quinta-feira, 30 de agosto de 2012

o homem QUE FABRICA ELEVADORES - por Simone Huck

"Colisão", 2012 - Simone Huck
Entro no meu carro e ainda não amanheceu. É segunda-feira e tudo parece estático. A vida pendurada na previsibilidade de um prego invisível e rotineiro. Antes de sair procuro uma música no iPod, a trilha sonora que abrirá mais uma semana de sono e cansaço. Penso nele. Ele não combina com meu iPod. Eu não combino com o mundo. Talvez ele não combine com nenhum dos dois.

Eu passava dos 30 quando, num domingo despretensioso, ele beijou pela primeira vez a minha testa e disse “eu te amo, minha filha”. Ali, ele salvou minha vida. Resgatou de uma só vez sua ausência brusca, bruta, pouco lapidada. Eu e meu pai somos dois desconhecidos que se amam. Ele é um homem calado, pouco sei dos seus segredos. Ele pouco sabe dos meus. Nossos silêncios gritam.

Ligo o carro. O iPod toca uma música calma, quase calada. Continuo pensando nele. Uma lágrima quer saltar dos meus olhos. Uma vontade de gritar. Uma traqueia oclusa no tempo – meu e dele. Uma consciência tão exata de que depois da sua morte, eu não serei mais eu. Eu não terei mais ele. Ele não terá mais ninguém.
Durante a madrugada, no pouco dos sonhos que consigo lembrar, ele morria. Sou uma pessoa que não lembra de nada quando acorda. Mas ao abrir meus olhos de lágrimas, ali estava ele. Algumas realidades aguardam o momento infalível de estrearem no palco dos nossos dias. Às vezes, a vida é um anúncio gritante em outdoor
Procuro pelos meus olhos no retrovisor do carro. Encontro minha covardia. Um dia ele não mais estará ao alcance do meu abraço.

Tenho quase 40 anos e poucos medos acumulados. Logo cedo o seu silêncio áspero me ensinou a não temer a vida. Ele não me emprestou um dos seus elevadores pra que eu subisse ou descesse com segurança. Disse pra eu fazer tudo usando cordas, escalando o bem e o mal. Hoje muita coisa mudou. Deixamos de ser tão silenciosos em nossos encontros. Há poucas sombras entre nós. Há muitas sobras. Hoje quem o leva ao médico sou eu. Sou eu quem escolhe a armação moderna dos óculos que ele usa. “Pai de artista deve usar óculos de artista”, brinco, enquanto o faço comprar uma armação preta e amarela. Ele sorri e me pergunta se está bonito, só depois que garanto o sim, ele saca o cartão e paga a minha escolha para os seus olhos. Hoje é ele quem precisa confiar em mim. Hoje sou eu quem anseia um outro beijo em minha testa antes da sua fria partida. 
Nos últimos dias abraço o desespero diário da sua ausência. Sofro calada um futuro próximo que mudará nossas sombras.
A morte é a única certeza da biografia.

Desço do carro e chego ao trabalho. Aperto o botão do elevador e ao entrar, procuro ávida a marca do equipamento. Sorrio. Ali está as mãos do meu pai. Estou salva naquele cubículo de metal. Meu pai é um homem que fabrica elevadores. Em seu ofício de garantir a subida ou a descida do coletivo anônimo.
Cresci procurando pela cidade os elevadores que ele criou. E quando entro em um que não há as mãos dele, não me sinto segura. Sempre tenho medo de cair. Sempre acho que alguma coisa não vai dar certo e a claustrofobia fica perto de mim na subida incerta. Só nos elevadores feitos por este homem é que me sinto livre.

O elevador sobe macio enquanto leio as quatro letras que compõem o nome da empresa das suas caixas de metal. As últimas duas letras também estão no meu nome: “IS”. Pura coincidência. Aposto que meu pai nunca pensou nessa relação. Sou eu quem precisa da segurança dos seus elevadores. Ele só precisa da minha segurança em aquecer suas mãos enquanto o levo ao médico.
O elevador chega. Sou a última a sair. Procuro mais um pouco do seu abraço metálico. Ali, sempre estarei segura. 

Olho a cidade cinza, mais um dia nasce. O homem que fabrica elevadores também já está trabalhando. Sorrio. Do meu lado a certeza de que passarei a vida inteira notando todos os elevadores só pra saber se foi ele quem fabricou. Só assim saberei que as pessoas estarão a salvo quando subirem ou descerem. Eu também estarei. Sim, meu pai é um homem que fabrica elevadores. Os melhores elevadores do mundo.

Décimo sétimo andar. Portas em perfeito alinhamento se abrem. Posso começar a escalar o dia.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

sEGUNDA, 27 DE AGOSTO, ANO 2012-por Dilma Alencar.



Sono, cansaço e sol antes das 06:00h. O passo, o ônibus. Passar do ponto, perder o primeiro. As alegorias acontecem na segunda. O café com leite no copo americano. O córrego, as bitucas de cigarro forrando o chão. O itinerário sem flores, sem buquês. Um cadeirante sorri e reza novenas, carrega no colo o último best-seller católico. Uma puta sai do motel. Um homem leva alianças na carteira. Uma mulher ganha correntes no tornozelo, o menino colorido quer ter sua primeira transa  e compra perfumes caros.
A professora risca a velha lousa e desconfia do roteiro. O guarda matou um inocente e lava as mãos com álcool. A mulher casada abriu as pernas para seu amante e lava seu sexo com sabonete.
O caixa conta a moeda de troco.  A televisão da padaria vende a vida à prazo: um apartamento para pagar até morrer [morrer para pagar], vende a culpa à vista: estudar, comprar um título, comprar um lugar ao sol [no concreto frio], vende a possibilidade de gastrites, também à vista: não dormir, não transar, não amar o ócio e as lagartas amarelas na grama do Ibirapuera. Vende. Há quem compre. O pão de queijo não tem gosto de queijo, o café é bom e o homem do caixa sorri e manda torpedos para a namorada. A puta foi tratada como queria e ganhou 50 reias. O homem aprendeu provérbios bíblicos e aceita a vida.
Mas o ônibus estava cheio e passou do ponto. Parou no farol. Os sapatos gastos atravessando a faixa, as mochilas vazias de sonho, entulhadas de protocolos, salada, garfo, faca e laranja. A rotina plantando câncer. No escuro, perto da padaria, tem sangue, no corredor: ônibus e prazos esperando o farol abrir.
O resto de sonho virou sono no último banco. Bocejos de cansaço não percebem os imperativos das placas dizendo: onde, como, quem. As chaves, com muito trabalho, abriram a porta. Túmulos na sala, toalha molhada na cama e a ternura quis espaço. Entre a dor do corpo e os espinhos da memória, alguém tentava ser feliz comendo pizza requentada e lendo Caeiro, o som da rua aos poucos abandonava seu ouvido. Aliviado, o calo do pé descansava sobre o pufe.
Música e poesia, pois é preciso muito enfeite para ver tanta sepultura no enredo.
Enredados nos nós que ainda não sabemos desfazer, é preciso, sim, embriaguês.
E há.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

VIDA, ESPERA E SEGREDO DE UM homem FEIO - Por Vinícius Linné


meramente ilustrativa - por Vinícius Linné

O homem tem um segredo. E ninguém sabe do segredo porque ele é feio.
O homem.
E o segredo.

Por serem feios os dois, eles acham que se pertencem. E então vivem assim, violentados, dilacerados e solitários, mas seguros. Como se segurança para a vida bastasse. E não basta.

O homem não conta para ninguém o segredo. Tem medo de que sua feiúra faça correr todo mundo. Às vezes, no entanto, a noite chega pesada e a escuridão até esconde o espelho. Nessas horas, o homem deseja, bem sozinho, encontrar alguém tão feio quanto ele.

Só na comunhão dos feios é que o segredo se repartiria. Como dádiva, como oferta, como uva verde de se colher com a boca madura e famélica. Ele diria, então, o seu segredo. E a feiúra do outro o entenderia. E então, meu Deus, então os quatro se pertenceriam. Sim, porque também ao outro seria imperativo ter um segredo próprio. E ainda mais feio. Ou, no mínimo, tanto quanto.

Quando ele enxerga um feio na rua, sente como que um pertencimento. Poderia ser este. Poderia ser este que aceitaria a troca dos segredos. Porque só ao feio o feio pertence. Como se eles estivessem abaixo, muito abaixo, da beleza alheia. Como se não merecessem, sequer, respirar o mesmo ar que os filhos de Apolo e Afrodite.

O homem tem mesmo essa certeza de que os feios se pertencem. De que a beleza jamais o tocará. E de que ele merece, afinal, ser assim, um pária. O tempo passando fere o feio, porque ele não encontra em ninguém um espelho. E então ele segue, torturado e algoz. Segue sua trilha de desmerecimentos, segue intocável. Acreditando-se santo de cada dor. Mártir das flechas que jamais transpassaram seu corpo.

Porque no fundo é fácil mesmo. É fácil não tentar, não se arranhar. É fácil se esconder por trás do rosto, sem perceber que ele é só uma máscara fina. É fácil procurar o que também é feio como se isso fosse uma salvação. Não é.

A salvação seria pertencer.

E ele não consegue. Não foi acostumado. Desde pequeno excluído. Desde muito novo rejeitado pelos outros todos que eram tão bonitinhos e cheios de vida. Ele aprendeu sempre que era feio. E que feios tinham seu próprio lugar à lama. Onde podiam assustar à vontade, chafurdar nos seus segredos horríveis e serem pouco menos que nada.


Hoje é noite. E das escuras. E ele pensa, de novo, no outro. O outro mais feio que podia chegar. Mas o mais feio não chega. Não chega porque acha este homem nosso – e seu segredo – bonitos demais para ele.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

compra-se UM CORAÇÃO - por Simone Huck

Performance: Alice Maria / Foto: Simone Huck

Ela queria escrever algo vivo. Imaginar as hemácias em perfeita autólise no ar, no caminho entre a intenção e a palavra escrita no papel. Queria escrever vírgulas vivas, exclamações vivas, verbos e palavras vivos. Mesmo sabendo que o tempo já era morto, passado, desbotado. 

Furou o dedo com uma agulha. A sua intenção habitava um pretérito imperfeito. Memórias mofas atrás da porta. Desejos vestindo roupas amareladas pelo tempo que não conseguiu dizer. Não queria escrever com tinta. Queria escrever com sangue quente. Quem sabe escrevendo com sangue fresco não conseguia, por segundos, ressuscitar coisas mortas? Deixou pingar o sangue dentro de um recipiente frio e com a ponta da pena escreveu em um papel roído pelas baratas do armário: 

O passado nos conjuga. A sentença nos julga.
As escolhas nos separam.
Dos nossos fatos somos outros fatos.
Das nossas sombras, outras sombras.

Já habitamos o passado, amor. 
E só dentro da fotografia pendurada na parede do quarto é que estamos felizes e próximos.
Estende sua mão?
Desce dessa parede como Cristo desceu da cruz, 
mas desce vivo, 
e não confunda meus braços com os de Maria, 
porque não sou sua mãe, apenas quis ser sua mulher.

Escreveu e tingiu o sangue do recipiente com uma gota de lágrima escorrida do seu coração que compulsivamente chorava. Escreveu, amassou o papel e o levou até a boca. Mastigou palavra por palavra. Sentiu o gosto do sangue que ainda estava quente e fresco. Segundos de um amargo presente invadindo um corpo denegrido pelo passado. Mastigou, mastigou e mastigou. Quando o papel virou líquido grosso em sua boca, capaz de não haver nenhuma mísera palavra digna de entendimento, foi que engoliu. Nesse momento ajoelhou e com a ponta dos dedos foi acompanhando externamente o percurso interno das palavras líquidas: língua, faringe, esôfago, estômago. Sentiu que algumas palavras quiseram tomar a direção do coração mas não conseguiram. O êxodo tinha um destino frio determinado.

Ajoelhou e suplicou um segundo de libertação. O silêncio foi o mais hediondo dos últimos anos. Nenhuma resposta despencou das paredes, do céu ou das imensidões que habitam coisas que não mais acreditava. Deitou de lado. O chão era um rio turvo de lágrimas e suor. Quis nadar, remar, navegar pra bem longe dali. Fechou os olhos e dormiu oito dias seguidos. Oito dias sem pensar, oito dias sem sentir, oito dias sem habitar o passado, abraçada por lembranças amareladas e velhas.

Abriu os olhos oito dias depois quando sentiu uma língua lambendo seu silêncio estático. Levantou e ao levantar percebeu que estava sem coração. Havia uma cratera em seu peito. Ao lado, um cachorro magro devorava o último pedaço do seu ventrículo direito, feliz, alimentado.

Ela sorriu. Olhou o dia lá fora e finalmente libertou-se do seu velho passado mofo.
Era tempo de sair, tomar um banho, trocar as roupas e ir ao supermercado.
Era tempo de comprar um novo coração.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

uM HOMEM NU- por Dilma Alencar


Um gato preto e gordo caminhava em direção à cama, o quarto escuro cheirava a mofo, uns santos sobre o criado-mudo, um homem inquietava-se entre cartas refeitas, relidas.
Engoliu as esperanças mortas. Ficou horas olhando o gato, invejando a existência do animal. A angústia é o pão de José.
Enfim, ele levantou, tomou conhaque, dirigiu-se ao banheiro, em frente ao espelho decidiu fazer a barba. Navalha e sabonete à mão. O rosto no espelho evidenciava o homem: olhos claros e graves, boca grande e séria. A lâmina deslizando no rosto revelava beleza e juventude. O olhar duro mentia uma virilidade perdida.
Nu, o desalmado homem lavava o corpo na estúpida crença de que a água lavasse sua força, apagasse os nós que fizera com as mãos.
Vestiu-se: terno e gravata, rosto limpo, cabelo arrumado. Voltava à rotina de papéis.
O tempo comerá sua carne, a memória marcará seus sinais: nos passos tortos, camisa bem passada, pasta de couro, sapatos novos.

O dia, fresco em suas cores, doía o olhar do triste homem. Alimentados, homem e gato seguem os imperativos do dia.
A vida rompe de viés, de vertigem.
Quem por ventura olhasse pela janela do quarto veria uma nuvem de borboletas coloridas. Sem perceber, ele dormia com borboletas.
Embora as pedras pesassem toneladas, as grades lhe agredissem o corpo, uma esperança mansa despontava. Na rua, uma menina brincava de fazer bolhas de sabão. Um menino soltava pipa. José esboçou um sorriso, no canto da boca, ainda tímido à vida que bailava aos seus olhos.
De volta ao quarto, agora mais calmo, ele subiu na cama e desamarrou a corda que colocara uma semana atrás, desfez o laço, foi à cozinha pegou a faca mais afiada que possuía e cortou a ideia, a arapuca.
Assustado, ele percebeu uma borboleta amarela que voou do seu lençol e pousou na sua janela.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

AMOR iMORREDOURO - por Vinícius Linné


De menina ainda, descobriram que eu tinha o coração dilatado. Aos meus pais isso abismou gravemente. Ficaram aflitos. Se eu podia morrer, perguntaram ao doutor. Mas eu não sei o que ele respondeu.

A mim preocupou a notícia também, mas por outro motivo. É que eu já adivinhava as coisas de se botar dentro do coração. Ter o coração dilatado significava, portanto, mais espaço vazio para preencher. Quanto maior o amor, maior também a dor e a perdição. Ainda menina eu era dada a estes sofrimentozinhos, essas melancoliazinhas e essa ânsia de me ocupar inteira por dentro. Sabe o que é? É que eu tinha área improdutiva no peito, lotes e lotes, e não havia quem quisesse ocupá-la.

Quando ele chegou, foi de ódio que eu me preenchi primeiro. Petulante, debochado, estranho, misterioso e lindo. O ódio deve ter durado a primeira semana de aula. Na segunda eu já havia completado o coração até os átrios de amor. E ele, eu tinha a impressão, se dilatara ainda mais para comportar os meus arroubos.

Até o final do ano ele me torturou feito um sádico. Eu era como uma gatinha a quem ele mostrava uma fita vermelha. Eu queria muito a fita, brincar com ela, me enosar inteira. Cada vez, porém, que eu chegava perto, ele a içava. Era assim mesmo. Insinuava uma coisa aqui, outra ali... 

Num dia dava a entender que gostava demais de mim. No outro, quando eu dizia que lhe correspondia, ele desviava o assunto. Me chegava a dizer assim: “Bobinha - me chamava de bobinha, fazendo-me carinho na bochecha - sabes que gosto de ti como de uma irmã.”

Assim foi e assim meu coração ganhou ares de imensidão. De noite, na cama, eu o sentia pulsando enorme entre os seios, feito uma bolha de sabão a quem tinham soprado demais. Era lindo de grande, mas estouraria tão, tão facilmente...

No final do ano a professora e os outros, que tinham corações de tamanhos normais, decidiram que faríamos aquela brincadeira de amigo oculto. Nos formávamos já e assim ficaríamos com uma lembrança dos outros.

Fez-se a caixinha, os nomes e eu, pulsando inteira, decidi que pegaria o nome dele. Fechei os olhos, coloquei a mão na caixinha e... Ana Luísa, eu acho. Não lembro direito o nome. Peguei o de uma colega cujos olhos eram aquários vazios.

Quando a caixinha chegou até ele, suspendi meus movimentos todos. Acho que até o coração caiu em um cadafalso em que não poderia sequer tremer, quanto mais pulsar. Ele puxou o papel. Abriu. Leu segurando-o na palma da mão. E então seu olhar encontrou o meu. E ele me iluminou inteira. Sorriu de canto, dando-me cada mínimo sinal de que havia acabado de ler meu nome.

Seria assim, então? Seria ali, em frente à turma, entre papéis amassados que daríamos o primeiro abraço de verdade? Um abraço destroncado, meio torto e canhestro, mas que duraria uns segundos a mais do que deveria. Seria assim?

Durante a semana ele ia me dizendo coisas:

"Quem eu peguei é uma menina. E a menina que mais gosto em toda escola. O presente dela comprei lá naquela loja de artigos exotéricos, é a cara dela. Tenho certeza de que ela vai gostar. E, quer saber, acho que ela também gosta de mim. O que você acha?"

Eu não achava nada. Perdia o prumo. Eu era a mística da sala. A até estranha por isso. Era para mim o presente. Era de mim que ele gostava.

E ele não se detinha nisso:

"Não vejo a hora de entregar o presente. Como eu queria que ela tivesse me pego também. Aí seriam dois os abraços. Sabe de uma coisa, no cartão do presente eu vou escrever tudo que sinto por ela. Tudo que nunca tive coragem de dizer. Me diga, bobinha, você gostaria de ler um cartão assim?"

Ao meu sim, ele respondeu de pronto que então ele iria escrever sim. Que ela merecia.

Quando chegou o dia da revelação, eu estava de roupa nova. Perfume roubado da irmã mais velha, coração do tamanho do pacote que tinha entre as mãos, o presente da Ana Luísa.

Os nomes foram passando, passando... E nada de chegar o dele. Até que, por fim, a própria professora entregou o presente a ele. Era chegada a vez dele. Quando ele começou a descrição, todos já disseram como enfadados: é ela! é ela!

Eu já sorria embevecida. Me encaixava em cada ponto por ele costurado, em cada linha por ele traçada. Era eu! Era eu!

Não, ele fez lento com a cabeça, sempre mantendo os olhos em mim. Sempre sorrindo para mim. Não...

Eu tomava aquele aceno da cabeça por puro charme. Os outros também. Entre o "é sim! é sim! é sim!" que gritavam, ele disse seco: "Minha amiga secreta é a Juliana."

Ele estendeu o presente para ela, a gorda da sala, sem nem sorrir, sem nem agradecer, sem nem abraçar, sem sequer falar alguma coisa, e foi sentar de novo em seu lugar.

Quando ele me olhou, satisfeito, meus olhos brilhavam úmidos. Ele sorriu outra vez. E meu coração foi estreitando, estreitando, estreitando, até chegar à metade do tamanho que um coração deveria ter. Eu não morreria mais. Precisava, de repente, avisar ao médico. Não morreria nunca mais.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

a mulher LILITH - por Simone Huck


"Do que não vemos", 2012 - Simone Huck
Preparo uma xícara de chá, penso em Lilith. Tenho dúvidas sobre sua procedência, sua insistência, sua permanência. Vez ou outra, enquanto arrumo a casa e a cama, encontro penas longas e brancas que me fazem acreditar que ela era um anjo, noutras, encontro pedaços de garras e um leve cheiro de enxofre invade o quarto, dignos de um demônio.
Quem afinal era você, Lilith? Deusas lunares? A figura igualitária de Adão? A briga com Eva? O abandono de um Éden em conflito? Te questionar muitas vezes me anula mas não vou desistir. A dúvida é púrpura, ácida, demagoga e inesperada. Te perguntar é como abraçar coisas mortas e vivas, quase que ao mesmo tempo.

Eu no sofá, ela na tela, sorrimos um para o outro. Ela gostou dos meus óculos, eu gostei do seu chapéu. Lilith saiu da TV enquanto eu assistia, atônito, um filme sem muita graça. Abandonou seu mundo surreal e invadiu minha realidade. Pisou no meu tapete colorido da sala e com a ajuda dos braços saltou de dentro da tela e sentou-se do meu lado. Tocou meus lábios com seus dedos carregados de intenções. Experimentou meus óculos enquanto eu vesti o seu chapéu. Ficamos horas falando de tudo e de nada. Parecia que já nos conhecíamos por todas as possíveis gerações. No final, Lilith estava nua embaixo de mim e passamos os próximos anos entre orgasmos e orgias.

Às vezes me convenço de que Lilith foi um vício, uma cilada, um dia de guerrilha com chuva. Às vezes sei que ela era uma extensão do que eu gostaria de acreditar. 

Passamos mais de setecentos dias juntos e vez ou outra, Lilith abria sua caixinha de ferramentas pegava uma corda e com toda a sua habilidade, me enforcava. Em outras vezes ia até a cozinha e preparava nosso jantar regado de especiarias, entre dentes que sorriam algo vago.
Foram dias que misturavam guerra, paz, enchente. Dias glaciais, infernais, eternos. Eu desenhava Lilith. Eu engolia Lilith. Eu vomitava Lilith.
Numa tarde crisântemo, ela, vestida com seu lado de garras, olhou fundo nos meus olhos e disse: “não quero alguém como você ao meu lado”. Fez as malas, chorou e antes de sair me beijou como se beija um eterno amor.

Depois daquele dia nunca mais nos falamos. Não sei por onde ela anda, nem em qual filme está em cartaz. Se trocou o chapéu, a dúvida ou se encontrou a sua certeza. Até hoje não sei se ela era um anjo ou um demônio. Se devo considerar as asas ou as garras. Tudo o que sei é que sempre vou permanecer com Lilith entre minhas pernas, dedos e interrogações. E ela vai escorrer sempre, eu sei.

O chá esfriou. Isso é que dá perder tempo com anjos e demônios.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

a INQUIETAÇÃO - por Dilma Alencar.


Minhas mãos trêmulas, não pelo cansaço que os anos trazem, mas pelo vão que você deixou, tateiam as possibilidades tristes de algum corpo. Sob o sol de meio dia, de um dia de verão, na garoa das 18:00h, de um inverno paulista, sua lembrança é a única coisa bela.
A língua - cansada dos imperativos que incham e mofam nas mesas de restaurantes, com bifes frios e pessoas secas - cala.
O olhar tenta ainda um afago voluntário de ter doçura, mas o corpo, sobretudo o corpo, meu amor, esse morre num tango, na sua saia, sua isca, seu nunca.
Recolho minhas vergonhas: os meus sapatos, minha lingerie, meu casaco, minha angústia. Entre a vontade e a antecipação do abismo: a oxigenação, o fermento, a comida, a saliva, o sal. As mãos, sujas de mentir. Os olhos, cegos de não te ver.
Aos poucos, meu amor, devagar se faz o assombro de te ter entre as pernas de um corpo alheio, em perfume e em sangue, aos poucos, meu amor. O espaço, de deus, entre sua calcinha e seu sutiã, acalma os demônios do meu corpo. Calada e febril, eu morreria entre suas coxas, para ver Deus num plano maior, ou ainda seu rosto, pálido e cínico, me saudando na chegada ao inferno.
Venha logo, eu estou cansada.
Quero sua mão, com seus anéis de pedras pretas. Quero seu silêncio, quero seu nome para a filha que vou ter. Seu nome viverá nove meses no meu ventre, e visitará meu túmulo.
O nome, a substância, o primeiro café, o peso exato do seu corpo de manhã, seu pesadelo em minhas mãos, quero seus espinhos antes de flor e seu cansaço em mim. As margaridas cresceram. Passe no mercado compre canela e pêssegos, hoje eu vou fazer sua sobremesa preferida.
Eu escrevi um conto com seu nome, está no teto do nosso quarto, de tinta vermelha. Quando você voltar eu terei tanta coisa pra dizer, comprei uma saia amarela para que use com aqueles chinelos hippies que você comprou na feirinha da república, eu doei alguns móveis: a mesa, porque lembrava você tomando chá, o sofá, porque lembrava a gente namorando, os quadros, os relógios, porque só você se importava com o tempo.
Já é tempo de você voltar. Eu voltei, eu decidi voltar, lá fora está ruim, aqui dentro é mais bonito.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

tEU NOME - por Vinícius Linné


Escrevi o nome gratuito na perna. Escrevi pela mania mesmo que tinha de escrever nas pernas. Não sei. Me parecia que a tinta corria mais líquida. A resistência era menor do que em qualquer papel. Ou, talvez, eu costumasse escrever nas pernas porque era, por dentro, feito todo de palavras. Escrevia porque isso apenas marcava na pele o conteúdo dela. Não me escorria sangue, mas tinta. Não me batia o coração, batiam as teclas da minha máquina de fazer poemas.

Entre as palavras todas doidas de se escrever, escrevi, sem sentido, teu nome. As letras todas escritas entre meus pelos. Foi assim que começou. Foi assim que eu não consegui terminar. Foi besteira. Foi o nome que me veio. O nome que eu gostaria de ter, de repente. Ou o nome que eu primeiro vi. Não me lembro. Só sei que escrevi teu nome na minha pele rija das coxas.

A princípio, ninguém veria. Era um banho certo já no corredor, a me esperar. Então vieram as batidas na porta da frente. Então veio a urgência, a necessidade de sair de casa, as calças compridas. E então, lá fora, veio a pressa. E, fatal, veio o acidente.

Foi bonito. Os vidros... Foi bonito vê-los quebrar sob a luz alaranjada em uma faísca de chuva. Em uma cascata de glitter cor-de-sol. E então a dor, então aquilo tudo vermelho e escorrendo. Então a inconsciência. Então os médicos, as sirenes, a tesoura retalhando minha roupa.

E então, de repente, teu nome exposto.

Te chamaram. Viram teu nome assim na minha perna e adivinharam qualquer coisa. Te chamaram. Meu rosto te era estranho, completamente. Eu te conhecia de relance, eu acho, de uma vez. Ou nem isso. Mas o teu nome, aquele que a professora te ensinara na escola a escrever,  estava - com outra, bem outra letra - na perna peluda de um estranho completo.

Pasmo.

Espasmo nenhum. Golfada de sangue nenhuma. Morto.

E eu sem poder resolver. Sem poder solucionar o mistério, sem poder levantar e dizer: não foi nada. Vai viver tua vida. Esquece o teu nome que eu me resolvo. 

Não.

E tu ali, desencantado com o teu nome na minha coxa nua. Tão lívido quanto a pele emaranhada nos pelos. Tão confuso quanto pássaro atirado do ninho.

Te deram um copo de água. Querias era afogar-te no oceano azul.

Pior do que não poder explicar era a perspectiva de jamais compreender. Qual era, afinal, nossa ligação? Quais humores malignos me fizeram te pregar essa peça? Teria sido mesmo acidente o acidente? Ou teria eu me matado fatal, só para poder acusá-lo tanto. Sim, um nome na perna é uma acusação. Um motivo, uma carta suicída. E das mais convincentes.

Um nome, em tinta preta, em letra bordada, na perna de um morto. Teu nome. E agora?

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

a mulher VESTIDA DE ROSAS - por Simone Huck


"Sangue", 2012 - Simone Huck
  
Vestiu-se de rosas. Não. Não da cor rosa e sim da flor rosa. Rosas vermelhas e vivas, flamejantes. Colocou-se nua e aproveitou que as flores estavam maduras, com suculentos espinhos capazes de atravessar longos centímetros de epiderme e músculos. Num lento ritual ia posicionando as rosas em cima dos braços, pernas, barriga, costas e cravava, uma a uma, em sua pele. Em algum lugar da sua pequena vida sobrevivia uma certa paixão, ainda que suspensa.
Não, não sangrava. Nem doía. Já fazia tempo que nada sangrava. Quando a vida pesa, ela empedra, vira casco, osso, coágulo seco e hirto. Olhou no relógio, eram quase seis horas do dia 22 de julho, dia de Santa Maria Madalena e também o dia de enfim, cravar-se de rosas. 
Chegou em casa com dois baldes capazes de abrigar seis dúzias de flores em espinho. Estava feliz. Estava vermelha. Estava estabelecida. Sentia que aquele era o momento exato de finalmente dar algum sentido à sua vida e validar as escrituras. Havia uma pequena réstia de crença em si. Andava cansada de procurar alguma razão útil entre terra e céu. 

Olhou-se no espelho e finalmente estava vestida com a roupa que tanto desejou. Por cima da sua nudez somente rosas. Do seu corpo só se via o rosto e a sola dos pés. Abriu a porta da casa e saiu ereta, correta e decidida. Naquele exato momento passava uma procissão. Os fiéis carregavam o altar com a Santa Maria Madalena e quando a notaram quase deixaram cair a santa. A maioria deles, beatos e servos de Deus, cochicharam alguma permitida blasfêmia e fizeram o sinal da cruz, mas ela, toda fincada de rosas, não se deixou intimidar pela artilharia dos sagrados olhares. Profana e santa, coberta de flores mundanas, seguiu pelo meio da procissão. O cotidiano era o seu purgatório particular e naquele dia ela se livraria dele, pensou. Nesse momento, Santa Maria Madalena, esculpida em cedro, sorriu-lhe de cima do altar e a protegeu. Ia piscar quando um descuidado beato, magoado com a cena, deixou pingar uma gota de vela em cima dos seus olhos santos de madeira. Mas para ela era o suficiente: o sorriso de Maria Madalena lhe conferia a certeza da possibilidade e permissão. Lembrou que só de passar pela procissão, fazia parte dela e lembrou também que foi assim com Madalena:

Os doze estavam com ele, bem como algumas mulheres que haviam sido curadas de espíritos malignos e de enfermidades: Maria, chamada Madalena, da qual tinham saído sete demônios.”(Lucas 8:1-2)

Já fazia tempo que não sabia mais do sagrado e nem se estava exorcizada de seus sete demônios particulares, mas ao caminhar toda cravada de rosas, abraçava lentamente a sua libertação. Seguiu atravessando a multidão de olhos julgadores. Passou pela farmácia, pela mercearia, pela padaria e arrancou todas as possíveis e secas palavras até chegar, finalmente, na praça central da cidade. Já passava das sete horas da noite e ainda haviam alguns poucos meninos recolhendo suas pipas dos céus. Os bancos da praça já estavam sendo disputados pelos anônimos que ali iriam profanar seus amores. Tudo tangia a um silêncio quase hediondo das noites decisivas.

Procurou o jardim principal e repentinamente sua boca salivou. Engoliu a certeza de que aquele era o lugar ideal para as rosas serem cultivadas. Sentiu a terra molhada em seus pés e sorriu. Ajoelhou, passou as mãos na grama e sorriu mais ainda. 
Finalmente tinha encontrado a sua cama. Deitou de barriga para cima, braços e pernas abertos, corpo completamente coberto de rosas. Olhou a luz da lua. Ousou imaginar um rosto nas nuvens mas nada viu. Nada se formou. Nenhuma imagem. Nenhum sinal. Nesse momento não sentia nem alegria, nem tristeza. Sua vida lentamente foi calando-se, vermelha e deu tempo apenas de suspirar algo como:

"Comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes para a terra, pois dela foste tirado. Tu és pó e ao pó voltarás." (Gênesis 3:19) 
 
No jardim, sorriu um novo botão de rosas ainda de manhã.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

as MARGARIDAS BRANCAS - por Dilma Alencar

Ela abriu a janela, jogou o casaco sobre meus livros e me disse do dia: do atraso do ônibus, do erro da senha do cartão, do botão da blusa, do calo que a sapatilha amarela sempre causa no seu pé. Tomou uma aspirina, tomou o espaço da sala e viu seu filme predileto.
Ela não me via, eu já não queria enlace. Aos poucos o silêncio dizia de tédio e cansaço. Eu comprei margaridas brancas, um livro de receitas, arrumei a casa, tudo cheirava a alecrim. No meu quarto, entre relatórios e poemas, eu tentava amolecer umas palavras-nós, para dizer, para cortar a pulsação já fraca.
O filme acabara. Ela afundou de cansaço, na poltrona roxa. Eu a acordei, com olhos tristes, de quem tem mais ternura que amor. Houve um beijo longo e cúmplice, sentimos que a distância doía. Os olhos dela estavam mais escuros que de costume, eu estava calma como nunca. Choramos de saudade dos piqueniques, das mãos dadas, das datas, dos ditos. O jantar não foi servido. Houve uma chuva histérica, uma xícara quebrada, um copo d’água. Sorrimos um sorriso compassado com soluços, minha lágrima tinha o gosto do seu batom ainda úmido na minha boca. Nossa solidão não cabia na mesma cama. Ela também tinha dor e saudade. Ficamos tristes, ela dormiu ao meu lado, eu acordei pra sempre. Na primeira manhã de saudade, ela tomou banho, saiu de toalha com um cheiro que só os anjos devem ter, pegou meu corretivo emprestado, tomou meu café, falou da gente, e de como seríamos mais felizes depois da noite passada.
Sorrimos à liberdade, guardamos as lembranças sãs e acreditamos.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

dE eLIS - por Vinícius Linné


Os corações viram gelo e, depois, não há nada que os degele
Se a neve, cobrindo a pele, vai esfriando por dentro o ser
Não há mais forma de se aquecer, não há mais tempo de se esquentar
Não há mais nada pra se fazer, senão chorar sob o cobertor

Eu já esquecera da febre que é crônica. Já me acostumara com as compressas de gelo que me botavam e me aplacavam, então, de ser. O gelo já passara epiderme, derme,  e congelara mesmo os vermes - do peito. Era eu, apático, mudo, deserto de noite, frio e imenso e insondável e impovoado. Pávido, enfim.

E então aconteceu.

Aconteceu de eu esperar como quem espera, de cravo vermelho na lapela. Aconteceu de alguém chegar com brasas nos bolsos e me colocá-las nos pulsos. Aconteceu de eu ver o sangue derreter, descoagular, correr. Tudo para dali a instantes ferver, borbulhar, incendiar de novo na febre, que é crônica.

E bendita seja a febre crônica. Porque preciso dela. Porque a cura do que é crônico está na morte. E de morrer eu entendo - em vida - e então não quero. Bendita seja minha pele que evapora a chuva. Bendito seja o eu deserto - de dia. Escaldante, imenso, convidativo em minhas miragens de loucura. Ávido, enfim.

Os corações pegam fogo e depois não há nada que os apague
se a combustão os persegue, as labaredas e as brasas são
O alimento, o veneno e o pão, o vinho seco, a recordação
Dos tempos idos de comunhão, sonhos vividos de conviver

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

a GOSTO - por Simone Huck

"Sem título", 2011 - Simone Huck
Apagou o ciclo de um julho em reticências repousando sua alma na nostalgia e no caos. Abrigou dúvidas e acrescentou incertezas. Fechou os olhos e ainda sonhou. 
Por noites desesperadas ainda gritou, sentenciando a pausa inexata das horas. Anoiteceu e amanheceu em si rumores desassossegados de quem não consegue dormir há algum tempo. 

A estranheza do novo brincou com seus lábios, sua boca seca. Enquanto seus dedos procuravam entre seus dentes alguma palavra escondida que ainda não havia engolido. Já era tarde para engasgar incertezas.

Agosto acendeu a luz da sua mínima esperança e esgotou seu cansaço.
Revelou o depois de tantos “sins” e ocultou a verdade de tantos “nãos”. 
Amanheceu com um novo gosto. E não era êxtase, era liberdade. Sorriu. E então percebeu que era tempo de se fazer feliz.