segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

PASSAgem - Por Vinícius Linné


No bilhete do trem está clara a data da partida: 31 de dezembro de 2012, 23h59min.

A data de chegada também: 01 de janeiro de 2013, 0h00min. Uma viagem de 60 segundos só. Colocar o pé para dentro do trem e sair. Que importância isso pode ter? Toda. Toda porque de onde se parte é para onde não se pode voltar. Quando todos estiverem no trem, tudo que ficou para trás deixa de existir. Por isso é fundamental estar preparado. Por isso o cuidado agora, na hora de fazer essas malas. Só o que você decidir levar para o trem será salvo de alguma forma.

O que fazer das pessoas que lhe fizeram mal? Deixe-as. Deixe-as assim como estão, azedas e mofadas, mas não se esqueça de anotar seus nomes e levá-los. É bom não esquecer. Os amores imaginários? Deixe-os também. É preciso lugar na mala para o que se encontra no caminho.

Os desgostos todos? Livre-se deles sem dó. São pesados, ocupam espaço e não servem para muita coisa. Os aprendizados, porém, leve-os todos, mesmo se nada mais couber na mala. Eles são o que de fundamental você precisa ter.

Das pessoas que conheceu, leve as mais importantes. Aquela meia dúzia essencial para os dias de frio ou de calor. As esperanças, coloque-as na frasqueira. Que fiquem à mão e sirvam para deixar a vida bonita, mesmo naqueles dias em que tudo acorda fora do lugar. Cuidado, porém, para não confundir esperanças com ilusões. As ilusões você deve descartar, embrulhadas em jornal para que não machuquem mais ninguém.

Os sorrisos você leva. As lágrimas também. Nenhum sentir pode mesmo ser descartado. Leve os abraços enrolados. Assim se ajeitam melhor. Na procrastinação bote fogo, por favor. Ela tem a estranha mania de entrar na bagagem, mesmo quando não é colocada. As músicas que conheceu leve à mão. Você vai precisar delas. Dos livros todos que leu, leve os mais importantes, deixe bastante espaço para os que ainda vai ler. PS: os que tiverem dedicatória, nem pense, leve. Eles fazem parte do delicado da vida. 

As conquistas precisam ir todas também, para lembrá-lo de que é possível sim conquistar. Já as coisas não resolvidas, ou estranhas, ou embaraçosas, faça de conta que esqueceu sobre a mesa. As fotografias, coloque no fundo da mala, com cuidado para não amassá-las. A vontade você não pode esquecer de modo algum, assim como o desejo, a paixão, a motivação. Você sabe que precisa deles de hora em hora.

Enfim, meu bem, abra os armários, areje-os, junte tudo que conseguir juntar, carregue as malas com tudo que você teve e que conseguiu prestar. Encha, também sem dó, os sacos pretos de lixo, desconsidere, esvazie-se, descarte cada cisco que não servir mais. Veja duas vezes se não está esquecendo nada...

Está? Ah, sim, o desejo de mudança... esse você deve deixar fora da mala. Vista-o por inteiro nessa noite. É sempre bom vestir algo assim para a viagem.

Boa viagem, aliás. Que tudo que você deixar seja incinerado quando você embarcar no trem. E que, ao descer, você encontre um mundo todo fresco e lavado, um lugar a ser descoberto e vivido e aproveitado. Que na próxima viagem, no próximo fim de ano, você tenha ainda mais o que levar – e, por favor, cada vez menos para jogar fora.

Aproveite a viagem, aproveite a vista, aproveite a vida. Sem dó.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

aS ESTRELAS ESTÃO MORRENDO - por Simone Huck

 Era a última quinta-feira de um dezembro qualquer. A presença dela ainda arranhava o céu da memória dele. Quando foi fechar a janela do quarto já era noite. Lembrou que mês passado leu uma reportagem que dizia que o universo está parando de fabricar novas estrelas. Chorou quando não encontrou as Três-Marias no céu.

Há quarenta e nove dias não chovia. Seu coração estava seco. Apenas uma intenção remota e particular insistia em iluminar seu lado escuro. Sentou na beira da cama e terminou de selecionar os trezentos e quatro verbos. Não acreditava mais nos adjetivos. Os substantivos nem cogitou. No dia seguinte, seu horário estava marcado às sete horas da noite. Cinco e meia já estava lá, munido dos trezentos e quatro verbos e do ato. Daria certo.
Sete horas. O tatuador entrou. Posicionou todas as palavras em seu corpo e não restou epiderme sem verbo. Tatuou até o rosto. Aos poucos voltava a ser um camaleão fugido do último tiroteio no Vietnã. Sem pátria e cama. Quase sem estrelas. Precisava esquecer o rastro daquela mulher. Tatuou todo o corpo com os verbos. Olhou no espelho, já não era uma folha em branco. No seu rosto estava escrito verbos defectivos. Não queria mais conjugar nem ser conjugado. Não queria uma primeira, segunda nem terceira pessoa. Não era mais singular; muito menos plural.

No dia seguinte, para garantir a limpeza de suas hemácias da possível lembrança dela, fez transfusão de sangue. Ao meio dia, trocou seu sêmen pelo sêmen de outro homem e para garantir deixou dentro de uma outra mulher. Foi para casa. Estava deixando de ser rascunho.
Entrou no chuveiro e antes de ligar a água leu em seu rosto o verbo reaver”. Tinha pressa. Chorou duas lágrimas de pedra que caíram e quebraram o piso do chão. Com uma bucha lavou boca, mãos, pés, saudade, costas, desejo, coxas, anseios e joelhos. Saiu e enxugou-se com pressa. Colocou pasta de dentes na escova e antes de começar a limpeza, inflou o peito, mirou a pia do banheiro e projetou o corpo para trás e lançou-se velozmente para frente tirando de si um grande e último escarro. A mulher que ele precisava esquecer estava um pouco ali. Pelo ralo o escarro marrom escuro desceu, grosso. O resto da mulher tentou agarrar com suas unhas pintadas o ralo da pia mas ele ligou a água para garantir o afogamento dos dois: mulher e escarro.

Sentou na bacia sanitária e resolveu cortar as unhas. Havia muitos ressentimentos guardados ali. Unhas são como caixas, aranhas escondidas em quinas, confeccionando teias sem parar. Vestígios que arranham a mínima intenção de esquecer. Quanto mais pensava nela, mais cortava. Cortou até chegar no leito ungueal e só parou porque não havia mais unha. Tinha certeza que se livrou mais um pouco dela ali. Juntou os restos, o sangue e jogou tudo dentro da bacia sanitária. Deu descarga. Suspirou levemente aliviado. A água afogou as unhas. E os restos.

Levantou e com um cotonete limpou os ouvidos. Tirou acúmulos de cera. Secreções reúnem gordura, ranço e passado. Imperceptíveis sobras dela em seu ouvido gritavam palavras que não queria mais ouvir. Estava quase limpo. Perfumou-se. Vestiu sua camiseta preferida. Sua calça preta e seus sapatos brancos. Foi até o jardim e colheu duas margaridas. Arrumou a mesa de jantar, acendeu uma vela e colou as duas flores no prato. Despejou azeite nas pétalas e caule e mastigou tudo com um copo de água gelada. Engoliu as flores e o último resquício dela. Margaridas não seriam mais suas flores preferidas.

Arrumou a cama e antes de apagar a luz e finalmente dormir em liberdade, arrotou um punhado de pólen que foi levado pelo vento e fecundou o jardim da casa da frente. Meses depois novas flores nasceram do outro lado da calçada. Mal sabia ele que ali estava ela. Há presenças que não fizeram catecismo.

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

oS FESTEJOS - por Dilma Alencar.


É manhã de natal e importa mais ser manhã.
Um homem dorme em frente ao banco Safra, esquina da Paulista com a Augusta, exibe uma ferida aberta na coxa, ele fede, ele fuma. O crack comeu seu sorriso. Os dois dentes que restam estão escondidos por trás de seu bigode branco e piolhento.
Duas distintas senhoras atravessam a faixa de pedestre exibindo roupas de cortes finos e elegantes, cabelos engenhosamente montados para parecerem naturais.
As sacolas vermelhas deixam o laço dourado arrastando pela calçada. As vidas de luxo e de lixo dividem a mesma calçada.
O homem cospe e coça a barba, uma garrafa de uísque passaporte é seu desjejum. Cada um com seu panetone.
As pernas brancas e tatuadas sobem a Rua Augusta e dobram a esquina em direção ao metrô. Homens de mãos dadas, um deles segurando uma long neck heineck. Falam de Beatles e do quarteto de cordas do teatro municipal.
O rapaz da padaria ainda traz o sotaque e os sonhos frescos, e pensa ser passagem o presente de ônibus cheio, preconceitos vistos e aos poucos aprende a odiar. No amontoado de gente apertada em ônibus e terminais ele conta os dias e vive um futuro que pode não existir, aprendeu a odiar quando se viu sem família, aprendeu a odiar no natal do ano passado, quando a marmita fria o fez vomitar e trabalhou com febre e ódio o dia inteiro, pois a cidade não para.
As meninas brancas bebem cerveja e gozam no banheiro de um bar gay, enquanto seus amigos esperam o misto quente com café com leite.
A T.V. do bar exibe clipes antigos e eles veem a Madonna com a mesma inveja que uma mulher tem de outra.
Da janela de seu apartamento pequeno uma mulher bebe chá, de costa para a grande avenida, ela vê seu namorado, um cara culto, tão carinhoso quanto sua amiga Gabi com quem transa de vez em quando.Para não “entediar”, dizia.
Ele exibia as costas largas e bonitas.
É manhã de natal. Os transeuntes daquela avenida, àquela hora da manhã, carregavam pequenas angústias. Moralidades e ímpetos de sexo. Os bares, as camas, as cores, os brilhos, tudo excitava o corpo e as placas diziam “goze os festejos”.
 Descendo um túnel, numa outra avenida da cidade de concreto, flores suavizam e colorem o que já fora corpo. A paz está ali, pois a inquietude deixara aquela gaiola de carne e luto.
Cheirando a maconha e vodca os meninos afeminados voltavam para suas famílias duras, a mulher do apartamento tomou banho e com muito carinho fez café para o namorado.
As senhoras entraram em suas casas com poltronas de estofados bucólicos e feios.
Só o homem da calçada não pensava, apenas sentia dor. A perna expulsava pus e quando algum pensamento surgia era de medo, pois o lanche jogado no chão por algum outro bêbado atraia moscas, e agora sua perna era alvo. Havia moscas na Avenida Paulista. As moscas também têm fome. Sangue e sacrifício ainda são as alegorias do velho mito de morte e ressurreição.
Mas o dia era de nascimento, e no hospital, perto do Paraíso, sim, alguém nascia vestindo o sangue de sua mãe.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

c.G.e - Por Vinícius Linné


É natal. E nos natais e anos novos eu costumo lembrar de você. Lembro de quando éramos só adolescentes e bobos. E lembro do meu moletom azul. E lembro do soco que dei no seu braço.

Dos e-mails, das farpas afiadas, da minha incompreensão, do meu descaso e descompasso, eu lembro. Lembro de alguém dizendo: “tem certeza que você não entende?” Eu tinha. Eu tinha as certezas todas. Eu não entendia porque era só para mim que eu olhava.

Os meus sentimentos, as minhas amizades, os meus gostares, os meus pesares. Eu não via o que vejo hoje. Não via os seus natais em um apartamento solitário. Não via a falta de pais, a falta de paz, a janela escura pela qual entravam os gritos felizes de algum bêbado qualquer. Não via que a sua solidão era maior do que a minha. Não via a falta que eu mesmo fazia.

Eu não via o vazio dos enfeites de natal na sua porta. Eu não via você sem receber qualquer presente. Eu não via você me esperando entrar por ali com uma lembrança qualquer. Eu não via você chorar.

No ano novo, eu não via você sem beber champanhe. Não via você segurando firme um travesseiro contra a cabeça para não escutar o barulho dos fogos. Eu estava ofuscado por eles. Eu não via o escuro do seu quarto, a falta de vontade, a saudade do tempo em que eu podia ainda lhe dar socos no braço.

Hoje eu vejo tudo isso.

Mas só porque hoje eu não vejo você.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

21.12.2012 - por Simone Huck

Abriu os olhos e do lado viu seu marido. Teias de aranha confundiam as frestas de sol que tentavam entrar pela janela. Era mais um dia. Mais um copo de café. Novas esperas. Ausência de esperança. Nada que fosse palpável de mudança. Não havia nem malas novas, nem coragens velhas. Atrás dos dentes escondia-se alguma palavra que não ousava dizer em voz alta. O silêncio conhecia sua aflição. Crenças desacreditadas. Não havia Deus para dizer o que era certo. Não havia santo ou altar para que pudesse ajoelhar ou suplicar. Nas suas pernas havia mais cansaços do que a mínima possibilidade de milagre. Os dias contradiziam-se. A pele queimava desejos novos. A vida oferecia caminhos antigos. Não sabia se era neste mundo. Não sabia se era no mundo passado. Não sabia de onde aquilo tudo apareceu para metralhar sua paz cinza. Tinha uma boca tão bonita. Andava tão calada. Era dia dos pais.


Ela estava de quatro. Ele estava por trás. Segurou seus cabelos loiros e pediu para que ela rebolasse. Nunca estavam satisfeitos. Ele tinha mais dez minutos pra gozar. Ela tinha mais quatro clientes para atender. A madrugada anunciava pela janela uma lua que parecia uma boca sorrindo. Ela não via graça, nem sorriso, nem lua, nem noite. Enquanto ele metia ela gemia mentiras. Ele gozou. Ela levantou e limpou o umbigo e a boca. Ele jogou cinquenta reais na cama. Ela passou uma vida inteira sem ouvir a palavra “eu te amo”. Cada um virou a esquina no sentido oposto. Sombras de uma madrugada úmida. Ele não estava satisfeito. Antes de voltar pra casa, precisava de mais algumas metidas. Tinha 150 reais no bolso. Ela pegou o celular e conferiu se havia novas mensagens. Estava na hora de Marcelo acreditar que ela era atendente noturna numa empresa de telefonia. Que era mulher séria. Que merecia ouvir ao menos uma vez “eu te amo”. Nada. Sem mensagens. Sem Marcelo. João era o próximo cliente e ela precisaria mentir bem. Era Domingo de Páscoa.


Ele era tão bonito. Desde menino se destacava da maioria. Cabelos longos e macios, lisos. Olhos ávidos, claros. Sorriso aberto. Conduzia o mundo com hálito de sonho bom. Era pessoa do bem. Ninguém poderia atestar o contrário. Casou. Não teve filhos. Construía casas. Comprou a dele de outro engenheiro. Quando fez trinta anos descobriu que não sabia o que era viver. Quando sua esposa preparou um jantar para pedir um filho, ele colocou sua melhor camisa para pedir o divórcio. Foi na mesma noite. Cada um tratou de engolir suas próprias vírgulas. Ele vendeu tudo. Resolveu sair nu na noite mais fria do ano. Sentou debaixo de uma árvore molhada. Abraçou suas pernas e ficou vendo os carros passarem. Era Natal.



Mais um cigarro. O cinzeiro estava cheio de intenções. Mais uma dose de vodca. Era impossível permanecer sóbria. Era viciada. Consumia todas as tendências do mundo dos destilados. Era conhecida pelos malucos na boca de fumo. Ia ao médico para pegar receitas azuis. No armário do banheiro colecionava psicotrópicos. Tinha um estado de pasmaceira tão natural que achavam que era loucura e não vício. Talvez excesso de leitura. Todos a conheciam e gostavam dela. Era moça estudada. Dava palestras para os adolescentes da igreja. Dava aula na universidade a noite. Nos finais de semana visitava as exposições temporárias da cidade e todos esperavam que ela publicasse uma mínima nota falando a respeito. Tudo o que ela falava produzia efeito. Tudo o que ela ingeria, também. Chegava em casa sempre sozinha. Tinha sete gatos e dois passarinhos machos que moravam na mesma gaiola. Uma gata conversava com um dos passarinhos. Era o único erotismo presente naquela casa. Toda a íntima conversação da vida dela era lacônica. Os bichos ficavam na maior parte do tempo estáticos, olhando o vaso pendurado na janela do vigésimo sétimo andar. As nuvens faziam parecer que o vaso dançava. Eram todos lunáticos ou, talvez, sensatos em demasia. Guardava a maioria dos livros debaixo da cama. Às vezes gostava de comer traças gordas. Eram suculentas e frias. Era como comer restos de livros. Restos de palavras. Restos do resto. Vomitou antes de apagar a luz e esperar um outro dia. Era dia de Finados.



O calendário marcava a mundial histeria: 21.12.2012. Nada tremeu. Nada mudou. Sorriram um sorriso cinza de quem nada espera. Até os dentes se acostumam à previsibilidade da boca. Não era feriado para nenhum deles.


terça-feira, 18 de dezembro de 2012

sOBRE AQUELAS PERGUNTAS - por Dilma alencar


Gostava do seu cabelo sobre meu rosto, seu jeito de me acordar, sua mão subindo pela nuca desgrenhando meu cabelo amassado, compondo minha feição de preguiça.
O dia sorria, logo cedo um jardim repousava aos pés da cama.  Num encanto de água teu corpo acordava e o mundo estava nele, angelical e irresponsável, tudo que se queria num corpo outro. Não fosse o fascínio de uma absoluta entrega de poros, de pó de túmulos futuros, de sangue, não fosse a dureza de ter as armas todas dispersas no chão, e o coração na garganta, eu teria fugido. Mas minhas pernas trêmulas de um cansaço de deus, só sabiam de seus passos. Tudo era imã, como naquele dia improvável em que eu voltei para casa, desistira de ir ao trabalho na esquina de casa.
Você tomava banho e ouvia meu álbum de Marisa, eu abri a porta, queimando de saudade do nosso lençol. Seu rastro, roupas largados no chão. Entrei no chuveiro de roupa, bolsa, sapatos. Você recebeu meu repente como quem vê um eclipse acontecer pela primeira vez. Com o cuidado delicado de não abandonar meu olhar brilhante, você me despiu: bolsa pesada da água quente do chuveiro, fones de ouvido, colar, anéis e brincos. A brandura do cansaço. O meu mundo reunia-se em torno do seu umbigo.
 Imã: quando você me deu aquele buquê amarelo, seu rosto numa expressão que eu não sabia dizer, de quem descobre um segredo antigo, um mapa das terras virgens.  Eu agarrei sua mão lhe cobrando verbo, você sorriu e disse que meus olhos dançavam entre as flores, intensos e livres. E me abraçou como quem abraça uma fortaleza.
Li em algum lugar que “os anjos são ateus e só acreditam no que é matéria”, imediatamente me lembrei de seu corpo.
Como foi mesmo que a poesia invadiu a cozinha, o corredor, o jornal embaixo da porta, minha saia, minha língua, meu xampu, minha nudez, meus modos verbais?
O som macio de seus pés descalços indo até a cozinha ainda me faz abrir sorrisos que me assustam de tão fáceis.
Aos poucos a nossa linguagem foi tecendo corda, o amor fincava raízes nos nossos estômagos e gargantas. Estrangulava pequenas liberdades esquecidas,e meu zelo pela liberdade de olhos soltos e minhas mãos no mundo foram ferindo sua compaixão. Compaixão: deriva do latim, compassio “capacidade de sentir o que o outro sente”. Não tínhamos um dicionário etimológico, quiçá um manual sentimental. Quando é que é só tesão e fogo? Quando é que começa o caos, como sinos de igrejas invadindo sem permissão lares baldios?
Sentimentos que matam o instinto da vida e nos fazem fiéis a um corpo que não é o nosso, eis a loucura que sentíamos, morremos merecidamente. A devoção aos sinais virara rito, o ritmo perdia o tempo do acorde, e matamos com velas e orações a gratuidade dos gestos.
O desespero embutido no amor vazava pela geladeira, entre sua geleia e minha cerveja, entre sua roupa passada e minha preguiça.
Estupidez, não ter saído antes daquele luar eterno em que tocamos Deus.
Corrente no tornozelo: anel de compromisso, metáforas angustiantes de um fim próximo.
A nossa luz preferida, aquela depois de chuva à tarde, quando a ar flutua prata e todas as cores adquirem visgo, como planta bem regada. Ela agora me enche os olhos de vazio e meu café esfria enquanto meu olhar se perde na distância dos dias.
Ainda arrasto correntes no tornozelo. Um dia,  um anjo teve encantamento de me roubar aquele peso, mas devolveu após uma semana, dizendo que não cabia em sua casa, embora bonito, soltava  ferrugem nas nuvens virgens de dor e peso.
O que se alcança querendo voar?
De um bar numa esquina movimentada, os copos e os corpos são tomados de intenções medíocres de um gozo pobre de espírito e anêmico de poesia, há quem diga que há amor nas tentativas, quantos goles mais de vodca e memória de seu gosto? Quantos dias arranhando a chuva? Comendo a guerra?
Quando escrevo e me lembro da estupidez crescente, eu rio promessas absurdas nesse dezembro chuvoso, como aquele que você me apresentou deus em forma de água.
Abençoados sejam os que já voaram e sabem da inutilidade sagrada de ter amor e desespero!

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

the END - Por Vinícius Linné

Que meteoros são necessários para te pôr abaixo? O que precisa ainda para te cobrir de vez de fumaça e fogo? É anjos que tu queres? Quatro deles com cavalos e trombetas? Poupe-me. Nós dois sabemos que é preciso menos. Teus cataclismos sempre vieram com suavidade. 

Até para destruir-te tu és fraco.

Que cor é o planeta que queres para contigo chocar? Azul, vermelho, roxo, quem sabe?! Que raio alienígena é preciso para que te rendas ao fim? Diz, diz pra mim...

Quem sabe o sol explodindo, uma lua se partindo, o teu núcleo congelando por falta de zelo e uso e dor? Diz, diz de que sabor tu queres a lava feito calda derretida.

Gases tóxicos, contaminação, lenta decomposição... É assim? Queres arrastada e dolorosamente? Sempre foi esse teu caminho de vida, por que não, então, o de morte? Ou vais, enfim, te deixar render? Fazer tudo acabar num gozo de prazer? Confessar, mostrar teu calendário escondido...

Diz, diz logo como vai ser. Não tenho mais tempo para esperar e perder. Diga de uma vez. Não fique parado me olhando no espelho. Pelo amor de Deus, apocalipse-se.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

mAÇÃS molhadas - por Simone Huck

"Snow White", Mark Ryden.

Nunca fui uma criança calma. Não sou uma mulher calma. Quando nasci, o médico pediu agulha e linha para o instrumentista e costurou uma alma inquieta dentro de mim. Temperamento questionador. Olhos ávidos que se desgastaram mais cedo. Estou ficando cega. Os anos me deram uma alta miopia. Sem óculos, não enxergo um palmo depois do meu próprio nariz. Há pessoas que gostam dessa minha cegueira. Quando era apenas o pai, a mãe, eu e o quintal da casa que não existe mais, também devorava tudo com avidez. Engolia o tempo com olhos bons de ver. Mastigava nuvens e flores do jardim. Tudo tinha um gosto exato. Lembrança é quente e tem cor. É quadro pendurado na memória, sem desgaste do tempo ou da miopia que lentamente embaça meus olhos.

Ver sem enxergar.

O quintal da casa onde nasci era grande. Sem irmãos, a atenção era toda minha. Sempre precisei de plateias. Há quem nasce, cresce e morre montado num picadeiro. De óculos ou não.

Chovia muito naquela tarde. Há chuvas que chovem mais. Na cama estavam esparramadas as contas do mês. O aluguel da casa do quintal grande, luz, água, a hipoteca da casa nova e fria. Pai e mãe felizes, conferindo os números e sonhando com a chegada dos meus irmãos. Todos habitariam a próxima casa. Eu tinha seis anos. Não consultaram minha vontade nessa época. Não havia miopia para coração. Nesse tempo eu enxergava e via. Só pensava em viver ali.

Lá fora a chuva seguia inundando intenções. Talvez as minhas, que não queriam acreditar na migração familiar. Irritada, porque nasci irritada, fui até a cozinha, peguei um pano e um tubo de lustra móveis, escalei a cômoda de roupas que ficava embaixo da janela. Alcancei a janela – escalaria qualquer montanha aos seis anos de idade. Sentei no parapeito e birrenta, disse que ia limpar. Os pais só disseram “cuidado”. Sabiam que nada mais poderia impedir minhas vontades lusitanas. Há crianças que já nascem reis ou rainhas. Eles voltaram ao mundo da matemática enquanto eu fiquei no mundo das janelas, panos e ceras. Nessa época eu sabia ser feliz.

A tempestade aumentou. Começou a chover granizo, pedra, metal, madeira. Olhei pela fresta da janela e lá fora os Duendes do jardim dançavam felizes. Branca de Neve tirou o vestido, ficou nua, resolveu tomar chuva na epiderme toda. Ela era bonita. Cantava, sorria e rodopiava liberta, de mãos dadas com todos os Duendes. Com o pano nas mãos, eu só queria limpar a chuva, lustrar as pedras, secar as flores do jardim e me juntar à dança. Fiquei em pé na cômoda. Minhas pequenas mãos intencionaram alcançar o último vidro. Raios e trovões. A chuva só aumentava. Lá fora parecia mar. Eles gritavam no jardim. Será que a Bruxa protegeu a plantação de maçãs? Meu pequeno coração em diástole acelerada e inocente seguia limpando o vidro e indagando. Deve ter sido nesse dia que passei a questionar mais e viver menos. A janela abriu repentinamente.

De tudo que lembro, mais de trinta anos depois, esse dia eterniza-se. Corpo caído e esticado no chão do jardim. Testa aberta. Chuva e sangue misturados na ponta da língua. Pensei em chorar mas o desenho que a chuva fazia ao descer do céu e cair direto nos meus olhos roubou a vontade da dor. Tangente. Corpo e chuva. Deve ter sido nesse dia que passei a amar os dias de água. Oxalá chovessem os trezentos e sessenta e cinco dias do ano. Eu saberia usar barco.

Em segundos o pai pulou a janela com o lençol da cama nas mãos. Enrolou meu corpo jogado no chão e começou a correr pelo quintal. Branca de Neve e os Duendes abriram espaço para o resgate. A Bruxa má piscou, garantindo em seu deboche o salvamento da plantação. Atrás a mãe chorava e gritava, dizendo que da minha testa saltava um “galo”. Não o ouvi cantar. Correram pela rua no meio da chuva. Rastro de sangue, água e lágrimas do rosto vermelho da mãe. Líquidos borbulhando na mesma panela. Tudo era tão bonito e dolorido. Eu sentia sono e tontura.

Naquele tempo a farmácia da esquina era o pronto-socorro do melhor hospital e o Seu Antônio, o velho farmacêutico de cento e doze anos de idade, era o médico mais experiente do mundo. Eu queria dormir, ninguém deixava. Tudo ficava lentamente turvo. A mãe gritava para que eu abrisse os olhos. O pai estava estático – hoje sei de quem herdei essa prontidão. Lentamente a chuva foi ficando distante e as luzes do mundo foram desligando-se. Também apaguei.

Quando acordei estava deitada no quarto dos meus pais, seca e protegida. Alguns pontos na testa. Seu Antônio era farmacêutico cirurgião. Os quatro-olhos ávidos do pai e da mãe misturavam-se ao concreto do teto do quarto. Não chovia mais lá fora. Sorri, perguntei se choveria novamente e olhei para a janela. Estava tudo limpo. O brilho do vidro lustrado revelou as flores do jardim e a Branca de Neve estática e vestida, ao lado dos Duendes sorridentes. Naquele dia aprendi a lustrar possíveis espelhos que refletem coisas bonitas do mundo.

Deitada no chão, descobri o que era ser chuva com dor.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

cEIA - por Dilma Alencar.


Ele não cabia na rotina que escolhera: a ambição, a promoção, o carro do ano, as roupas compradas em lojas caras, os amigos tão inteligentes quanto previsíveis, as viagens, o turismo óbvio, os livros sujos e relidos, a angústia dos relógios na parede, o labirinto dos bares.
Ganhara um relógio azul de sua namorada, ela disse que seu pulso pedia um, ele fingiu acreditar.
Ela queria filhos, feriados em filas de supermercado, em hotéis de cidades vizinhas.
Ele teve vergonha de admitir para os amigos que, nos últimos dias, chorava sozinho.
Outro dia ele saiu sem o carro, sentia-se entediado e foi à rua andar e fumar. Andando pela calçada, inquieto pelo mal estar que fazia morada em seus ombros e passos. Perto da portaria do prédio, ele viu uma mulher sentada na calçada, com um filho recém-nascido. A cabeça da criança estava amarela, uma casca grande e oleosa cobria o cabelo fino.
O rosto da mãe era um anúncio de fome e terror, ele passou fazendo um esforço, que nunca fizera antes, para não vê-los.
Andava assim, sentindo fundo, demasiado doer alargava o peito daquele homem comum.
Os discursos mentiam. Nunca fora homem ignorante, o contrário disso, assimilava novas ideias, opinava sobre a economia da Grécia, as cotas em universidades e a democracia utópica dos partidos de esquerda.
Estava compadecido, sim, compadecido. No transito, o automóvel parado, fechava os olhos, passava as mãos pelo rosto, com força, e quando abria os olhos, sentia-se ridículo, estúpido. Rude em sua natureza, sua roupa bem passada, os ponteiros precisos lhe medindo passos.
Viu um menino fazendo malabares, o olhar do homem era largo a ponto de também ser o menino, sentia fundo o corpo raquítico, o pé de pele grossa não poupava o calor do asfalto, doía.
Suspirou, soluçou, o trânsito fluiu, ele acelerou e seguiu o fluxo dos itinerários.
Todos notaram, mãe, primo, namorada, o porteiro.
O homem tinha um ar de zumbi, fumava cada vez mais, chorava escondido.
Semana de natal: a avenida vermelha, verde e dourada ampliava a compaixão de suas lágrimas insanas, as ligações da namorada se perdiam, as buzinas, os anúncios, as putas, os bêbados, a secretária, a secreção... Tudo enojava e entristecia o homem.
Ele se interrogava, será sexo? Dinheiro? Não. Seu corpo respondia com precisão , sua namorada correspondia ao acessório mudo que ele sempre quis e mereceu, era prático, dizia, era seco, diziam.
Não transava, não dormia por mais de duas horas sem um pranto que cansasse seu corpo para um novo sono pesado e curto, quase um desmaio.
A família falava de natal, era dezembro.
A ceia era farta e previsível e todos lhe sorriam com uma bajulação irritante, ele se sentiu retardado e sua cara grave era de uma palidez esverdeada.
Conversou gentilmente com todos, falou do excesso de trabalho naquele ano, disse de planos para janeiro e sorriu.
Algumas palavras mentirosas foram repetidas e cortaram o peru natalino, garfos e facas grã-finos abriam a carne macia da ave e as bocas e estômagos enchiam-se de satisfação da tarefa feita e sentiam-se melhores e ternos.
Alheio a tudo isso, o homem lutava contra o choro compulsivo e torrente que lhe transfigurava a face e lhe fazia doce.
Como um menino, ele foi levado pelos enfermeiros de um uma clínica psiquiátrica.
A família lamentava a necessária internação, as luzes natalinas continuaram piscando, absurdas, sua namorada, tão bonita quanto uma joia cara, chorou elegantemente e não o acompanhou.
Dizem que lá na clínica, ele desenha arco-íris e chora muito em noites de chuva e ri como um monge quando tem luar.
A família paga pelos cuidados e lamenta pelo homem, vítima de um estado depressivo, assim dão nome à linguagem que não entendem.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

os CANSADOS - por Vinícius Linné


— Whisky?
— Não, obrigado.
— Cigarro?
— Você sabe que eu não fumo.
— Pois devia. Eu mesma não sei o que faria de mim sem o cigarro. O cigarro é capaz de justificar toda uma existência, sabia? O que você faz para se entregar ao beato momento de ser? De estar sendo? De se deixar em uma praça, em uma janela, à porta de um desses modernos edifícios? Sim, porque eu fumo. E ninguém questiona então. Eu  posso parar e olhar a vida, pensar em mim mesma, viver a glória passageira do momento... E minha desculpa é fumar. Qual a sua?
— Viver?
— Não. Não é uma boa desculpa. Eu posso dizer “estou fumando”, caso me chamem. Você pode dizer “estou vivendo”?
— Creio que não. Não sem soar feito um louco.
— Ah, a loucura é uma desculpa melhor. Lembre-se disso, querido.
— Engraçado você dizer isso.
— Por quê? Você não parece ser do tipo que acha a loucura engraçada. Não. Você parece ser daquelas que a levam muito a sério.
— E sou. Mas é engraçado porque, antes de eu conhecê-la, disseram-me assim: A essa não se conhece sem enlouquecer.
— E estavam certos?
— Completamente.
— Que bom, então. Já que não lhe contamino com meu vício, ao menos com a loucura então. De algum jeito é preciso para suportar.
— Eu sei. Tenho lembrado muito de você.
— Ainda com aquele trabalho? Qual é mesmo o mote? Decodificar o que eu codifiquei sobre o divino?
— É, de certa forma é isso. Mas não é só por isso. É por uma frase. Uma daquela entrevista.
— Ah, antes não tivesse feito aquilo. Estou feia.
— Não está não.
— Af. Qual é a frase?
— “E só estou triste hoje porque estou cansada”.
— Ah, essa. Foi talvez a maior verdade que disse ali.
— Mesmo? Eu julgava que era uma mentira.
— E você ainda diz que me conhece? Que compartilha da minha loucura? Ah, não. Foi a verdade maior.
— Não entendo, então. Penso nela porque também estou triste. Mas finjo ser só cansaço. Como se cansaço fosse “só”.
— O que eu queria mesmo dizer, a essência mesmo, era que eu já não estava só triste. Estava era cansada de ser triste. Mas não falei. Seria demais pra quem visse. E há coisas das quais devemos poupar os olhos de quem nos vê.
— É... posso dizer que é o que eu sinto também.
— Pode, mas não devia. Você é muito novo para ter meu cansaço de ser triste. Ou minha loucura. Ou a fumaça do meu cigarro lhe cobrindo o rosto.
— Eu sei. Mas sinto tudo em excesso. E o excesso me castiga e machuca.
— Não quero falar sobre isso. Não hoje. E você também não devia. Vá lá com sua pequena, beba um whisky,  fume um cigarro, contorne a solidão e a crueldade de se sentir. Deixe-me só um pouco.
— Mas eu vim porque hoje...
— Não diga.
— Em todo caso, eu queria...
— Não queira. O homem é refém daquilo que quer. Não queira, querido.
— Bom... vou indo então.
— Faz bem.
— Antes disso, só... parabéns... Clarice.
— Obrigada, Vinícius.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

o CABELEIREIRO que não dorme - por Simone Huck

 (Imagem retirada do site espalhafactos.com)

Coloquei minha cabeça debaixo de suas mãos sonolentas e de sua tesoura afiada. Há três dias ele não dorme. Ontem me aproximei dos quarenta. Estamos todos envelhecendo. Resolvi assumir meus cabelos brancos. Na guerra monocromática que se instalou no topo do meu membro superior, o exército da paz, com suas bandeiras brancas, está vencendo o exército negro. Pela primeira vez desejei que o mal governasse com toda a alegria do preto. Um inevitável equívoco. Como tentar dormir, disse ele, enquanto cortava meus cabelos e me contava, em espanto, que há quatro dias não sabe o que é fechar os olhos. Aconteceu assim, subitamente. Num passe de mágica passou a nunca mais dormir. Num passa de mágica, perdi a bicicleta e estou próxima dos quarenta.

Seus olhos vermelhos denunciam a ausência do sono.
Meus cabelos brancos denunciam minha idade. 
Há sempre um inquilino reinvindicando a posse da nossa casa. 
Há sempre um impostor roubando ou o nosso sono, ou a nossa idade.

Tentei ser psicóloga de cabeleireiro nas duas horas que seguiram. Para todas as minhas perguntas ele respondeu "não". Não consome drogas. Não fuma. Não pratica sexo. Não tem namorada ou namorado. Não ingere bebidas alcóolicas. Mora com os pais. Está feliz no trabalho e não está em nenhum financiamento. Por um breve momento, acreditei que a privação disso tudo é a causa da inexistência de sono. Como alguém pode dormir assim? Que vida branca é essa? Eu não dormiria. E teria mais cabelos brancos.

Mesmo assim, insisti, e ele seguiu respondendo "não" para todas as demais perguntas que nem ouso citar. Não somos tão íntimos assim. Ele deve ser amigo apenas dos meus cabelos brancos que em suas mãos, se multiplicam. 
 
Ele tentou ser psicólogo de escritora nas duas horas que seguiram. Para quase todas as suas perguntas a minha resposta foi "não". Ainda pratico alguns problemas. Minha vida não é branca, só os meus cabelos. Talvez por isso, eu durma. Segui respondendo "não". Não somos tão íntimos assim. Sou cúmplice apenas dos seus olhos vermelhos. Em algumas noites, bebo goles da insônia herdada de um pai que não dorme quase nunca. Ainda estou no lucro. Apenas os cabelos brancos vencem.

Ansioso, ele buscava uma resposta. Tentei lhe convencer que tudo se tratava apenas de uma greve neural e que em breve as negociações cerebrais chegariam a um acordo e ele retomaria o sono. Há sempre uma guerra precisando de paz em algum lugar da gente. 
Ansiosa, eu buscava uma resposta. Ele tentou me convencer que cabelos brancos eram charmosos. Não conseguindo, mostrou a nova coleção de cores de tintura da Koleston, falou das luzes, do vermelho e até elogiou minha idade. No final, ousou dizer que uma mulher de cabelos brancos é charmosa. O sono faz a gente omitir. A ausência de sono, mentir. Ele não me convenceu. Eu não escolhi nenhuma cor. Ele seguia com sono. Eu seguia branca.

Debaixo de suas mãos sonolentas, meus cabelos forravam o chão. Parecia que só os pretos eram cortados enquanto os brancos, impunes, faziam greve de força sobre meu couro cabeludo.

Contra os neurônios e contra o tempo, não há remédio. Estamos todos fadados a não dormir na revelia das sinapses
ou a morrer no desgosto do sucesso frêmito dos tons de cinza.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

cASA - Por Dilma alencar


Hoje vi uma casa e desejei, depois de muito tempo, ter uma.
Chovia e você dançou na minha memória, com saia de cambraia e um terço de madeira lhe enfeitando o pulso, você ria e seus dentes molhados iam mastigando minhas loucuras diárias e derretendo o verde musguento das velhas casas do centro, nossos sapatos cheios de avenidas para navegar só sabiam ir em frente, só sabiam convergir.
O farol vermelho era arte, as gotinhas de chuva embaraçavam o olhar e o sal do rosto ardia na boca.
Uma casa velhinha, grade baixa, margaridas brancas e amarelas enfeitando a entrada e um banco de cimento do lado esquerdo.
Ela parecia cheia de história e silêncio. Eu a decoraria com meu desenredo de cores. Um sofá com qualquer cor gritante, um tapete amarelo, nada de televisão ou de computador.
Eu escreveria na parede da sala “o pastor amoroso”, do Caeiro.  Nos dias de fundura que engessam estrelas, eu abriria a janela de madeira velha e barulhenta, numa manhã de segunda e convidaria o amor para o desjejum.
Tanto já foi dito, perdemos o silêncio. Nos dias de hoje, você é uma memória dançando na chuva e já não dói.
Querer uma casa é uma novidade rachando o peito, e eu quase não falo o sorriso no canto da boca não explica nada do grito que vai tomando meus poros.
Nasceu uma luz. É um parto de uma princesa de fogo e água, aprendo a costurar meu vestido preto e meu discurso de céu. Você entenderia se eu dissesse que engoli uma estrela e estou grávida de mar? Ah, quanta vaidade lhe embuti no olhar, quanta estupidez de consumir paixões agressivas, eu envelheço e não há nada mais bonito que esse tempo.
Irresponsável da violência que atravessa dentes afiados e metáforas eróticas, vou seguindo  flutuante, ferindo a carne da ternura rala que o mundo cospe. Limpo as mãos no sereno e caio no abismo de um verbo cadenciado quebrando a esquina, vertendo luz néon. Volto descalça, o pé caçando pedra onde só tem asfalto, as mãos insanas querendo afeto onde reside cio e força.
Talvez  essa casa velha onde eu quero morar, quem sabe seja a morada que abrigue o espírito solto que sai em noites de lua.
A casa não terá relógios, quero uma velhice sã, ponteiros adoecem. O sereno cheira, a lua perfuma a casa. O centro velho abriga putas e velhos, crianças, mendigos. A casa velha vai abrigar meu cansaço dos dias de trovões anoitecendo antes das três da tarde.
De lá, vejo os bares ao redor, a banca de jornal na esquina, os olhares amarelando no ponto, nas faixas, nos carros, nos cintos do motorista, dos passageiros. Eu vou fechar a janela quando a solidão doer nos olhos, os poucos amigos serão bem vindos e os receberei de braços abertos, eu quero uma criança colorindo o chão com tinta guache e giz, quero uma lousa na parede da varanda, mas por enquanto só tenho coragem de pensar na casa, nela não entrarão cartas amarelas, nem livros úteis, quero a inutilidade dos haicais do Leminski, das cartas do Rilke, quero xícaras bonitas, xícaras são muito importantes. Quero lavar a louça da pia olhando o quintal, tomara que essa casa tenha mais essa janela, vou reunir pessoas generosas a tal ponto que eu consiga lhes verbalizar minhas fraquezas, meu medo de sangue, de agulha. Quero amenizar as vaidades de querer dizer imperativos. Eu quero ter amor nas mãos e sorriso nos lábios.
Quero ser simples, minguar essas lágrimas, ter braços ainda, ter fôlego para sorrir à vida. 
O soluço do sol, o soluço me acordando em enchente de olhar. A casa vai flutuar de paz e o pó dos móveis vai brilhar como lantejoulas , quando de novo a serenidade que fugiu me fizer entender que essas feridas são estrelas , que essa cisma é só linguagem e a minha solidão é - antes de tudo –minha.
Vou rasgar as roupas velhas e nascer de novo numa casa velha e florida, perto de um cabaré no centro velho de uma cidade qualquer.
Se eu beber sozinha no chão da sala e maldizer as flores murchas, escrever uma poesia dionisíaca com giz vermelho, há de chover.
O amor vai nascer perto das margaridas, eu sei. Sei que não pode ser menos que isso. A casa não merece nada aquém, ela espera o amor para a magia do sangue pulsar.
Os papéis e as poesias ficarão acanhados de tanto mar, a casa vai navegar todos os mares e ver toda arte, toda a riqueza das plantas que crescem, todo o milagre das mulheres que engravidam, das mulheres que amam uma a outra, a casa vai conhecer o mundo exatamente ali, no centro nervoso de uma cidade desalmada.
A casa vai transbordar.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

OBSESSÃO - Por Vinícius Linné


Ele era louco. Completamente.

Você acredita que ele colecionava fotos minhas? Isso mesmo. Não, não só essas duas ou três que saíram nos jornais. Fotos tiradas em todos os lugares. Na minha casa, no mercado, na livraria do shopping, na praia. Em todo lugar que eu estive, ele me fotografou. E isso faz mais de ano. Tem foto de quando eu ainda usava cabelo comprido. Você lembra?

E isso não é tudo. Quando ele me levou até o porão da casa dele, encontrei ainda papéis e mais papéis com a minha letra. Recibos antigos, notas fiscais que eu assinei, listas de compra de supermercado... até o caderno de receitas que eu tinha perdido estava lá!

As tarraxas de brinco, os copos quebrados, os vidros de esmalte, os palitos de picolé, o salto do sapato que eu quebrei no ano passado, o cobertor que doei para a campanha de agasalho, os jornais velhos, os guardanapos marcados de batom, o espelho de mão que ganhei da minha falecida avó, a asa de uma das xícaras azuis, o cadarço dos meus tênis de corrida, as calcinhas que sumiram do varal, a santa de cabeça quebrada, as luzinhas do natal passado e o cachorro que fugiu de casa. Tudo trancado naquele porão. Horrível.

E ele me mostrou com orgulho. E se disse apaixonado. Apaixonado. Acredita? Eu o rejeitei, lógico que o rejeitei. Ele não estava apaixonado, estava doente! Eu devia era procurar a polícia. A polícia!

Não. Eu não fiz isso. Eu não chamei ninguém. Eu não contei o que vi... Eu só passei a evitá-lo. Sempre. Eu já quase não saía mais de casa. Não atendia mais o telefone. Passei a entregar as sacolas de lixo nas mãos do lixeiro. Eu não conseguia mais viver minha vida. O tempo inteiro eu tinha a impressão de estar sendo vigiada. E então eu o vigiava. Eu ficava escondida atrás da cortina, espiando, esperando qualquer movimento. Esperando o momento em que ele atravessasse o meu portão com uma faca enorme nas mãos. Eu já não dormia, só olhando as luzes da casa dele. Sempre acesas. Eu ficava pensando no que ele estaria fazendo. Será que comia pensando em mim? Será que vigiava minha casa? Será que – Deus me livre – se masturbava no porão olhando as minhas fotos? Ele era louco.

Até que chegou o dia em que ele finalmente agiu.

Ele começou a sair de casa com caixas e mais caixas, deixando todas no meio fio. Eu sabia o que tinha dentro delas. Eu reconhecia as fotos derramando de lá. Eu podia ver a trilha de coisas que ele perdia pelo caminho. As minhas coisas. As coisas que ele, louco, roubara dos meus restos.

Ele botou tudo lá na calçada e deixou.

Eu suava.

O que ele estava planejando? Por que essa novidade agora? O que ele queria?

Nenhuma resposta... Ele saiu e nenhum movimento foi feito. Eu passei o dia inteiro ali. O dia inteiro esperando. Quando anoitecia, passou o caminhão do lixo e recolheu todas as caixas. Então era esse o plano? Era isso? Ele estava se livrando das provas todas de sua loucura? Qual seria o próximo passo? Vir atrás de mim? E como eu provaria então que ele era um louco? Eu deveria ter chamado a polícia. Você não acha? Mas eu não chamei. E daí veio o pior.

Agora eu já não podia sair de casa. Não podia comer. Não podia dormir. Se eu deixasse a janela por um minuto, um minutinho sequer... Só Deus sabe o que ele faria. Não é? Ele tinha limpado o terreno. Eu era presa fácil. Eu estava completamente perdida.

E ele passou a sumir. Sumir por longos períodos. Geralmente à noite. Às vezes ele sequer dormia em casa. O que estava tramando? Teria sido melhor se eu não descobrisse. Um dia eu ousei. Saí na mesma hora que ele. Saí decidida a terminar com aquilo, resolvida a ser morta ali mesmo se precisasse, tinha cansado daquela tortura.

Ele me cumprimentou como cumprimentaria qualquer vizinha.

Deu ‘Oi’, sorriu e seguiu apressado.

Fiquei lá, parada, pateta, lívida e viva. Naquela mesma noite, quando ele voltou, trazia consigo uma moça. Eu quis fazer alguma coisa, quis gritar, quis defendê-la, quis avisá-la da loucura dele. Não consegui.

Mas ele não fez nada com ela. 

Nada de mal.

E ela continuou vindo. Então era isso? Então ele se livrara de todas as minhas coisas porque arrumara alguém? Arrumara uma namorada? Ele era louco! Desfizera-se de tudo que juntara com amor e risco... Não era justo.

Comecei, então, a deixar minhas coisas na varanda dele. Minhas calcinhas, o trinco da porta, o meu travesseiro, um álbum inteirinho de fotos... No começo ele devolvia. Colocava tudo de volta na minha porta. Porém, como eu colocava de volta na varanda dele – louco – ele passou a colocar as coisas na lixeira, direto.

Então ele não era mais obcecado por mim? Não mais?

Um dia quebrei uma das janelas dos fundos e entrei na casa dele. Esperei por ele no quarto. Nua. Ele não voltou naquela noite. Nem na seguinte. Nem na outra. Quando, finalmente, ele voltou, estava acompanhado daquela puta. De novo aquela puta, com aquela cara de sonsa. Era demais. Era demais pra mim. Ele era louco. Era louco de me trocar por ela.

Antes que ele pudesse fazer qualquer coisa, eu havia enfiado a tesoura bem fundo naquela barriga de vaca dela.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

as PERAS também esPERAm - por Simone Huck

Sei que vou morrer antes de você chegar. Já se passaram tantos anos. Ainda espero. Ontem a noite, mais uma vez, fechei os olhos e seus passos pesados invadiram o assoalho da sala. Só os seus passos fazem a madeira ranger assim. Você tem um jeito pesado de andar.

Na geladeira, peras maduras esperam pela sua boca. Sei que será a minha, mais uma vez, a comê-las no seu lugar. Eu não desisto, nem as peras desistem de você. Nossas bocas confundem qualquer tipo de fruta. Outro dia abri a geladeira, coloquei todas as peras enfileiradas na mesa e fiquei falando de você. Agora as peras sabem exatamente o gosto da sua língua, o som da sua voz, o doce do seu hálito. Esperamos com avidez que a sua boca adentre a casa e a geladeira. Todos nós sabemos que você jamais chegará antes de morrermos. As peras morrerão antes de mim. Há uma certa ordem no caos da morte.

Ontem de manhã choveu. A chuva molhou o jardim. Peguei um pano e fiquei secando as flores. Ousei secar a chuva enquanto te esperava chegar. Sou pretérito perfeito que aguarda. Falei de você para o jardim. As flores brigaram comigo, não aprovaram minha honesta espera. Disseram que fidelidade tem prescrição, validade e durabilidade. Não entendi nenhuma dessas três palavras quando se trata de você. Nada disso se aplica a você. Muitas coisas não se aplicam a você.

Pintei outro quadro essa tarde. Ficou tão bonito. É colorido e denso como você. Espesso, grosso, com nuances opacas e gêmeas. Há pedaços seus tão iguais no mesmo lugar. Há pedaços tão distintos. Mistura de branco e preto. Tudo e nada.
Quando terminei, coloquei o quadro pintado de frente pra sua fotografia. Apresentei vocês dois. O quadro, denso, espesso e grosso, gostou da sua imagem no papel fotográfico. Achou seus dentes bonitos, seus olhos tristes, sua pele azul. Entendeu porque sempre vou amar e esperar você, que jamais chegará, nós sabemos. Já a sua fotografia olhou pro quadro com um certo ciúmes. Você nunca gostou de nada que pudesse dividir minha dedicação. Achou o quadro colorido demais, denso demais, grosso demais e virou as costas. Você virou as costas na fotografia e só resolveu olhar pra trás se eu prometesse moldurar o quadro e colocá-lo no porão da casa do meu pai. Nunca gostou dos moldes. Nem do porão da casa do meu pai. Nem de nada que pudesse te prender. Você nasceu livre. Talvez, ausente de tudo e em tudo. Você ainda não sabe quem é. Nem pra mim. Nem pra ninguém. Você nunca esteve em nada. Nunca esteve aqui. Sempre soubemos.

Sei que vou morrer antes de você chegar.
Ontem à noite, antes de dormir, descobri uma música nova na rádio da Palestina. Estamos todos em infinitas guerras. As estações do rádio, a Palestina, eu e você. Sorri e fiquei ouvindo, repetindo, repetindo, repetindo aquele novo som até dormir. Você teria gostado tanto de ouvir essa música nos meus fones de ouvido. A Palestina talvez dormiria em paz assim. 

Antes de apagar a luz, subi na escada e beijei a lâmpada quente do teto do quarto. Parece que a sua imagem está ali dentro daquela lâmpada, querendo atravessar com sua lança, o raio de luz. Você se parece tanto com a imagem de São Jorge, seu protetor.

Somos apenas imagens. Estados gasosos que serão dissipados pela urgência da espera.

Acenda a luz quando você chegar...

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Suéteres amarelos - por Dilma Alencar.


As mãos brancas e enrugadas teciam um suéter amarelo, no sofá, ao lado da janela em que o dia se abria quente, ela pensava com doçura na chegada de seu par.
Nesse dia, acordou antes das seis, olhou a pia: um prato, um copo, uma colher, era o retrato da noite passada. Lavou a louça, engoliu seu comprimido branco, tomou leite morno e agora tecia a possibilidade vã de um encontro.
A senhora vivia com vigor a cara solidão que alargava os móveis, quadros, livros, às vezes se sentia acuada diante daqueles objetos que cresciam em seu silêncio.
Acordou com um gosto de vento de chuva na língua. A mulher habitava a casa como um bicho arisco, como alguém que quer estar nu, como quem precisa da crueza das respostas em tudo que elas ovulam, fermentam, fincam.
Os anos marcaram sua pele branca, só os olhos fuzilavam de brandura, de mar, de horizontes, quem quer que os fitasse por alguns segundos.
Uma alma em arco-íris talhada no silêncio de uma vida de paixões que a eternizaram.
Nas paredes de sua casa, as fotografias sorriam o visgo dos encontros, das festas, dos sacralizados gozos efêmeros.
Ela abriu a porta da cozinha, no quintal suas flores bem cuidadas coloriam, com graça e cheiro, a manhã.  A laranjeira, molhada da forte chuva da noite, exalava calma e frescor.
A senhora se sentou no chão da cozinha, colocou o suéter, a linha e a agulha sob a cadeira de madeira que às vezes se sentava para esperar um pássaro cantar.
Tirou suas meias brancas e foi até o quintal, pisou na terra fofa que cobria as raízes da laranjeira, segurava os galhos mais grossos da planta e afundava os pés na terra molhada, sentindo uma unção nesse instante absurdo.
Sentiu por uns minutos um pertencimento e fincava cada vez mais o pé na terra, até sentir com nojo e espanto uma minhoca magra e cumprida entre seus dedos.
O nojo assustou a mulher, mas seu sentimento de nojo era o de quem já equilibra os próprios demônios e sabe reconhecer deus rente ao horizonte ou sob seus pés de pele fina e bem cuidada.
Ela se despiu, regulou o chuveiro, quis água fria.  Depois que água e terra desceram pelo ralo, ela parou de repente, um barulho oco e pesado veio da cozinha.
Viu a sua santa Luzia transformada em 21 cacos, perto da mesa.
Limpa da terra e da primeira saudade do dia, agora faria pão, coaria café e voltaria a tecer o suéter inacabado que deixara sob a cadeira.
Vinte anos, exatamente vinte anos repetindo uma espera vã. A morte nunca lhe responderia, ela logo morreria com suas memórias e os inumeráveis suéteres amarelos que ocupavam seu guarda-roupa e seu colo.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

eMIGRATIVA - por Vinícius Linné


Logo ela, a mais livrinha de todas nós, acordou um dia aprisionada. Foi assim, com susto: ela abriu os olhos e tudo era feito de escuridão. Abriu-os e piscou muitas, muitas vezes, porque tinha a impressão de que não os tinha mesmo abertos. E então, ainda precisou tocá-los para ter certeza. Só quando a ponta do dedo encostou no gelatinoso do olho, deixando nele uma digital nítida (para quem?), ela pôde saber que sim, estava mesmo de pálpebras arregaladas. Então o quê? Então de onde escuridão tamanha?

Era diferente. Era muito diferente das escuridões às quais estava acostumada. Tanto as reais, quanto as metafóricas. Não se via ponto de luz sequer, não se viam silhuetas, não se viam as coisas, simplesmente.

Onde estava ela?

Tentou lembrar da noite passada. Mas lhe parecia, fortemente, que tinha deitado em sua mesma cama de sempre. Estaria na cama? Não. Não porque tocava agora o chão e o descobria – com horror – orgânico.
O chão tinha a textura do que vive.

Tocou de novo, cheirou a mão. Um cheiro familiar e forte. Cheiro que lembrava os dias na fazenda, o sol lhe invadindo toda. E o pai, o pai assassinando uma vaca inteira, enfiando a faca na garganta e se cobrindo com o sangue dela. Era esse o cheiro. Apurou os ouvidos, como se fosse necessário, e então ela soube. Então ela lembrou. Lembrou da noite anterior, do colega desastrado e novo e feio. E lembrou de ele ter lhe ajudado a procurar um livro na biblioteca. E de como ele disse que ela cheirava a anis. E do quanto ela achou aquilo uma mentira. E do cheiro persistente e rançoso que ele próprio trazia, cheiro de vinho, amontillado.

Não! Não era possível.

Mas era a única explicação... Tocou novamente o chão. A mesma sensação de antes. Tocou a própria roupa e a sentiu coberta por um líquido espesso, viscoso. Passou os dedos pelos cabelos e eles já eram uma maçaroca de fluídos, fios e coagulação. Lembrou com horror das ilustrações daquele livro antigo. Aquele que ela tinha até medo de ler quando era menina. O único que ela detestava genuinamente: O Barba Azul. Lembrou da figura das mulheres, seus corpos no chão, alguns decapitados, o sangue tomando o aposento, o pânico da chave caída ali.

Chave!

Teria uma chave? Uma porta de saída? Se pôs de quatro a tatear no escuro, resistindo ao medo e ânsia que tinha de tudo que é vivo. Até bater, a poucos passos, em uma parede igualmente negra e orgânica. E assim fez, até se descobrir cercada. Não havia chave. Sequer havia porta.

Claustrofobia.

Ela precisava sair. Ela não fora feita para os espaços fechados, mas para as grandes vastidões. Assim gostava de pensar, mas era bem mesmo outra mentira. Nunca havia saído da própria vida, por exemplo. Ela mesma era uma prisão móvel. E estava em outra. Sim, as paredes se movimentavam. Entre golpes e silêncios, solavancos violentos a jogavam de um lado para o outro.

Precisava sair. Tinha que haver uma rota de fuga. Mas então onde? Por onde sairia do inóspito e imprevisível deserto em que se enfiara? Haveria ainda salvação? Ou seria esmagada até morrer?

Morte.

Em toda sua vida a solução passara pela morte. Em sua mente já havia acabado com a vida de mil maneiras diferentes. Mas era covardezinha. E se privava de tudo. Das experiências melhores até. Pela primeira vez considerou porém, entre um solavanco e outro, mais seriamente a alternativa. Mas como ali? Não havia nada. Nada com que se enforcar, nada para perfurar o peito, nada para beber e morrer envenenada. Seria ela obrigada a roer a carne dos pulsos? Seria assim?

Vomitou.

Se ao menos pudesse saber onde estava. Se ao menos alguém a pudesse ouvi-la e vir resgatá-la como sempre faziam. Mas ninguém vinha. E as paredes continuavam, aceleradas, ensurdecendo, subindo e descendo. “Por Deus”, ela queria dizer, mas já enchia a boca de vômito novo.

E de repente a resposta. De repente um barulho abafado de voz. Irreconhecível.

Da primeira vez ela não entendeu o que ele dizia. Vinha muito de dentro de si mesma aquele som. Da segunda, preparada, atentou melhor. E levou alguns segundos para, horrorizada, compreender. Era ele, o feio da noite, que em um arroubo de escritor cafona e tosco, repetia assim:

— Ela agora mora no meu peito, bem dentro do coração.

 F I M
* * * ou * * *

Coração. Coração. Coração.

Por isso a cápsula orgânica. Por isso o sangue. Por isso o cheiro de vaca morta.

Por isso a falta de chave e porta. Coração. 

Mas se ela estava dentro de um, então viria o sufocamento com o sangue. Ela se afogaria nas hemácias (quem sabe doentes) de um homem feio. Sim, sufocaria. A menos que... a menos que usasse unhas e dentes. A menos que corroesse aquele peito para sair dele. Logo ela, logo ela que por tantas vezes desejou essa prisão, só que em outros corpos. Corpos de homens não feios. Logo ela que sempre quis pertencer assim, que sempre tentou e não coube. Mas não era hora de pensar. Esqueceu todo resto. Começou. Arranhão por arranhão, bocada por bocada, a destruir o músculo que formava sua prisão.

Era inútil.

A cada pedaço arrancado, ficavam mais duras as paredes, pulsava mais o peito e fazia entrar mais sangue ali. De repente uma lufada de ar fresco. Um ponto de luz. Estaria salva? Teria uma faca assassina rompido sua prisão?

Os dois enfermeiros lutaram para lhe tirar da boca a espuma que forrava as paredes do quarto. E então veio o médico, com outra injeção, e tudo escureceu outra vez.

 F I M
* * * ou * * *


Mas ainda pulsava.

Ainda pulsava o coração do homem feio com ela lá dentro.


 F I M

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

um VERMELHO que não é sangue, nem quente, nem frio - por Simone Huck

-->"Prisioneiros vermelhos", 2011 - Simone Huck

Grito acentos. Perpetuo pontos. Gozo exclamadas interrogações que quase nunca sei - seria vermelha a dúvida que sangra?
Compulsivamente, minha pele queima a fala, a febre, os poros empoeirados que este dia tentou de todas as formas anular. Ilusório. É meu ofício escrever, mesmo que seja quase dezembro.
Danço na reticência da dúvida que não descansa. Quando acabam os significados, a pausa renova o verbo e os versos, as histórias e as verdades. Recomeço, mesmo que seja amanhã, dezembro - um receio vermelho começou a invadir a cidade.

[Objeções.
Pluralidades. 
PALAVRA É ATO. 
ESCREVER É ABRIGO.
HABITO (hábito).]

Deito a cabeça no travesseiro. Fecho os olhos e acendo intenções. Estamos todos repletos delas, mesmo que tenham um alto preço, senhorita doutora. Dezembro nos esmagará.
Já decoramos a casa, a fala, o rascunho e a pretensão. Amanheço escarrando acentos que não engoli de algumas frases que piscaram na sua árvore de natal. Falo e escuto o eco da minha própria palavra no parapeito da minha língua que pergunta - uma intenção vermelha começou a invadir nossos olhos. Dezembro me espera.

[não hospeda.]

terça-feira, 20 de novembro de 2012

pODE ACONTECER - Por Dilma Alencar.


Pode acontecer
Pode acontecer de quando eu atravessar a avenida de sempre você aparecer com cara de quem não dormiu, me cumprimentar e a conversa acontecer sobre a espera dos ônibus, ou sobre porque o metrô não funciona 24 horas.
Quem sabe, ouvir você tocar naquele bar que eu frequento, me aproximar e lhe dizer que aquela música do Cartola é tão cortante quanto um fado.
Num intervalo entre uma dança e outra, na hora de pegar mais um drinque, eu pise no seu pé, você me xingue, eu ache graça e isso vire conversa com risos e desculpas, quem sabe se nas mesas do lado de fora, se você não aparece e me pede um isqueiro.
Nas longas tardes de uma quarta improvável, naquela sessão vazia do cinesesc, notarmos que não há mais ninguém e talvez sorrirmos ao vazio da sala.
Nesses intervalos de solidão que nos põem serenos.
Quando entre os corredores do mercado, você me oferecer uma cestinha porque meu chocolate, papel toalha, esmaltes e café já não cabem em minhas mãos.
Com impulso natural você me fala do aumento dos produtos de limpeza.
De repente uma conversa sobre cactos ou sobre animais marinhos, ou não saber nada que nos coloque em contato e achar lindo o seu olhar de inverno, seu jeito displicente de acender um cigarro. As cores extravagantes de suas meias.
Pode acontecer até no duro breu do mês de dezembro. Numa tarde de vento gelado na pinacoteca, olhando o parque da luz, vendo os velhos encolherem suas memórias desejando estar entre coxas das meninas de cabelos secos e olhar e carne duros.
Vendo a vida escorrer no calendário, entre um feriado e outro, desejar o que pode ainda acontecer.
Numa feira de sábado, na barraca do pastel, escolhendo aipim, ou enquanto eu demoro sentindo o cheiro de terra molhada na banca de couve, rúcula, cebolinha verde, escarola.
No abrir do zíper, dos botões da sua blusa, numa tatuagem na nuca, no susto, no beco, na curva do deslize.
Nesses dias tensos de sangue escorrendo na rua, no caminho até a padaria, quem sabe na fila para assistir àquela peça anônima, naquele teatro amador da Roosevelt.
Pode acontecer durante seu sono, enquanto eu vejo estrelas no teto, pode acontecer enquanto sua mão passeia pela minha nuca e seu olhar interroga meu passado, ou quando uma estrela cadente dançar no seu olhar , quando você finalmente conhecer aquele conto mágico, do Rubem Braga, ou durante aquele papo sobre os chacras da criatividade.
De repente enquanto leio, no parque de sempre, deixando o sol esquentar as roupas curtas, o vento jogar flor no corpo cansado.
Pode acontecer quando eu acordar  querendo ficar mais uma noite, ou num susto descobrir que sei seu número de cor, pode acontecer de você gostar de meus olhares descarados em ambientes sérios, e de também não gostar desses ambientes chatos e protocolares.
Nos coletivos, todos estão conectados demais para algum suor, saliva, poucos inspiram flores, me afundo em grandes projetos para o dia, acordar cedo para brincar no parque e ver uma lagarta amarela é o mais brilhante deles, o resto é papel e risco.
Caminhar pelas ruas na comunhão com o caos, aliviar íngua no samba de todo sábado, sangrar com Bach ao ouvido e sentir a tontura de ver as cores explodirem nas avenidas entupidas de tédio e pressa.
Em todos os lugares acontece.