espera. Repetindo promessas e sentimentos. Vamos caseando ilusões. Diante das nossas particulares máquinas de costura, seguimos fazendo a barra do nosso tempo. Pregando o zíper da paciência ou da ausência dela. Deixando os pontos surgirem das agulhas, em eterno zigue-zague. Das várias máquinas de costura que habitavam minha infância, me lembro bem dessa que fazia zigue-zague. Ela produzia vários tipos de pontos, bastava escolher o modo mais ou menos emaranhado. Sempre preferi o que mais parecia complicado. Eu já era um arabesco e nem sabia. Um eterno marinheiro perdido entre os diversos tipos de nós e mares e ondas e gaivotas e solidão. A vida é um mar costurado. As linhas entrelaçam-se emaranhadas. Rumo ao caos de algum resto de pano. Sempre gostei de restos de pano. Minha mãe sempre gostou do resto das minhas palavras. Estamos de mãos dadas. Brindemos o resto dos panos que ainda conseguimos ser. Pendurados no eterno varal da vida. Secamos numa manhã ensolarada.

Ela está doente. Até onde sei, não estou doente. Ela precisará fazer uma cirurgia no fim do mês. Peguei em suas mãos e a levei ao cirurgião. Agora sou eu quem precisa protegê-la entre meus braços inquietos. Conversei com ele e só depois que autorizei, ela resolveu se deixar abrir. Invertemos os papéis. Agora sou sua mãe e ela é a minha filha. Minha filha tem sessenta anos. A mãe da minha filha tem quase quarenta. Depois que garanti que tudo ficaria bem, que eu estaria na sala ao lado do centro cirúrgico, ela voltou a sorrir seu triste sorriso amarelado. O sorriso da minha mãe está precisando de óleo singer. A camisa da minha esperança está precisando de alguns botões. Ela será costurada: agulhas, tecidos, pele, vísceras, epiderme e minhas palavras. Minhas palavras não podem costurá-la com segurança. Ela é um tecido com medo. Sou uma palavra dúbia. Uma caneta que tenta garantir seu melhor zigue zague. Estamos em alto mar.

Duas horas da tarde. Entro no meu carro. Antes de costurar as ruas ligo o ar condicionado. Faz trinta e três graus em São Paulo. Já não sei mais o que é viver fora de um ar condicionado. Sou uma palavra quente. Não trabalhei. Tirei o dia para resolver as costuras da minha mãe. Acabei de juntar todos os papeis pré-operatórios. Agora ela se parece com uma tartaruga. Carrega no lugar do casco uma pasta repleta de exames e diagnósticos. Suas costas estão pesadas de papéis e palavras. Os médicos de hoje não sabem costurar o mesmo pano nem usar a mesma palavra para chegarem a uma mesma conclusão. Cada um escreve um laudo. Cada um costura um zigue-zague em eterna contradição. Ainda bem que sei decifrar arabescos.

A vida me deu o privilégio de ter alguns amigos médicos. Meu telefone toca, eles me garantem que ela ficará bem. Às vezes, meus amigos e eu, falamos a mesma linha sobre o mesmo pano. Ela ficará bem!! eles insistem. Semana que vem vou terminar de escrever meu livro. Semana que vem minha mãe será costurada. Entre agulhas e palavras a vida vai abrindo suas trincheiras.

Estou em casa. São quase dez horas da noite. Já passei minha roupa e antes de apagar a luz leio mais alguns trechos do livro. O telefone toca. Quem ousa me ligar nesse horário e na minha casa? Apenas cinco pessoas possuem o número da minha residência. Todos sabem que não gosto de ser incomodada quando estou na minha casa. Atendo equivocada e do outro lado minha filha de sessenta anos agradece por eu ter estado o dia todo cuidando dela. Confessou que só depois que me viu conversando com o cirurgião, entre palavras difíceis, foi que conseguiu costurar em paz. De palavras difíceis ela sabe que entendo. De panos e costuras, sei que ela entende. Ligou pra dizer que fez uma outra regata pra mim. Uma regata branca e com gola, do jeito que ela sabe que gosto e que só ela sabe costurar. Quando o telefone tocou eu escrevia essa crônica falando dela. Ela com as agulhas. Eu com as palavras. Nossa vida será um eterno zigue-zague. Estaremos costuradas no fim do emaranhado.


terça-feira, 8 de janeiro de 2013

uM HOMEM EM SILÊNCIO - por Dilma Alencar

Sorriu e entrou no táxi. Seu semblante não era de alegria em explosão como paixão de adolescente, limpa e ainda intacta.
Arrumara a casa, o curso, a cidade.  Os dias de estudo e trabalho esperavam o homem. Os amigos crentes de seu sucesso fizeram almoço, compraram agendas e camisas sociais, meias em tons pastéis e até cartão. Chegou cedo ao aeroporto, conversou com intimidade com a moça do caixa e falou da insegurança de ser homem sério. Ela ouviu, não entendeu e lhe perguntou se tinha cartão de débito.
Enquanto tomava seu chá preto seu pensamento voou se desfazendo como nuvem, montando desenhos indecifráveis.
Era homem vivido e seu olhar mel, barba enegrecida, traços fortes, mãos grandes, corpo e passos firmes, tudo exibia a plenitude do sucesso, mas um pouco de atenção maior ao olhar desnudava um amargor no peito, um boi perdido no mato, sem vaqueiro que o alcance, sem cabresto, cio sem leito, há muito o sereno cansara a sua vista, e os estudos o livraram das reuniões familiares.
Ser arisco, ser silencioso como um cacto lhe cortara vínculos, não que não regasse flores e mais de uma vez não lhes entregasse o seu coração bruto.
O pão dividido pela manhã não era comungado como linguagem e lhe cobraram discursos sem tronco, sem semente nenhuma, pois embora urbano ele interpretava o mundo como colheita, e contemplava os acontecimentos com o espanto de quem não escreve nem lê, e ouve um repente que geme, uma reza.
Dormir, comer, fazer amor, tomar banho de chuva, tudo era sentido como uma festa, ou um enterro, a gravidade do silêncio era certa. Sempre fora assim: fundura muda.
Os novos amigos juravam que ele guardava saudades de amor antigo, desses amores que ficam de mãos dadas a vida inteira, mesmo estando os corpos em outro tempo e espaço.
Porque tinha muito amor, escolhera viver só.
Certa vez, aceitou um pedido de namoro.  Uma semana depois, sua gaveta de cartas amarelas sem remetente nem datas, onde súplicas de um amor agonizante derretiam sua sintaxe, fora vasculhada pelas mãos nervosas de uma mulher apaixonada.
Ele lamentou o equívoco do enlace impossível e disse para a moça que respeitava mais sua solidão que a sua liberdade.
Ela disse que não entendia, ele lhe explicou que para ele a solidão era mais cara. “Liberdade não pressupõe espaço e tempo, solidão são meus pratos e livros dispostos à minha vontade, meu corpo e café ao meu sabor, meu olhar livre para deus e a para o diabo, liberdade é um nome para ganhar correntes coloridas. Liberdade não existe ao passo que solidão é a dignidade de não amar a abstração, a ideia, e sim morrer no corpo a ânsia de eternizar o desespero, assim poder morrer num repente de tanto amor transbordado no olhar” ele dissera.
Ela não entendeu, assim como também ele não soube até hoje o que quis dizer quando disse.
Ele não era triste, seus gestos ternos encantavam as mulheres. Ele amava, sim.
Um amor largo e sem morada. Saia pouco, e quando o fazia, voltava sempre acompanhado. Sexo e gentilezas previsíveis, pois assim elas esperavam. Nunca quis o telefone de nenhuma, embora aceitasse sempre anotar o número delas e fazer perguntas previsíveis.
Agora ali, no saguão vazio do aeroporto àquela hora da manhã.  Sentia uma dor nova.
Um estranhamento de apertar-se em seu próprio corpo, o jeans azul, a camisa preta,o cabelo arrumado ,o rosto  talhado com traços viris, mas os olhos, esses adquiriam uma liquidez nova, amoleciam enquanto viam a pista: os aviões pousando, gente partindo com lágrimas, com panos cheios de memórias e gostos, com rosas no peito e desespero na alma.
Ele experimentou olhar além da possibilidade de sua solidão tão cara.
Viu - com espanto de quem leva um tiro, incrédulo, atônito, mudo e pálido - homens arrastando correntes no tornozelo, mulheres enredadas em fios de tarrafa, casais jovens com punhais no peito. Um homem gordo arrastava um jovem com corda de aço. Uma velha limpava a ferrugem das correntes dos filhos homens.
Dentro de todos, ele via um círculo rubro. Apertou os olhos com força.  E viu, sem espetáculo nenhum. Pediu leite, bebeu. Foi ao banheiro com o cuidado de não mirar o espelho.
O relógio, como era de costume, lhe apontou os passos. Embarcou, com medo de ver de novo. Sentiu um frio, metal frio nos pulsos.
Ele não sabia das correntes que lhe aguardavam, mas já sentia o estranhamento da temperatura.


segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

A ANGÚSTIA DO SER que escreve - por Vinícius Linné


Minha força é fraca. E quando dizem “Empurre! Empurre!”, eu faço de conta que não ouço nada. Eu espero, espero até que o médico diga: “tragam o fórceps”. Só então eu consigo relaxar, me alargar e me entregar de alguma forma. Porque daí não é minha a responsabilidade. Não sou eu o culpado dos partos. Não me condenem, por favor.

Como é ser um pardiouro de loucos? Alguém mais sabe? Só quem experimentou sabe da dor de fazê-los nascer. Não a física. A moral. Quando eles se põem a chorar por terem nascido. Quando eles sofrem e se arranham e desejam estar mortos. Quando eles se matam. Daí é que dói em quem os colocou aqui.

Por isso eu evito os partos, eu tranco o corpo, eu adio esperando qualquer cordão enrolado no pescoço, qualquer tombo fatal no último instante, qualquer agulha enferrujada me perfurando por dentro. Nada. Eles implodem necessários. Eles vêm a furo, eles abrem caminho, eles fazem força para nascer.

E não sei. Não sei como impedir, não sei como parar, não sei como estancar o jorro de gente que sai de dentro de mim. Meninas que voejam, anjos com maldições, Ângelos com erupções, louras na camisa de força, Clarissas esquecidas no escuro e até um Vinícius – até um Vinícius insuspeito, emparedado no muro.

Eu evito, o quanto posso eu evito. Mas sou fraco. E há o fórceps, não esqueçam. No fim, eu os acabo escrevendo. Eu os faço nascer. Eu os dou à luz do mundo. E é bem só para que sofram mesmo. Eu queria parar. Juro a eles que queria parar. Mas se escrevendo é que sobrevivo – e os faço viver – como parar? Digam-me: como parar sem morrer?

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

cavalgada DAS VALQUÍRIAS - por Simone Huck

"Para Wagner", 2011 - Simone Huck

Wagner me contou que vai embora no carnaval. Sempre temos uma fantasia para rasgar ou abandonar. Nos céus, fogos revelam um novo ano. Recomeços. Folhas de alma em branco. Dizem que é janeiro. Listas e listas de desejos invadem o coletivo humano. Estamos sempre na periferia de algo. Escrevendo verdadeiros tratados para nós mesmos. Cúmplices de mentiras diárias que inventamos tão bem. Nos convencemos diante do espelho. Nossos olhos em nossos olhos. Ainda é dezembro para muitas pessoas. Inclusive para mim. Há restos que ainda piscam freneticamente como as luzes da minha árvore de natal, ligadas à velocidade máxima. Meu modo preferido. Modos particulares. Medos particulares. Frenesim. Frenética. Vida. Pensamentos acendendo e apagando. Sinapses são histerias conectadas.

Wagner não sabe o que sinto por ele. Talvez eu seja sinistra demais. Oculta demais. Calada demais. Mas o fato é que não daríamos certo. Nossa sinastria amorosa nunca saiu da intenção. No fundo, tínhamos medo até mesmo do que os astros diriam. Éramos céticos em quase tudo. Mas teríamos gostado de ler que seríamos compatíveis na sinastria. Acreditaríamos com aquela fé cega que tanto nos incomodava nos outros.

Resolvi reler Cem anos de Solidão. Era o livro que Wagner deveria comprar para ler comigo. Talvez ele, assim como eu, descobriria que nascemos com cem anos de diferença, com dez gerações distantes, com um atraso de milhares de horas, estrelas ou signos. Wagner é terra. Eu sou fogo. Quando buscava motivos para não me apaixonar por Wagner li que as pessoas de terra são realistas, pragmáticas, conservadoras e gostam de bens materiais. Talvez ele esteja indo embora no carnaval para ficar mais rico. São perseverantes. Já as pessoas de fogo são otimistas, passionais e entusiasmadas. Eu sempre ficava feliz quando podíamos passar horas falando de livros, deus, céu ou inferno. Pessoas de fogo são imprevisíveis e impacientes. Inflamáveis, coléricas. Como poderia dar certo? Será que queimei a terra? Dizem que de um solo queimado não nasce mais nada. “Nem suas margaridas, Wagner. Nem suas margaridas” - pensei. Infertilizei Wagner? Ou ele me apagou? Não há casamento possível entre terra e fogo.

Consegui dormir quatro horas. Ele vai embora. Não posso ir. Também não posso ficar. Há tempos que não habitamos nem aqui, nem lá. Ainda é dezembro. Não me convenceram do contrário. Dois mil e doze ainda está aqui no calor das minhas mãos. Preciso dar alpiste para os passarinhos. Agora tenho uma gaiola e dois passarinhos. A fêmea está grávida. O macho prometeu não partir esse ano. Vai esperar nascer o primeiro filho. Estamos sempre dividindo nossa atenção.

Preciso urgentemente tirar o pó da minha casa antes que tenha vontade de escrever minha carta íntima sobre os móveis. Só para a poeira acumulada eu deixaria meu testamento. Ali, em cima do móvel da sala. Confessaria quem realmente sou e pra onde vou antes do próximo inverno. Escreveria uma carta de amor para você, Wagner. Eu confessaria. Juro que confessaria. Mas só os fantasmas da casa saberiam. Será que eles existem? Nosso ceticismo não acredita em nada. Talvez só em sinastria. Ponto.

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

pARA QUEM TEM AFETO - Por Dilma Alencar


Desejo o delírio, o delírio de ver o mundo reunido num corpo frágil de uma mulher e ainda dormir em paz.
A novidade de nascer um mar nos olhos gulosos do desconhecido e ser prato e pranto para toda a fome, fazer de seus passos guias e novenas, velas acendendo e uma jangada para o mundo.
Segurar todas as certezas com a mão direita e desejar que o dia não amanheça enquanto se faz luz, porque há luz.
Ver as flores cobrirem a terra, ter o encanto de ter o desespero tirado com a mão, não sentir o abismo que o corpo precipita em vertigem e em poros.
Nua, cobrir de milagres o corpo em nó, enquanto se ouve flautas doces chegando com a maresia de suor, como pequenos gestos que sustentam impérios, erguer colunas de um pequeno castelo apenas com um abraço matinal. Anunciar com lágrimas o fim do medo de morrer, arrumar a cama com a mesma devoção que um louco anuncia o evangelho.
Dormir, dormir com o mundo entre as pernas e braços, sentindo o hálito quente da boca que traz a natureza em água e sal.
Rir dos cortes, dos pontos, das amputações, do tédio, da miséria crescente de parecer.
Reconhecer a única possibilidade de encontro. Plantar, no silêncio das madrugadas de lua, promessas de açucenas e ouro. Romper com os pactos de falso amor e ser tão irresponsável a ponto de invocar anjos para embalar a festa de orixás, quando tudo é mar, navegar a ternura em ondas de ressaca e palavras assonantes, contemplar o corpo como se uma sentença de fim estivesse fixada no punho, perder os prazos, perder os horários e ser doce, doce como quem anuncia a paz.
Ser arauto da primavera, perdoar as pequenas mortes em camas alheias, saber crescer a solidão.
Dançar entre duendes, plantar pé de laranja no quintal, comprar pé de pimenta para enfeitar a sala, pensar no melhor conto para ler junto. Comprar presentes em papelarias excêntricas, fazer um quadro com cores em par.
Ter num encontro a satisfação de todas as fomes. Passar horas pensando na cor do esmalte e deixar o artigo para a semana seguinte, andar de metrô durante horas e ainda ter sorriso e humor, cumprimentar os bêbados na calçada, falar dos poemas do Caeiro enquanto os amigos discutem a banalização do sexo e mentem aventuras sexuais nem sonhadas.
 Rir junto com os poetas que brilham rimas de magia, de laços de fita, de maracatus ébrios, que creem nos passos de Oxum, que ouvem Circe, porque ela existe em dedilhados de violão. Comprar vinho e cerveja como quem alimenta filhos.
Sorrindo à santificação da carne  prever a velhice em novos planos, criar cactos e cachorros, e de repente deixar alguém entrar em casa.
Olhar os dois pratos sobre a mesa com um frio na barriga e escrever um dicionário para os substantivos que ela mudou: lençol, chá, horas, pulseira, cachecol, caderno, bloco de notas, água, pinça, bolsa, cerejas, mesa, clipes, presilha, leite, lápis, borracha, suspiro.
Chegar atrasada numa Segunda de sol, com a cara feliz e amassada de quem não dormiu e sorrir no fim do dia pensando que é deus. Ser cicerone bêbado da cidade que construiu pra ela, nas noites de solidão chorar o medo da separação, tomar banho de cachoeira junto, descobrir que alguns filmes dela você já viu mais de uma vez, comprar alfajores adivinhando qual sabor ela prefere, comprar uma bicicleta e voltar para casa com pressa, sem parar nos bares, comprar poesias avulsas.
Trabalhar muito para ter dinheiro para sábados intermináveis, costurar um discurso bonito para regar flores amarelas, viajar para o Peru e levá-la para o sertão e o mar. Cozinhar massas sofisticadas ou miojo e achar que é a coisa mais importante já feita. Comprar uma coberta nova com a cor que ela gosta, morrer de medo e alegria dos símbolos enchendo a sala: lixa de unha, esmalte preto, pulseira esquecida, livro de sociologia, incensos, marcadores de página, óculos.
Saltar de para- quedas, dividir aquele canto da cidade que você sempre vai só, para meditar sobre a falta de prumo dos dias vãos. Comprar travesseiros novos naquela loja da Imaginarium que ela tanto gosta, e pensar em mil e uma formas de dizer do seu bem querer sem parecer repetitiva nem carente, de repente falar assim no modo como você adoça o café pra ela, ou então de como você sempre espera que ela perceba que você não está com pressa, porque todo lugar é mesmo perfeito e completo quando ela está, e não esconder que morre de medo de amanhã não ser exatamente como é hoje, sem atrasos de respostas. Rezar para chover quando ela está porque o barulho da chuva a deixa mais introspectiva e bonita.
Colar recados indecentes na parede da geladeira e fazer pudim com a mesma atenção que você põe a olhá-la, esperar que ela fale e dar silêncio quando entender o cansaço, comprar ingressos antes de todo mundo, só para que ela ocupe a melhor cadeira. Dividir a solidão dos cafés com a linguagem de uma flor.
Para todos os de coração mole, amor.
Nada de contratos, amor.