quinta-feira, 27 de março de 2014

sUPERSTICIOSO - por Vinícius Linné

Não sei se passei por debaixo da escada errada, se quebrei espelho sete anos atrás ou se derramei sal sem jogar uma pitada por sobre o ombro direito.
Não sei.

Não sei se sentei em algum chapéu, se cortei as unhas em noite de lua nova ou se calcei o sapato esquerdo antes do direito.
Não sei.

Quem sabe foi algum gato preto que me cruzou o caminho. Ou os três que criei. Ou aquele que tatuei...
Não sei.

Será que deixei de bater na madeira? De fazer figa? Esqueci do sinal da cruz? 
Ai, Jesus, não sei.

Será que foi o elefante da sorte que eu quebrei? O pé do coelho que eu não arranquei? O trevo de quatro folhas que eu nunca achei?
Não sei.

Abri guarda-chuva na sala? Matei aranha? Grilo? Esperança? Lagartixa? Brindei em copo trincado? Foi aquela coruja que eu não espantei? Foi?
Não sei.

Só o que sei é que num cruzar de facas, num virar de chinelos, numa volta completa em torno da casa, numa praga de madrinha postiça, numa sexta-feira, bem, bem treze, eu encontrei você.

terça-feira, 25 de março de 2014

cASMURRO - por Adilma Secundo Alencar.


Azul rasgando as retinas dos que ainda olham para o céu. Mas um Casmurro moderno quebra sua força de amar.É preciso sair dessa,Pedro. Ela pega firme no seu pulso de menino, você não vê. Esses tênis modernos,essa sua fala embebida em psicanálise não esconde essa sombra, esse gene de Bentinho escondido entre as flores que compra, que oferece . Ela é de luz, homem. Não é preciso força, ela está derramando aqueles seus olhos que cabem o mundo, que cabem o mundo,mas ela quer você. Ela teria um filho seu, se vê no jeito que ela cozinha, assim como nas suas construções sintáticas, o tanto de amor que ela emana com o cheiro libidinoso de seus perfumes para esperar sua chegada, guarda essa sina de homem triste, o céu de março desaguou flores no seu jardim , deixa essa dureza de rotina e compra uma poesia para ela, não esconde esse rompante escarlate. Esses suspiros são dela, não hesite em dizer, não perca essas nuvens lhe levantando do chão, as palavras ofegantes em seu pescoço são suas somente. Não seja triste, não deixe passar essas alegrias alaranjadas, se deixe,os braços dela são fortes como uma flor.
O medo é um arapuca para um rapaz tímido como você. Solte essas amarras e abra um sorriso,antes o escândalo que a palavra não dita, que sejam de luz os dias todos seus. 
Vença o medo de parecer ridículo e ingênuo, compre passagens, recorte pedaços de seus dias e divida com ela, não é fraqueza querer dividir um poema comprado na rua, uma novidade no céu, ou um tesão descabido num vagão de metrô. Não ouça amigos infelizes, acorde antes com os poros, abre os olhos sobre os cílios mornos e longos de seu bem, omitir as poesias que escorrem de seus gestos pode lhe trazer um mal da alma,pode emudecer os acordes dos anjos ébrios que embalam sua espera por ela.
Seja, homem, avesso aos manuais  que capitalizam o amor em imperativos na seção de auto-ajuda, às convenções burras que inibem sua sensibilidade, aos porquês que justificam o amor, seja combustão de palavra e pele, combustão.

quinta-feira, 20 de março de 2014

rEVOLTA POÉTICA - por Vinícius Linné

Hoje é dia de texto e qual vai ser o pretexto para que tua mão não te exponha o coração? 

Nenhum. Cansei de pretextos, de preposições e de censuras tolas. Externas e Internas. Hoje me disse Elisa: “Escrever é um parque de liberdade”. Verdade!

Verdade e agora escrevo o que eu quiser e apanho quando o soco vier. Tapa no rosto, cuspida no olho, pontapé. Que esbravejem as varejas. É para a merda que elas voltam. No fim do ano ou do dia. Que posso fazer se não lhes agrado, se não é de merda minha poesia?

quarta-feira, 19 de março de 2014

cOSTURA - por Adilma Secundo Alencar.

         A vontade apressa o corpo e alonga a semana. Não li aquela reportagem sobre os jovens da Crimeia, ouvi um relato ou outro sobre a Copa do Mundo, porque as  notícias todas do mundo me chegam num burburinho besta, num insistir cansado. Às vezes é assim, me importa o vizinho, o próximo,mas às vezes é assim de um cansaço cinza que o mundo se apresenta aos meus olhos e ouvidos. De repente, eu quero deixar as teorias dissertativas e saber sobre comunidades sustentáveis. 
          Eu vou aprender a costurar e farei vestidos de todas as cores e estampas para enfeitar minha mulher, e saias de cores quentes para ela me despir,porque eu não vejo nada mais útil do que espalhar carinho nas costuras, nas curvas, na nuca, no íntimo, nas flores, nas mãos, na barriga macia e mãe, no avançar do Sol num céu de língua. É um derrame vermelho nas minhas retinas alaranjadas de sol de dentro, de sal de suor de fora.
     A pressa que rege as mãos de motoristas apressados, de corretores insones, do escrivão sem sentido,não é a mesma pressa de minha espera pela presença dela, porque sua chegada amolece meus braços que desesperados pela sua cintura,apertam alegres e ingênuos sua primeira chegada,porque sua segunda chegada é precipitação das minhas mãos sedentas do espaço que teu corpo encerra,a sua segunda chegada é corrida de meus sentidos todos.
Sua presença alimenta esses meus sentidos famintos.
        Comer todas as suas semânticas e dormir na sintaxe mole e lânguida de seu corpo exausto.

quinta-feira, 13 de março de 2014

pANDORA - por Vinícius Linné

Quando morreu o escritor abriu-se a caixa de pesadelos. Pesadelos dele. Febres. Ânsias e vômitos. Os escritos que ele guardava com medo que alguém lesse. Abriu-se a caixa. Derramou-se no chão o lodo de tinta má em papel ruim.

A viúva, depois de ler as primeiras páginas, pediu que jamais se pronunciasse novamente aquele nome na casa. Para ela, o marido estava morto e enterrado. E estava. Ao contrário do escritor, ela nunca possuíra muita criatividade para se expressar.

Os alunos da faculdade local se debruçaram e dissecaram cada letra, cada palavra, cada vergonha. Se os outros soubessem.... Se os outros soubessem.

Eis que surgiu então a agenda. Páginas numeradas. Uma delas faltava. Na página seguinte, letra torta, que em nada combinava com as grafias controladas do escritor: “O dia de ontem jamais existiu”.

O escritor nunca jogara fora um papel. Prova disso eram as listas de compra “Banana, Papel Higiênico, Maçãs, Veneno”. 

A folha de agenda (numerada ainda!) precisava estar em algum lugar. O que havia escrito nela? O monstro dos monstros. 

Se coisas tão ruins ele havia guardado em outros papeis, o que mereceria a fúria de uma página arrancada?

Clarissa quis descobrir. Estava ela entre os estudantes. Revirou armários, fundos de gavetas, tábuas soltas do assoalho. Nada. 

No quintal, entre as hortênsias, uma ponta de caixa. Desenterrou-se. Estavam certos. O escritor nunca jogaria uma página numerada fora. 

Dentro dessa caixa, bem dobrada, estava a página arrancada. Amarela. De cor, não de tempo. Afinal, era do último ano.

Clarissa a desdobrou com cuidado imenso. Tensa. Que coisas estariam escritas ali?

Nada. Na folha arrancada só um desenho. Dois pássaros mortos. Clarissa foi a única a entender.

Ela entendeu e calou.

terça-feira, 11 de março de 2014

vER - por Adilma Secundo Alencar

     Romper as amarras da semana com o mínimo de poesia, com a memória de beijos, o olhar de espera., porque a vida é um cismar contínuo ,de mel, de garapa, de sal, de saliva e de palavras dissonantes. E no silêncio  de um abraço,explodem alegrias sem nome. "A vida é generosa".
É de abraço e de força que as ternuras me tomam o olhar. Não há tristeza ou mágoa que valha mais que mãos dadas, flor nascendo, pétala caindo,cílio caindo, uma vontade vagabunda de tomar o mundo e espalhar palavras em qualquer canto.
   O mistério de um dia nascendo azul,laranja,amarelo, nascendo vermelho, fazendo carinho na grama, no asfalto, esse mistério atravessa o peito e brota milagre aos nossos olhos fatigados dos códigos da semana. O nosso tempo anuncia crueldades.Condenam o amor, sugerindo-lhe ordem, matam, exaltando um Deus de amor, cresce o sangue no olho e padecem as mão dadas. No receio desse estreitamento de vida, na angústia das coisas doídas que as leituras impressas revelam, eu tomo tua mão  e colho girassóis. 
   Recuso-me à raiva, os ônibus parados, o meu signo pré-datado, as letras de meu nome classificadas numericamente numa multidão de desconhecidos, os prazos prevendo e permitindo minha fala ao longo de um módulo, esse crachá pesando uma âncora, pendurado no meu pescoço. Eu me alimento de luz esquentando minha cara, de cheiro de livro, de visgo de noites insones, de cheiro de sereno, de café no gosto da tua boca, de dividir um céu inteiro com tua imaginação, porque eu sou dada às alegrias, sou ausente de guerra,minhas mãos grossas e tímidas não sabem guerrear, com poesias roubadas e os olhos em festa, eu vivo.

terça-feira, 4 de março de 2014

bONECA - por Adilma Secundo Alencar.

          Terça de carnaval e tempestade de verão. Uma boneca molhada pendurada no varal lembra uma infância distante. A jovem, de 23 anos e nenhum amor, é feliz e anuncia nas calcinhas e nas saias de renda sua disposição para a alegria.
    Um anel enfeitando sua mão esquerda  exibe mais vaidade que vínculo.Discursos em luta corporal com as leis do mundo cintilam guerra nos seus olhos pequenos.Fez renda,, fez festa no corpo de meninos nus, fez rasgos no coração de sua mãe.
     Ela fugiu para uma cidade estranha, com gente estranha. Hoje nessa terça de carnaval, essa boneca velha ,observada de longe, é parte de uma passado morto.

segunda-feira, 3 de março de 2014

cONJUGAÇÃO DO VERBO iR - por Vinícius Linné

É carnaval e eu fiz tantas curvas que nenhum samba me achou.

Fui para onde o vento pinta tudo de poeira vermelha, transformando pessoas em anjos barrocos.

Fui para onde as borboletas são ninfas azuis que seduzem, provocam e se escondem na hora dos retratos. Borboletas que acreditam no que ainda lhes disseram os índios: capturar suas imagens seria capturar suas almas.

Fui para onde as Iaras pedem licença à Iansã e penteiam os cabelos nas quedas d’água das pedreiras.

Fui para onde existem onças nos olhos dos gatos. E gatos com olhos de mato.

Fui para onde a mata faz fumaça e canta coisas de arrepiar.

Fui para onde as caiporas caçam e os cães ninam os filhotes alheios.

Fui para onde os facões crescem em árvore e avisam no caminho que há guerra para quem vier.

Sim, fui para onde as pessoas se matam e abandonam casas ao fugir.

Fui para onde o chão é mais duro e puxa mais forte quem dele se aproximar.

Fui para onde as pessoas se acostumam (ou não) com a prisão.

Fui para onde as Igrejas rezam sozinhas, com vozes de quem já morreu e repetem os encantos que as cercam sem cessar.

Fui para onde o rio é mistério e aparta línguas, costumes, cores e olhares.

Fui para onde brotam lodos e peixes dentro das máquinas de fotografar.

Fui para onde a tentação de encher os bolsos de pedras é grande, lá Virgínia jamais poderia estar.

Fui para as quedas que me acompanharam ao voltar. O barulho daqui é agora o mesmo de lá. A chuva é água do peral e da queda daquele que tudo engole.

Fui. Sim, eu fui.

É carnaval e eu fui para dentro de mim.