terça-feira, 30 de abril de 2013

dE SÁBADO - por Adilma Alencar.


Eu vi.
Eu não disse, é pecado calar?

Senti quando sua voz engasgou e eu toquei sua mão, toquei de leve, seu olhar fugiu, eu também tive medo de chegar perto assim sem arma nenhuma, mas o sábado estava tão dolorido. Eu acreditei que você também tinha uma sede de outra coisa, que aquele lugar já não nos agradava, aquele papo sobre futuro, sobre as relações, sobre o ciúme, me senti cansada, eu queria mesmo deitar em seu colo e alcançar sua mão, queria te olhar até o cansaço chegar com doçura nos meus olhos.

É difícil acreditar na previsão de nossas falas, nos ímpetos de nosso corpo. Ler poema do Bandeira naquele bar não foi a maneira mais comum de esconder meu olhar.  O jeito bonito de você me dizer que prefere ir ao cinema as quartas e que os filmes do Von Trier inquietam suas crenças me deixou querendo chegar mais perto, eu fiquei adivinhando sua casa, seu corpo, porque seu corpo desfilava bonito entre as mesas, procurando o caixa pra pagar a comanda, procurando outro lugar pra gente se saber mais de perto.
Você sorria enquanto o sinal mudava de cor, enquanto a neblina dançava no horizonte, você sorria carinhos a respeito de meus gestos, eu devolvia com minha mão pousada na sua coxa, sem movimento, sem anseios, era cumplicidade nossa, vontade de estar junto.
O sinal abriu.
Para o bem de uma ternura crua que nascia naquele bar, entre tropicalismos saudosistas e chorinhos românticos, para a salvação das segundas- feiras, para conseguir os ingressos, para ver em par aquela peça sobre o Noel, para acalentar o pranto que rompe quando eu não quero fugir, para um bem desconhecido de nos encontrarmos num beijo longo abrindo uma madrugada nova.
Quebrando o ensaio do óbvio, dormimos como crianças, embebidos de mel e água, com a alma assustada daquela calmaria iluminada que o domingo anunciava.
Cresciam os olhares moles da nossa primeira manhã, na avenida o som dos ônibus dizia de uma pressa que nunca tivemos.
Sorrimos um ao outro e depois do café, separamo-nos.
Para dormir essa saudade atarantada de uma noite que embalou dois corações cansados.

segunda-feira, 29 de abril de 2013

AS putas LITERATAS - por Vinícius Linné

'two prostitutes' by *cellar-fcp


Propagam-se as putas na calçada, literatas agora. É exigência do governo, coisa de nova lei. Para ser puta precisa saber escrever e fazê-lo de alguma forma. Algumas levam máquinas de escrever portáteis à mão. São putas vintage, românticas. Depois do sexo, sêmen ainda escorrendo nas pernas, elas colocam a máquina sobre o colo e a metralham docemente. Escrevem um conto ou dois, mal pontuados, e depois afixam em postes de iluminação pública, com a devida assinatura, numa ação quase que panfletária.

As putas mais baratas, aquelas comuns, as que fazem a coisa toda pelo dinheiro mesmo, escrevem em folhas de caderno pequeno. Escrevem com caneta bic e depois rasgam a folha e entregam para o cliente que, exasperado, amassa e joga na primeira lixeira – geralmente o chão – com medo de que a mulher encontre o relato ou conto.

Há putas poetisas com papeis de carta que cheiram a rosas – e cabelos que cheiram a cigarro. Essas são caras. Essas são as melhores formadas, as que cursaram mestrado ou algum doutorado até. Sabem a diferença entre um verso jâmbico e um helênico. O que de pouco serve. Não raro os clientes limpam o pau em seus poemas.

Há um outro tipo que com a popularização do acesso à internet tem se propagado como praga. A puta de blogs. Embora insistam que são todas diferentes, com estilo próprio e talento ainda não consagrado, não passam do tipo de putas que dão porque querem. Querem fama, querem fotos, querem filmes. Querem dinheiro e querem, acima de tudo, livrar-se do nojo que são os homens. E da maldição que é ter que escrever.

Logicamente, há ainda as dissidentes. As putas analfabetas. Vivendo escondidas, dando nas sombras, levantando a bandeira da ilegalidade que sempre honrou nossa ordem e progresso. Putas da resistência, elas negam-se à formação e ao sistema da escrita. Putas radicais e putas livres. Putas que mantêm o anonimato e que só transformam o cliente em protagonista do que acontece entre suas pernas. Putas muito procuradas, pelo que dizem, pelos literatos, cansados da concorrência das outras.

quinta-feira, 25 de abril de 2013

a MULHER QUE COMIA LETRAS - por Simone Huck

Havia nela uma sede pelas palavras. Uma fome colossal. Forrava o prato com elas e comia uma por uma. Não desprezava vírgulas. Considerava reticências. Sua fome não era pelas palavras acumuladas, catalogadas em ordem alfabética nos dicionários. Nem das palavras impressas em revistas que contam cenas cotidianas. Não estavam nos jornais que sujam as mãos. Nem nas telas de computadores que acumulam nas retinas. Uma palavra é um mundo e ela sabia disso. Não estava no coletivo. Era fragmento que seus olhos sabiam traduzir e sentir. Forrava o prato de palavras e jantava, uma por uma. Daqui dois minutos, a fome anunciava a necessidade de uma nova literatura em seu estômago. Era outono.

Saía de casa pela manhã com uma certa ânsia. Hoje sei que era fome de letras. Durante todo o caminho ela observava: homens, mulheres, crianças, animais, flores, objetos, estrelas, lixo, resto, acúmulo. E apenas com uma palavra conseguia traduzir o todo do que via. Ela nunca errava. Parecia bruxa, capeta, diabo, deus, anjo, mentor, caboclo, orixá, padre, pastor. Sei lá. Até hoje não sei dizer se isso era dom ou maldição. Será que ela lia pensamentos? Não. Não era questão de adivinhar. Nem de simplesmente “ouvir pensamentos alheios”. Ela diagnosticava almas. Ouvia o pequeno ruído que cada um pensa esconder dentro de si. Via com nitidez a palavra oculta de cada homem. Era abril.

Anotava tudo em lenços de papel, restos de jornais, panfletos amassados, qualquer pedaço de celulose que estivesse ao alcance de seus dedos. Guardava tudo nos bolsos. Tinha pressa em anotar. Notei que suas mãos eram calejadas. Havia restos de tinta e grafite pelas unhas e roupas. Há quantos anos ela fazia isso? Quantos anos tinham suas palavras? Era psiquiatra? Como conseguia num simples olhar diagnosticar uma alma inteira? Era doce.

Nos esbarramos na esquina grafitada. Os desenhos do muro também pararam para nos observar. Ela estava com as mãos cheias de palavras. Me olhou, não sorriu. Pediu para que eu abrisse minhas mãos e dentro colocou uma palavra. Não estava em seu dia de bruxa. Também não estava em seu dia de deus, diabo ou anjo. Pediu para que eu fechasse as mãos e fosse para casa. Garantiu que depois daquele dia, eu teria a grande resposta. Era trêmulo.

Quando cheguei em casa, abri a mão, li a palavra e nunca mais fui eu. Era tarde.

terça-feira, 23 de abril de 2013

sUBSTANTIVO PRÓPRIO - por Adilma Alencar

Chave, bule azul esmaltado, louça lavada, almoço pronto.
A fome de domingo a abandonara junto com seu gato preto que fugira na noite de São João. O raio de sol incidia no cinzeiro sujo que enfeitava a mesa da cozinha. Ela acendeu mais um cigarro, esticou os braços e se deixou sentir preguiça.
O silêncio precioso daquela manhã tocava uma memória líquida, uma represa inundava a sala, a fumaça tragada com gosto e prazer acendia desejos do sangue, a força insistia inquieta dentro do corpo languido e branco de uma mulher.
Deitou seu corpo no sofá verde e olhou o teto, reparando numa teia de aranha que cercava o lustre simples.
Dona do tempo que escorre pelas paredes brancas, que varre a avenida, que enrola lãs nos tornozelos, que amarra ao pé da cama os medos de uma mulher.
Pensa na teia, pensa nos títulos, lembra-se dos livros abertos sobre a cama. Refaz o pensamento e acende mais um cigarro.
Entre um cigarro e outro nasce o espaço das estrelas, a casa acolhe sua vontade de nascer no soluço do choro.
A casa evita a morte.
As lanças corroem o pulso. Carta, data, substantivo próprio, aniversário, CEP.
Maria.
Ela foi tragada pela memória.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

bALÕES - Por Vinícius Linné

By Julia Anna

Porque fiz uma ou duas palavras enfeitadas, agora querem que eu encha todas elas com gás hélio e as ponha flutuar sobre a cidade. E eu quero? Eu quero desperdiçar minhas palavras bonitas com fios que arrebentarão? Com gás que incendiará? Com plástico que perderá brilho e forma?

Eu não quero. A bem dizer, não quero. Eu queria só enfeitar a minha própria vida com as palavras. Eu queria poder caber em mim e querer em mim ficar. Isso passava, invariavelmente, pelo enfeite das palavras.

Era minha a festa. Eram meus os balões. Agora cada um os quer levar para casa, em um eterno clima de fim de festa. E se eu disser que não, passo por mal educado. E se eu chorar, vão me dizer um mimado. Então eu me submeto a eles, porque é assim que sempre fiz e sempre fui. Eu entrego, eu dou as palavras, eu esvazio e perco meu próprio gás e em troca ganho uns sorrisos satisfeitos. Eles saem felizes, ganharam o que queriam...

Mas não queriam para enfeite. Não queriam para ficar. Eles queriam minhas palavras para ver só como flutuam no ar, em que altura estouram, quando é que se esvaziam. Eles queriam soltar os balões perto da rede elétrica e ver faísca, dar ao gato para brincar e rir do susto, esvaziar as minhas palavras em suas próprias gargantas e repetir o que digo com voz esganiçada. 

E eu dou. Dou as palavras, levem! Levem todas! Lucrem delas, vivam delas, deixem que elas se percam no mais poluído do ar. Mas depois não me peçam bis. Não me queiram mais. Não me desfalquem assim, de graça. Depois de me levarem as palavras todas, me deixem no silêncio. No mais puro silêncio, na imanência do que não quer mais ser, não quer mais brotar, não quer mais flutuar e se perder do ar. Me deixem mudo, mas então me deixem. Pelo menos isso. Não queiram, depois, roubar de mim até o que não digo. O silêncio não, por favor. O silêncio deixem comigo. Dele eu preciso.

quinta-feira, 18 de abril de 2013

alguns PENSAMENTOS ADMITIDOS - por Simone Huck

Para Franco, com amizade.
 
Parou de chover. 
No bar vermelho com azul, as putas retomam seus acentos expositivos.
Há fuligem no ar da cidade. O dia será quente e obsceno. Da janela do décimo andar de um apartamento na Av. 9 de julho, olho todas essas cenas e tenho a impressão de que a cidade não dormiu. 
Insonia coletiva. 
Admito minhas olheiras.

Prédios cinzas. Pedras. Trens grafitados. Vozes ocas. Homens sem sombra. Mulheres sem maquiagem. Gatos flagelados. Flores esburacadas. Todos sonados trafegam em colisão pelas ruas tortas de uma cidade-labirinto. Só as putas conseguiram dormir cinco minutos depois dos poucos orgasmos que tiveram - se é que tiveram. A pele e o sexo têm pressa de dinheiro. A saliva escorre na vontade coletiva do não saber, nem estar. Queríamos tanto que o noticiário de nossas vidas anunciasse HOJE o término desse circo. 
Leio pensamentos coletivos. 
Admito minha vontade.

Na TV, a moça do tempo não tem tempo de viver. Está no olho do furacão e nos braços da tempestade. Daqui, de onde estou, o mundo já morreu mas ainda não sabe. 
Velório coletivo.
Admito que não sei onde foi parar minha alma.

terça-feira, 16 de abril de 2013

cUIDA - por Adilma Alencar.


Vive, amor, vive.
Por amor também se é triste.
Eu te disse o que fazer. Ajeitei a porta do armário, cuidei para que não lhe faltassem flores. Eu lhe apresentei à noite, você já sabe que o sereno e o samba expulsam a doença dos nervos, sabe também que aquele café no final da avenida está sempre aberto.
Cuida do pé de jabuticaba e não usa cores escuras no quarto, no quarto a paz metafórica é bem vinda.
Faz a barba vez em quando, mas deixa que cresça aos finais de semana, nos feriados prolongados. A barba te dá uma tristeza rude e desconserta esses seus olhos de água. Joga fora minha colcha de retalhos, não é ciúme, mas não deita outra mulher em cima dela. É só um cuidado besta, mas cuida disso.
Não esquece que esse ano o Chico Buarque fará show na cidade, se lembra de não me dizer que irá, lembra que minha dor demora, porque eu sou errante nisso de amar.
Eu arrumei seus filmes e documentários, cuida deles. Tenta pelo menos usar o espanador que está no armário da cozinha e usa sempre aquela marca de café, você não presta atenção aos detalhes.
Deixa essa raiva passar e entrega de novo seu amor que é maciço e são, é um mar.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

"nÃO PERGUNTE POR QUEM OS SINOS DOBRAM" - por Vinícius Linné


Abro potes, tampas, garrafas. Quebro vasos, vidros, lâmpadas. Arrombo gavetas, baús e arcas. Esfrego a louça, os bibelôs e até as latas de café. 

Nada. 

Nenhum gênio aparece.

Nenhum que me realize um único e imenso desejo: ensinar-me a chorar.

Sozinho eu já não sei. Haveria menos lamento do que medo em mim? Sim, porque o medo é gigante. Medo de que uma lágrima, uma só, avulsa e fina, pudesse comprometer a represa inteira. Medo que essa lágrima fizesse as paredes se rasgarem e ruírem. Quem seguraria tanta água e tanta mágoa? Quem impediria que os vales todos ficassem submersos, as casas em ruínas, a alma toda afogada em um lodo qualquer? Se eu chorasse sozinho, quem diria a palavra mágica e salvadora capaz de acionar as comportas de emergência? Capaz de escoar o fel sem risco à vida – minha e alheia? Não há ninguém. Então chorar sozinho eu já não sei. O medo me compromete.

Para quem eu poderia chorar, então? Quem poderia me ensinar? E agora percebo que chorar eu saberia... parar é que não. Minha mulher? Não. Não porque convencionamos desde cedo que ela está apta a chorar, por toda e qualquer coisa, e a mim só cabe consolá-la, mesmo que meu vazio seja maior. Ela não suportaria, não tem experiência. Ela não saberia o que fazer ou como me cuidar. Ela não teria, sinto, força suficiente para me conter.

Meu pai, então? Como, encarando aqueles olhos d’água, poderia eu me confessar ainda mais fraco, ainda mais carente, ainda mais criança do que ele? Eu o faria chorar comigo. Eu faria do seu esforço em engolir o choro um esforço vão. Não. Na frente dele eu não posso chorar. Só o que posso é fingir não ver que ele luta contra as próprias lágrimas, só o que eu posso é olhar a parede enquanto ele seca o olho na manga da camisa e diz que não foi nada.

Minha mãe? Não foi ela que ouviu meu primeiro choro, mas foi, com certeza, quem ouviu todos os outros. Mesmo quando eles eram abafados na tolha, mesmo quando soterrados pelos travesseiros, mesmo quando disfarçados em ira e caos. Foi ela quem os parou, com compressas e conselhos e sarcasmos característicos. Ela poderia, eu sinto, tentar parar mais esse. Acalmar mais esse. Segurar, só mais esse... 

Mas como eu poderia chorar na sua frente, se é por ela que choro?

quinta-feira, 11 de abril de 2013

rUA DO CÂNCER, SEM NÚMERO - por Simone Huck



Geraldine Georges
 
Senta com dificuldades na gelada cadeira de rodas. Amontoa intestino grosso, apêndice, bexiga e os ureteres com as mãos. Coloca tudo em seu colo e dá sinal com olhos que não mastigam esperança. Entendo o comando e sigo empurrando-a. Tomo cuidado para que seus drenos não enrosquem em meus pés. Não posso mais tropeçar nos restos que nos tornamos.

Somos dois corpos subindo a desordenada e esburacada ladeira da vida. Não há semáforos no hospital para cancerosos. Todas as ruas são sem saída. Me perco com facilidade num asfalto sem garantia de reparo efetivo. A vida é uma cilada. 

Ela abre a bolsinha rosa, pega um batom e enche as mãos de fé. Carrega fé a tiracolo. Acredita piamente. Eu não. A vida está me subtraindo. Não consigo mais somar espantos bons, esperanças tênues. Sou uma empurradora de cadeira de rodas opaca. Uma filha que mente enquanto trafegamos pelo infinito complexo hospitalar. O pedágio é caro. Nunca há troco. Engolem tudo com tamanha pressa. O câncer é capitalista.

Tento contar uma história feliz com voz triste – ela sorri mas não se engana. Nossa guerra diária pode tornar-se desleal. Ela percebe meu equívoco. Já estamos mutiladas. Preciso acumular alimento para mim e para ela antes do inverno chegar. Tropas inimigas aproximam-se. Farei uma brigada junto aos outros esquartejados. A noite será quente.

Nossas sombras esburacadas se fundem no sol da meia-noite que as lâmpadas frias do hospital projetam sobre nossas cabeças brancas. Não iluminam pensamentos malignos. Ainda não sei como contar pra ela que antes do inverno teremos que ocupar outro país. A vida é uma estratégia falida.

terça-feira, 9 de abril de 2013

eNDEREÇAMENTO - por Adilma Alencar.


Espero claro que espero.
Eu só porque, às vezes, dói esse reclame, é só do tempo.
A cidade tem me deixado cansada, porque eu ando sem paciência para ver os ponteiros mudos, as placas repetitivas, o trem parece uma cela, as escadas me levam e eu não pergunto mais nada, é só a pressa burra escondendo os doces, os brigadeiros, escondendo os beijos longos.
Só o céu me acalma em dias mais agudos, em dias onde a luz é um acinte explodindo o vermelho no asfalto. Eu jurei alegrias eternas e hoje o tédio arrombou a porta com lembranças doces no colo, há razões para enlouquecer.
E essa fraqueza de não acreditar?
Deus, onde finca a fé? Onde jorra a lágrima de quem acredita? Quem mata também ama?
Joga sua luz, acende os nervos bons, acalma minha ira, deixa sempre uma flor ganhar a cena do tédio que escorre do meu olhar, abençoa com a força que forja quando se crê, abençoa a saúde do corpo e injeta amor nos donos do discurso, liberta da cegueira quem tem a bíblia como arma, quem tem a ciência como rédea, dá comoção aos que evitam as dúvidas.
Dá um prato de comida aos homens que ainda tecem amor na contramão dessa guerra suja da qual a cidade é picadeiro.
Cuida das crianças para que saibam ler o mundo com os olhos mais livres e mais poéticos que os nossos tão fatigados pela opressão das revistas, da velocidade cega das tecnologias, pela pressa de produzir história, de construir discurso, abençoa nossa língua para que saibamos tê-la como a um coração pulsante e sadio.
Ergue tua mão, cuida de todos os de alma perdida, de olhos sujos da repetição de chumbo, nasce no sexo, na planta, no corrimão sujo dos metrôs da cidade de São Paulo, nasce nos livros frios e acadêmicos e esquenta a moça que pena na cidade nova, nasce no rapaz que ama as migalhas de uma puta da região da Roosevelt.
Nasce no tesão barroco que o seminarista deixou de mentir ao seu colega de quarto, nasce na mulher que todo dia abre as pernas e desconhece o amor,nasce no pranto das viúvas, na dor do pai que enterrou o filho, nasce nos corações rasgados,nas malas arrumadas,nas mãos enrugadas de mulheres tão lindas como lírios, arrebenta de amor as instituições dos miseráveis que corrompem seu nome e fincam punhais sacros e imundos na boca do povo pobre.
Nasce onde a seca queimou o solo, onde o homem anuncia uma caçutinga em cruz e chora um deus português que nunca peiou uma vaca, rompe o ódio e nasce, rompe o nojo e cresce.
Ouve os sedentos de poesia, e cuida da loucura, nasce em arte nas mãos dos poetas.
Vence a dor das falsas histórias e chove milagre onde o pão é pó.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

UM começo - Por Vinícius Linné


Enquanto tentava acalmar a respiração, ela pensava sem parar: “Quando é que começa? Quando é que começa? Eu estou cansada! Quando é que começa?”

Não havia uma resposta simples. Sequer havia uma resposta.

A impressão que ela tinha, no entanto, era de que se resposta houvesse, a sua seria: nunca!

É engraçado. É engraçado porque ela sempre acreditou que haveria um instante e a partir dele a sua vida começaria a acontecer. Cada vez estava mais difícil acreditar. Ela tinha quase trinta anos e ainda não começara.

Eu poderia gastar parágrafos e parágrafos explicando minuciosamente o que significa a vida “começar”. Não vou. Esse texto é para os que sabem o que é uma vida que não começou. 

Todos os dias ela tentava o melhor. Todos os dias ela recebia pelo menos uma dúzia de elogios sobre seu talento. Todos os dias alguém pedia seu auxílio. Todos os dias ela dava ideias e criava projetos e indicava soluções. Quase nunca ela ouvia um “obrigado”.

Ela estava acima da média medíocre dos que estavam à sua volta. Era modesta e não reconhecia isso, mas estava. Estava acima do próprio chefe, por exemplo, mas recebia um salário inferior até ao da secretária, também por exemplo.

Enquanto outros apresentavam as ideias dela (sem citá-la, logicamente) ela os aplaudia. Depois iam todos a festas para comemorar as promoções, festas às quais ela não era convidada.

No outro dia ela continuava. Tudo de novo. Tudo igual.

Ela se sentia como uma mariposa posta sob um vidro emborcado. Para cada lado que ia, ela podia ver o horizonte azul, infinito e rajado de promessas. Para cada lado que ia, ela batia nas paredes de vidro e não podia alçar mais voo.

Sempre paredes. Sempre o horizonte se distanciando. Sempre a perspectiva diminuindo. Sempre a esperança sendo frustrada.

Não. A pessoa não vive de elogios. Não. A pessoa não vive.

Não vive, ou pelo menos não tem a sensação de que vive. Para ela, era como se a vida que ela levava fosse pequena e curta demais para suas capacidades. Era por isso, talvez, que ela se sentia daquele jeito.

A vida começar podia significar ela usar todas suas potencialidades. Ou, quem sabe, ver seus esforços darem resultado. Ver sua luz iluminar a si própria, não só aos outros. Não sempre aos outros...

Nada.

No dia em que ela cansou e gritou com todo mundo do escritório, foi chamada de louca.

Disseram que sempre haviam notado isso. Ela era mesmo perturbada. Aquelas ideias todas... Não, aquelas ideias não podiam ser bom sinal.

Quando ela criticou o modo como era tratada, foi chamada de mal-agradecida. Onde é que já se viu?! Sempre fizeram de um tudo por ela. Sempre reconheceram a importância dela. Acaso não a elogiavam? Elogiavam sim! Então? Do que ela poderia reclamar? Mas o que mais ela queria?

Queria que a vida começasse.

Queria que eles não a tivessem olhado daquele jeito. Queria que não tivessem rido e gritado com ela. Queria que eles não a tivessem demitido, por justa causa. Queria não ver seus trabalhos assinados com outros nomes. Queria não ver as condecorações e prêmios que os outros ganharam por suas ideias. Queria, meu Deus, não ter aquela arma na bolsa.

Ela queria não ter atirado em seis deles. Queria não estar debaixo de mesa, trêmula, ofegante, esperando a polícia chegar enquanto pensava sem parar: “Quando é que começa? Quando é que começa? Eu estou cansada! Quando é que começa?”

terça-feira, 2 de abril de 2013

rASGO - por Adilma Alencar.


A tentativa de alcançar seus símbolos me perturbou durante as primeiras semanas, eram tentativas estúpidas de recuperar os dias de desencontros. Eu li sobre aquela cantora inglesa, ouvi o álbum novo, eu continuo não gostando dela. Li as revistas que você esqueceu na minha estante, não gosto de ler sobre as tendências de cores de esmaltes para a próxima estação, joguei tudo fora.
Transei com aquele amigo que você morria de ciúmes, não foi por você, foi tesão mesmo.
Sei, agora, que você tem razão sobre meus ímpetos absurdos e minha afetividade efêmera. Comprei flores para uma desconhecida. Ela me falou dos sonhos que alimentava, ela quer ter um carro, um apartamento e viajar para a qualquer país europeu, eu vi com cansaço aquele rito clichê: drinque, cama e rua.
Ela parecia uma atriz, bonita e previsível dentro de uma cena, mas o clímax merecia um poema. Eu não sou poeta, eu ainda me  enrolo toda com as palavras, especialmente quando me cobram palavras.
Eu estou feliz, acredite.
Sexo todo faz muita falta, tanto quanto seu silêncio doce.
Não é são ser só, me disseram, sempre me dizem muitas coisas relevantes, às quais eu desconstruo e teimo .Burrice minha,burrice.
As noites frias são fantásticas, o vento que desce a consolação junto com os boêmios faz é canto de uma dor alheia e ressona o bafo quente dos moradores de rua.
Um homem lava a máquina de café, outro prepara uma caipirinha e limpa o chão onde um copo se repartiu em estilhaços.
Uma mulher escreve, risca a pele com um nome de homem, com um nome de filho.
Rasgo sua saia em mil pedaços, o som da viscose rasgando me acalma os nervos, eu não sei escrever sua pele, sua língua, seu desespero de madrugada, eu não sei escrever seu medo de sair às ruas, não sei forjar uma flor em ornamento, não sei violentar seu altar, nem cortar suas rosas vermelhas e vivas abandonadas no jardim, você perdeu a vida e ganhou meu desespero.
Você repartiu minha linguagem e matou o cotidiano, a manha.
Há  asas de um anjo sobre minha cama, morto com dois nãos e cinco cigarros.
Atravessei a avenida, dancei nas esquinas escuras e te desenhei em copos vinho.
Há mar para absurdos futuros, há mar.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

MUSEU de mim - por Vinícius Linné


“Você tem mais dificuldade em se desfazer de pessoas ou de objetos?”

Objetos, eu respondi de pronto.

No mesmo instante, percebi o quão materialista eu devia ter soado. Mas é ao contrário, me apressei em esclarecer. É ao contrário. É por não ser materialista que me apego aos objetos. 

Cada um dos objetos do meu próprio Museu da inocência carrega em si alguma memória minha. Ao me desfazer do objeto, por mais simples que ele seja, eu tenho a impressão de que a lembrança aliada a ele se esvairia também.

Minhas coisas são meus relicários.

Com que graça eu não encontro, quando menos espero, um lápis gasto, apontado e comido. Lixo! Nunca. Nunca lixo! Tesouro... Naquele lápis está guardada a essência melhor do meu primeiro grau. As risadas intermináveis, as piadas, os olhares da Ana Cláudia (quem me deu o lápis na aula de história), a falta de motivo, a despreocupação ousada, o futuro todo vindouro...

De Ana Cláudia, hoje eu não sei. Não me importo em saber. Ana Cláudia pode ser mãe. Pode ter se mudado. Pode ter morrido a Ana. Se eu continuasse, depois dessa fase, amigo dela, cedo ou tarde ela me decepcionaria. As pessoas sempre decepcionam. Alguma coisa nos colocaria em caminhos opostos e o lápis seria, então, todo roído de puro rancor. Não foi. Nem ele nem a memória carinhosa que trago de seus cabelos compridos e da saia ainda mais longa.

As pessoas machucam.

Os objetos confortam.

Duas amigas me decepcionaram muito. Menos, porém, do que eu devo tê-las decepcionado. Não sei como chama o que ficou. Primeiro era ódio, depois despudor, por fim algo vago, como uma nostalgia do que é agridoce. As amigas se foram, ambas aos beijos na boca. Eu fiquei com o que vivemos e o que vivemos ficou guardado em dois duendes que ganhei. Um com promessa de amizade eterna (mentiroso ele!) outro como marca de saudade.

As pessoas se vão quando querem.

Os objetos ficam.

Eu a amava. Em segredo desleixado. Amava com cara de bobo e coração na mão. Eu a amava. Completamente. Ela não. Mas me deu de aniversário uma bruxa. Uma bruxa que agora eu só encaro quando está mascarada (e a máscara eu mesmo comprei, ao lado de outro amor). Ela se foi, afastada pela vida. Quando estava pronta, quis voltar. Mas eu não quis. Nunca mais quis. Eu prometi isso em uma esquina qualquer, lágrimas nos olhos. Nunca mais... Eu cumpro minhas promessas.

As pessoas perdem as máscaras.

Os objetos podem ganhá-las.

Ághata me deu uma santa de pura adoração. Ela não sabe o nome da santa. Não importa saber. Era linda e de manto vermelho, por me conhecer feito a palma da mão, Ághata sabia que eu gostaria. A santa rodopia sobre a escrivaninha de tempos em tempos. Tem uma labirintite só dela. Já caiu incontáveis vezes. (Seria suicida como Ághata?). O menino que ela segurava perdeu a cabeça coroada. E uma mão, a esquerda. Assim a santa ficou ainda mais minha (tudo só é meu depois que tem a primeira rachadura, o primeiro arranhão). Há dias em que Ághata me fere mais do que eu deveria aguentar. A santa, porém, sempre mantém o olhar doce e discreto, cochichando que, ainda assim, ela me ama.

As pessoas têm olhos duros.

Os objetos não.

Meu pai costumava estar eternamente cansado, isso quando estava em casa. E ele não estava muito. Um dia, fui junto em uma das suas viagens, pedi um leão de pelúcia e me foi dado. Surpresa. Me foi dado de pronto, sem descontos, sem reclamações (e era caro), sem cara feia. Me foi dado sorrindo o leão. Quando meu pai não estava (de novo) o leão estava. Abraçá-lo era quase um ritual, carregá-lo pelo rabo por toda parte, dormir com ele. Ainda agora, escrevendo, eu olho para o leão e me sinto de novo pequeno, de novo no meio de viagens, de novo amado.

As pessoas precisam ir e vir.

Os objetos podem ficar.

As caixas em forma de livros dadas por uma amiga mariposa me lembram da vida que precisa ser rida e bebida. A embalagem amassada de um bombom muito caro me lembra da tarde em que comi uma caixa deles sozinho, sem nem ocasião especial, puramente para me presentear. O perfume que ganhei no segundo grau e nunca gostei. O patuá dado por uma amiga meio fada meio bruxa, cujo sorriso tinha mel de se afogar. As lâminas com uma foto minha usadas na faculdade de jornalismo me lembram da descoberta do mundo e do humano (pelo menos fora da Cratera). O sino herdado de uma avó, objeto que me fala da infância cheia de proibições, pecados e vontades. Enquanto ela esteve viva, eu jamais pude tocá-lo. No dia em que ela morreu, eu o toquei e então uma tempestade varreu por três dias o céu. Um mouse quebrado, um chaveiro arrebentado, uma moeda de cobre, uma caixa de veludo, um despertador de metal, uma xícara sem asa, uma tampa de caixa, um homenzinho sem perna, uma coruja de olhos grandes, um frasco vazio: lembranças puras de pessoas que já se foram. Ou que ficaram, mas já não são mais as mesmas...

As pessoas mudam com você.

Os objetos só mudam com o tempo.

Pessoas... Objetos.... Não sei... Talvez eu tenha notado que a materialidade dos objetos tem em si mais segurança. Talvez mantê-los seja uma forma de manter comigo rastros de quem se foi. Talvez eu me livre tão despreocupadamente das pessoas porque sei que, no fundo, elas nunca se afastarão por completo. Delas sempre ficará um pouco (em mim e comigo). Talvez seja por medo do estrago que as pessoas podem fazer se chegarem perto demais. Talvez seja porque dos objetos eu posso fazer o que quiser. Talvez seja porque sou mesmo um bobo sentimental, colecionando bugigangas como os velhos colecionam retratos. Talvez eu tenha medo de esquecer. Talvez eu tenha medo de ser esquecido. Talvez seja só para manter comigo o que vivi, o que fui, o que passei... 

Não sei. Não sei. Não sei a causa mais profunda dessa minha mania de colecionar e desse apego em não me desfazer. Só sei que com as pessoas não é assim. Todas que entram na minha vida são bem livres para partir dela. Quando bem quiserem. Não choro, não lamento, não escrevo carta e ainda enterro o sentimento. Mas quando o fizerem, por favor, que deixem alguma coisa. Pode ser um botão ou um rato, mas que deixem. Deixem para eu saber que não foi mentira. Deixem para me alertarem dos meus enganos. Deixem para eu saber que, um dia, vocês existiram e foram importantes de alguma forma. Deixem e me deixem então. Não tenho lugar para muitas pessoas, eu me preencho muito. Sempre tenho, porém, lugar nas gavetas para mais um objeto. Talvez o seu seja o próximo. E talvez, mesmo muitos anos depois, quando você já tiver me esquecido, eu ainda o carregarei comigo.