segunda-feira, 30 de setembro de 2013

dEMAIS - por Vinícius Linné

A noite era urgente, mas o sono não se dava conta disso. Bárbara estava deitada, a mão do marido sobre um seio, o leve ressonar dele a dar tom ao tempo, as frestas da janela desenhando linhas em branco na parede e seus olhos muito abertos, sua mente muito desperta, perguntando sem pausar: "É demais querer mais?"

O apartamento quitado, as crianças no quarto ao lado, os armários da cozinha bem planejados, como ela sempre sonhou. As contas pagas, comida suficiente para estragar na geladeira, dinheiro para as viagens e tempo para tudo.

"É demais querer mais?"

É demais querer a música da rua? As mulheres dos bares? Os ônibus que, perdendo pedaços, deixam a cidade para não voltar? É demais querer outra vida, outro tempo e nenhum filho, nenhum marido, nenhum apartamento amplo com vista para o mar? 

É demais querer mais do que o vazio do peito? 

É, lhe respondia, sem que ela ouvisse, a vida. É demais, dizia a ela, acariciando-lhe os cabelos enquanto o sono não vinha. É demais porque vives o sonho que os outros nem têm. É demais porque eu te deixei brincar eternamente de boneca, de casinha, de papai e mamãe. É demais porque eu cuidei de ti como se tu fosses minha filha mais querida. É demais porque arranjei destinos, fardos e fatos que só te conduzissem ao sonho perfeito. É demais. É demais porque desejas a infelicidade, depois de eu te tecer a realidade toda em cor de rosa.

"Deve ser... deve ser demais", resignou-se Bárbara, virou para o lado, abraçou o marido e depois de algum tempo dormiu. Nos sonhos que teve, sofria infortúnios, era abandonada, ficava sozinha, fugia dali apressada, sem levar nada, nem o nome que era seu. Dormia nas estradas, pegava caronas, transava com estranhos e estranhas. Morria, por fim, para nem ser identificada, descendo penhasco abaixo em uma estrada deserta. Acordou molhada de suor e fluidos. Passou toda a segunda-feira a cantarolar.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

dIZEM QUE É PRIMAVERA? - por Simone Huck


"Nó", 2013 - Simone Huck

Você esfrega o rosto com o dorso das mãos e do seu nariz escorrem duas rosas sem espinhos. Nada mais sangra. Sua coriza é uma primavera sem esperas. Você abre o armário e limpa o solado de todos os sapatos. Deseja pisar coisas novas. Caminhos. Jardins. Pessoas. Você está cansado. Muito cansado. Dizem que é primavera?

Há três dias um caroço de feijão mora no buraco do seu terceiro molar. Hoje de manhã, enquanto você ensaiava um sorriso para o espelho, o caroço germinou. Saltou da boca uma semente mentirosa. Visível. Tateável. Espanto. Dizem que é primavera?

Obstinado, você vai até a cozinha. Abre a geladeira. Tira as vasilhas coloridas do congelador e coloca em cima da pia. Pega o liquidificador no armário. Despeja no copo um pouco de água suja da torneira do prédio sem manutenção. Abre as vasilhas. Olha as flores congeladas. Suas esperas descansam em dezoito graus negativos. Retira duas amendoeiras em flor, petrificadas. Dizem que são as flores da esperança. Acrescenta um vaso congelado de bromélias; resistência. Duas gérberas que estavam no pote azul; nobreza. Dois gerânios de flor prateada; recordação. Três rosas vermelhas, árticas, do pote amarelo; paixão. Uma dúzia de crisântemos brancos trazidos do túmulo de sua avó; honestidade. Quatro cravos roxos recolhidos nos últimos casamentos que invadiu; solidão. 

Você tritura tudo. Sorri alguma coisa gelada e amarga. 
Não há açúcar. 
Não há gosto. 
Não há cor. 
Sua traqueia dilata. Não há espinhos. Você não bebe nenhuma lembrança. Seu estômago não reconhece nenhuma memória. Seu fígado não sintetiza um canteiro capaz de germinar um grão de esperança. Seu coração é um deserto salpicado de sal. Sua língua morreu. Dizem que é primavera?

terça-feira, 24 de setembro de 2013

cALENDÁRIO - por Adilma Secundo Alencar.

Esse mês é o seu cheiro arrebentando minha janela, já foi dito que as flores vão dançar blues e frevo. Na minha rotina, eu anotei a chegada dos seus encantos com caneta bic azul, meu calendário sorriu. Fui à padaria e comprei queijo, cigarros. Vi uma mulher triste vendendo vasos de planta, vi um menino correr atrás da pipa. Depois fui à feira, seu Zé insiste em me oferecer jaca, quando eu só quero maçã e abacate.
Pimenta do reino, coentro, orégano e todas as folhas frescas forrando a barraca, toda comida quer nosso prato, quer alimentar nossa razão de colher. As minhas mãos ocupadas com as sacolas da feira, uma preguiça de subir a rua, mas os ipês roxos, amarelos, as folhas molhadas e visguentas no chão me abriram o olhar em graça. Cortar verduras, abrir melancia e memória, salpicar orégano e ternura, beber caldo de cana e ouvir Alceu, minha manhã foi toda cor, foi todo ritual de esperar seu abrir de olhos.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

mEUS LIMITES - por Vinícius Linné

Não há pontes, traços, marcas, placas, fitas amarelas, fossos, abismos, avisos em portas, sirenes, luzes, correntes, escadas ou cordas. Como saber, então, se você está prestes a ultrapassar os meus limites?

Usando a sensibilidade. Minhas divisas são invisíveis e mudam conforme a estação, mesmo assim, há avisos. Quando você se aproximar de uma delas, sentirá o ar e o meu olhar se transformarem. Haverá sinais, sons hipersônicos, mudanças repentinas, um peso, um silêncio... E então esse é o limite. Não dê nem um passo a mais.

Se você desobedecer, se continuar, se não tiver sensibilidade suficiente para recuar, foi-se. Não me responsabilizo dali em diante. Podem haver minas nos meus desertos, armadilhas, fossos, areias que se movem e engolem o que nelas tocar, rosas de veneno mortal, consequências de todo tipo, inclusive a pior delas: eu não lhe conceder, jamais, caminho de volta.

Sim, meus limites são indefinidos e perigosos, mas o que fazer se eu também o sou? Respeitar.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

mACIEL - por Simone Huck


Marc Chagall
Maciel não vendia maçãs. Era construtor literário há quarenta e três anos. Engenheiro de histórias e medos alheios. Vomitava arroz e feijão. Engolia a vida dos outros.

Puxou a cadeira com os calos da mão e sentou-se, naquela manhã, para escrever seu último texto. Maciel era escritor. Estava tão cansado de produzir palavras que chorou em cima da pilha de folhas. Do seu olho direito pingou uma caneta e do esquerdo, outra folha de papel. Tudo que excretava fazia parte do universo literário. Arrotava abajur, transpirava poeira de livros empilhados, escarrava rascunhos e chorava caneta e papel. Do começo ao fim era escritor e já não aguentava mais viver de palavras contadas. Consoantes entraram em colisão com vogais. Seus dias eram uma tônica contada, secando sua própria vida. Poesia clandestina. Os homens eram seu caderno de caligrafia. Maciel chorou um dicionário de sinônimos.

No começo até achou graça e obteve vantagens. Na escola, suas redações sempre foram as melhores. Nos concursos literários do colégio sempre era vencedor. Era o homem mais romântico do bairro, da cidade, do estado. Escrevia longas cartas para Ana, Cristina, Beatriz, Solange, Ágata. Perdeu as contas de quantas mulheres conquistou escrevendo cartas. A maioria das linhas escritas eram completamente mentirosas. Escrevia dizendo que era amor à primeira vista. Elas, carentes, convenciam-se a cada palavra bonita que Maciel escrevia e davam-lhe o que queria. Ele, conseguindo, as cartas cessavam. Só queria sexo. Queria aliviar a mente que não parava de imaginar. Ejacular alguma coisa que não fosse história. Gozar ele. Pagava sexo com palavra bonita. Pagava amor com poesia cheia de rima. Pagava afeto com crônica. Pagava vida de verdade com conto de mentira. Era uma palavra alheia. Sempre alheia.

Maciel não era mau. Também não era o melhor dos homens. Tudo o que queria era sobreviver com a maldição que estava lhe cansando. Escrever tinha se tornado um inferno. Ele queimava.

Mais tarde o dom virou vício. Necessidade. Urgência. Fardo. Não conseguia mais olhar para nada sem escrever. Aproximava-se das pessoas para sugar suas almas. Quanto mais tristeza e tragédia elas carregavam, mais ele sorria - daria um bom texto, pensava. Contaria uma bela história. Salivava com detalhes sórdidos. Ficava excitado com desgraças e tragédias. Era escombro.

Fez mestrado em psicanálise para construir melhor a trama psicológica de seus personagens. Passou a gostar mais de morte do que de vida. Mais do fim do amor do que do começo. Adorava a ira, a inveja, o suicídio, os assassinatos, cemitérios, reuniões dos alcoólatras anônimos, esquinas com prostitutas sujas, boca de fumo e prisões. Torcia para as separações, adultérios, homicídios, obsessões. Precisava escrever. Precisava ser intenso. Precisava ser inédito. Esquecia de almoçar, de dormir, de viver sua vida. Emagreceu vinte quilos nos últimos dois anos. Escreveu onze livros em sete mil trezentas e doze folhas A4, tamanho 12, fonte Times New Roman. Todos que cruzaram seu caminho viraram história.

Numa noite repleta de personagens gordos, Maciel sentiu-se, pela primeira vez, hediondamente frustrado. Tossiu uma tosse tuberculosa e uma intenção cadavérica. Olhou para seu corpo e não encontrou vida. Suas mãos não escreveram histórias dele. Nada mais nele, era dele. Não havia nada dele que pudesse ser contado. Não era autoral. Nunca foi autobiográfico. Não teve heterônimos. Nada confundia-se com ele. Dos outros, mentiu quase sempre. Exagerou. Foi hiato. Farsa. Intensidade clandestina. 

Deitou e dormiu sozinho. Seus personagens não foram companhia.

Puxou a cadeira com os calos da mão e sentou-se, naquela manhã, para escrever seu último texto. Contou, sem escrever uma única palavra, a melhor história de sua vida. Deixou a última folha dentro de um envelope, ao lado da caneta que pingou de seus olhos. Escreveu em linhas invisíveis sobre ele mesmo. Sem mentiras. Sem construções. Sem excessos. Pela primeira vez, esvaziou-se até seu corpo dissolver todos os músculos.

Jogou na lata do lixo todas as canetas do mundo. Queimou todas as folhas e livros escritos. Juntou seus ossos. Colocou-os entre os braços e saiu sem levar a chave. Estava, finalmente, liberto dele mesmo. Era inédito.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

nERVOS IRMÃOS

Acordei com um sorriso besta na cara. Depois de uns dias cheios de amarras, de novo as coisas dançaram aquela dança bruta que não sei aprender, a dança das coisas que são, sem pensamentos, sem tristezas, sem cismas de cabeças errantes e cheias de grilos desafinados. Uma mochila cheia de livros e uma cabeça cheia de dúvidas, eu desci na avenida de concreto e de grama, subi pela rua calma, sábado de manhã tudo se acalma de ressaca ou de cansaço, se acalma. Uma alegria de estudante quando quer aprender, uma liberdade nos passos, uma liberdade de cigana que fica e tem um filho com o mesmo repente que vai e não volta nunca. Minhas mãos folhearam os livros, meus olhos espiaram homens e mulheres, lhes adivinhando a angústia diante da disciplina ossuda e seca dos livros acadêmicos, dissecando poesias do século XVII, lambendo a doçura de Erasmo de Rotterdam, comendo as análises de Bocage, cutucando a pornografia de Hilda.
Um homem varre a rua e respira feliz, a filha mais velha entrou numa universidade pública, ele respira como um homem que deu o que acreditava, uma formiga trabalha, um urubu come uma carcaça de um bezerro, recém-nascido, recém- morto, já comida de urubu.
Eu enfrento meu sertão dentro de uma biblioteca católica, branca e rica, eu leio a violência com que teceram as lutas, enxergo as letras cheias de pus com que ainda massacram os homens, penso nos meus boletos atrasados e na minha dificuldade de ver a liberdade dentro da sala de ar condicionado e de solidões compartilhadas.
A dança do mundo, o som que os ouvidos filtram em vozes, o que eu sei ouvir é polifônico e uníssono.
Eu respiro com liberdade, faço as análises, bocejo, converso com versos de Stela do Patrocínio, com as antíteses que Foucault descortinou e penso nas novenas do sertão em tempos de seca, tudo é unidade que me fez. Tomo um café na rua e converso com seu Zé, homem culto, aprendeu a ler depois dos 18, agora na saúde de seus 60 anos, ler poesia de Patativa, e relembra com esmero as emboladas do sertão, dona Maria, minha vizinha há cinco anos me diz como eu devo não cuidar do meu pé de mandacaru e eu sorrio e lhe digo histórias de livros antigos, ela me diz que eu deveria sair mais, faz uns meses que só estudo, e eu penso, não me explico, dona Maria entende o mundo há mais tempo que eu , isso merece meu respeito, eu penso que é preciso silenciar, eu espio melhor essa dança que eu não sei ainda os passos.
Fora da biblioteca, as arvores viçosas desse sudeste bonito também me espiam, pulsando e mostrando seus troncos cobertos de parasitas necessários, as arvores respiram o mesmo tempo que eu, não há linguagem mais bonita do que o silêncio que compreende o outro.

Em tempo de correntezas é preciso assentar, fazer sentir essa essência de nervos que ainda são irmãos.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

mINHA ESCRITA - por Vinícius Linné

Minha escrita agora é a evolução do gozo, a transcendência. Eu fujo, fujo léguas dessa escrita tua, masturbatória. Dessa escrita que não dá prazer a nenhum outro, que coage, caçoa e coíbe a quem dela se aproxima. Minha escrita é porta aberta, precisa ser, para que eu abra portas no outro também.

Não, eu não escrevo para me mostrar. Eu não escrevo de besta. Escrevo porque tenho em mim a vontade de fazer alguém pulsar. Não, não meço métricas, não rebusco o estilo, não aprimoro vocábulos com a ajuda dos dicionários. Escrevo muito cru e muito simples. Muito nu e muito eu.

Gosto de enriquecer a ideia, não a letra preta. Gosto de tocar outra alma, não só a caneta. Mas te entendo também. E por entender respeito. Respeito o teu prazer, a tua satisfação em humilhar, em se autoexaltar. Entendo e deixo. Entenda-me, então, também. Deixe-me, então, também.

Goze tuas muitas folhas amassadas, tuas intermitências desperdiçadas, tua cultura erudita e vã, vã porque te torna maior e não melhor. Mas deixe que eu goze também, minhas folhas perfumadas, minhas mentiras contadas, minha cultura analítica e de divã, de divã porque quer me tornar melhor do que eu, não maior do que tu.

Eu deixo teus leitores confusos seguirem sem efeito, abandonando textos, reconhecendo estilos, cópias, parágrafos inteiros de outros livros melhores. Deixe os meus reconhecerem músicas, sentimentos, poesias inteiras que eles mesmos teriam escrito, se poetas fossem.

Eu não quero conquistar o que por ti foi feito, eu quero tocar o teu próprio peito e dizer: “Está sentindo isso aqui? É coração e eu tenho também. Quer ver?” Eu não quero leitura de academia, análise, elogio vazio ao estilo ou modo. Eu quero literatura de todo dia, devorada como pão, saciando quem precisa dela, quem vem, lê e parte, sem nada dizer, emudecido, devorado pelo texto também.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

eXIT - por Simone Huck

Ilustração: Laura Laine

Deu um tiro para cima. 
Não assustou a solidão.

Deu um tiro para o lado. 
Não matou o medo.

Deu um tiro para o chão. 
Não esbarrou na confissão.

Deu um tiro no peito. 
Acertou a redenção.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

vIDRO - por Adilma Secundo Alencar.

Anunciam a vida boa, a possibilidade de felicidade pode ser dividida, é possível fazer o mestrado, o doutorado em menos tempo, viajar, os amores são anunciados de dez em dez minutos numa tela fria e a mulher linda, carinha de tela de tevê, agora conversa e marca, não, anuncia mil festas numa tela azul, anuncia inclusive sua solidão acompanhada de dez curtidas e 2 comentários. O homem chora, a morte chegou numa carruagem suicida e a moça da televisão relata o acontecido com a mesma expressão da moça que anuncia a venda de geladeiras a preços reduzidos. O cuidado com o corpo e a adoção de uma alimentação saudável é a grande receita para vencer o tédio, e a vida só precisa de você para completar o quadro da alegria do comercial do dinheiro, lésbica, ateia, amarela, negra, branca, banguela, maneta, caolha pague e leve, tudo custa o seu suor cotado ao dólar do dia e o PF no centro velho sai por R$8,50. Comam todos da mesma angústia dos trens e dias lotados, a oferecer os sete dias para uma janta mais cara e uma transa rapidinha, um cinema sem pensar e algumas frases prontas após o café com pão de queijo e voltamos para o quarto de dormir..
Bombas de efeito moral tem efeito nos olhinhos de Ana que só queria o Smurf do Mc Lanche Feliz, mas seu pai, Brás, dizia da luta democrática e do papel do homem na mudança, segunda vez que mudaram de lar naquele semestre, um estudante perdeu o olho que em tempo real foi filmado, fotografado e curtiram e compartilharam, uma luta de cliques e teclados, telas de indignações. E sobre a pele da palavra só há cicatriz, só há furo no olho, fuzil no peito e nó cego.
Meu nó na garganta já não amarra nenhuma certeza.


segunda-feira, 9 de setembro de 2013

a ESPERA DE BERENICE - por Vinícius Linné

'Wainting' by Marta Syrko


O calor invade o quarto e aumenta a fúria até sua última grandeza. Não, ele não vem. Ele tem muito mundo a devorar para se perder no quarto quente de Berenice. Ele não vem, como não veio das outras vezes. Mas essa é a última, jura Berenice, a última.

Quantas vezes ela fizera o mesmo ritual, quantas vezes as velas queimaram invernos e verões, só esperando que ele viesse? E ele veio? Não. Ele tem outros interesses, outros amigos que mentem o quanto ele é bom, outras vadias que o fotografam até o último aplauso fingido. Ele não vem e o vinho, o vinho é seco.

Ele deve estar em outra festa, em outra pose, em outra garrafa de cerveja ruim. Ele deve estar iluminado pelas luzes que piscam e piscam e piscam, sempre na mesma intensidade.

Intensidade, isso era tudo que Berenice podia lhe oferecer em troca.

Sim, em troca das festas, das farsas e do mundo, ela lhe oferecia sua própria intensidade, sua imensidão por trás dos olhos marrons. Ele achou pouca a troca. Ainda se os olhos fossem azuis... Não eram. Ele preferia o enjoo do outro dia pela manhã, do que os mistérios de Berenice estendidos sobre o cobertor. Ele preferia um amasso mal dado num banheiro (filmado por terceiros), do que um poema cafona de amor no travesseiro.

Ele era desses. 

E Berenice, Berenice era dessas que esperam, mesmo sem qualquer esperança, serem amadas algum dia.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

aNJO - por Simone Huck

"The betrothed and Eiffel Tower", 1913 - Marc Chagall

Você me via por dentro. Elogiava meus dentes, pele, mãos e ossos. Com seus dedos longos, ajeitava meus cabelos atrás das orelhas e pedia um abraço. Sentia sede quando via minha nuca. Fome quando tocava minhas coxas. Azia quando cochilava em minhas costas. Você se lambuzava imaginando meu interior. Minhas vísceras em seu prato. Veias. Músculos. Ossos. Sangue. Sempre fui uma superfície atormentando seu existir.

Perguntava, como um psicanalista calmo e carnívoro, o que tinha dentro do meu coração. Queria lamber o suor das minhas palavras. Eu, inocente e boba, verbalizava meus sentimentos todos. Um por um. Você salivava. Puro disfarce. Pura encenação. Enquanto preparávamos o jantar, media minhas costas e anotava minhas dores e alegrias em sua pele com a ponta da faca. Descia os pratos do armário e imaginava meu coração ali. Quente. Entre seu garfo e sua mentira faminta. Meu endocárdio mural dentro da sua boca. Você queria mastigar meu interior e beber sangue. Limpar meu baço em seu guardanapo. Meu encéfalo liquefeito em seu copo.

Antes de dormir, catalogava cada mancha do meu corpo. Me revirava separando sardas e pintas. Dizia que eu era sua constelação. Eu, boba, achava graça e nem suspeitava. Sentia cócegas com a ponta dos seus dedos tocando meu corpo todo. Você tremia com a contagem. Queria dissecar minha cavidade torácica e abdominal até encontrar uma sombra sua que pudesse estar ali, na minha topografia incompreendida. Engolir cada sentimento. Todo meu interior. Tudo. Minhas pintas em seu intestino grosso.

Você nunca encontrou a régua capaz de medir alguma coisa em mim que fosse sua. Ou, uma balança capaz de pesar o que eu carregava por dentro. Tudo era apenas um gosto amorfo dentro da sua boca. Uma vontade atormentada nas unhas. Doença que invadia seu corpo febril cada dia mais esgotado de mim. 

Naquela noite, o jantar ficou pronto mais cedo. 

terça-feira, 3 de setembro de 2013

sOLAR - por Adilma Secundo Alencar.

Há jornais, meu bem, cheios de notícias que não quero ler.  Letras garrafais e interjeições suicidas antecipando meu enjoo de todo o excesso, dentro de mim um tumulto grita, quantos silêncios são necessários nas nossas pausas diárias?
Solar, domingo solar pingando gotas de laranja no vidro de meu copo de café, um copinho vagabundo desses que veem com molho de tomate, meu café quente, primeiro gole dessa manhã escandalosa de primeiro de setembro, volto à cama e vejo sua beleza tão solar como esse domingo que deus fez. Seios nus e plácidos, mãos mansas, unidas segurando um rosto amassado de quem não quer acordar. Nossa casa com poucos móveis e muita festa. Meu alumbramento perdoado diante de sua poesia em carne e água, em flor e mato, sua poesia enervou meu sangue e o céu pintou nuvens para dar amor também aos outros. Pego seu celular que grita o desespero dos relógios e afasto de nosso quarto a ameaça do mundo.
Cílios, pés, pescoço, cabelos, nuca, todo canto onde me encontro é pedaço seu, colo, lágrima e anúncios de felicidade.
O mundo está em guerra e meu bem querer ameaça o tédio e a preguiça, um domingo pode forjar algemas nos nossos desejos. Fico com o silêncio que o cheiro dos seus cabelos alimenta, quando a tarde horizontal e alaranjada me traduz uma inflamação no peito, é seus olhos tristes meu refúgio, minhas mãos, meu delírio e porto. Sou pequeno e o medo quer tomar minha preguiça por desespero, nessa peleja de sertão e cimento é na cama o palco de meu choro, é quando você cresce e um metro e setenta é o  tamanho de minha dúvida de ficar ou partir.
Minha semana vai se abrir em notícias de azaleias contentes, gerânios melancólicos e petúnias espevitadas, porque você veio. Seu organdi lilás é menos um cachecol do que um curativo para meus olhos cansados das revistas.

As crianças nascem cobertas de sangue, já anunciam nossa sina de choro e milagre, vamos milagrar, meu bem, nosso medo também é nascimento. É um milagre que vencendo o nojo das notícias, a dor dos indigentes, a angústia dos doentes à espera do fim, ainda aconteçam encontros grandiosos como esses que explodem em saliva e sexo e deslumbre desses nossos olhos se misturando aos raios dessa manhã tão milagrosa como recém- nascidos estranhando a linguagem já dita, bem dito seja nosso estranhamento.

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

aS VONTADES QUE VOCÊ ME DÁ - por Vinícius Linné

Você me dá vontade de escrever. Mas eu não posso lhe culpar por isso, posso? Posso tanto quanto você pode me culpar pelas vontades que me dá. Vontade de escrever é só uma delas.

Tem a vontade de ser você. De ter a sua solidão - maior do que a minha. De olhar as coisas por dentro dos seus olhos, ver no espelho outro rosto (e também não gostar), de aprofundar o escuro da alma e de ter escrito a dança das águas.

Tem a vontade de ver você. De beber um café ao seu lado, de sorrir e lhe ver esconder o sorriso por conta de uma falha nos dentes. De falar sobre o tanto em comum e suspirar num mesmo tom dobrado.

Tem a vontade de ter você. De tirar roupas, acessórios, medos, vergonhas, sensatezes, de engolir e ser engolido pela mais pura volúpia que há tempos marina (em ti).

Tem a vontade de perder você. De ir embora depois de muitas noites e sumir, só para poder sentir tua falta, só para olhar pela janela do apartamento e ter a vontade intensa de me jogar.

Tem a vontade, por fim, de escrever você. De te criar dentro dos meus meios, meus textos, minhas poesias de rima ruim. Vontade de te colocar entre meus dedos, expurgando meus medos e fazendo o que eu quiser de ti. Vontade de ora te fazer protagonista, ora cadáver. Ora reticências... ora ponto. E bem final.