quarta-feira, 3 de agosto de 2016

aMOXICILINA + cLAVULANATO DE POTÁSSIO - por V. Linné

37.

Febre. Todas as noites. Uma infecção de lugar nenhum. A médica a apalpar gânglios e glândulas. Nada. Talvez sejam as amídalas, ela arrisca. Talvez.

Amoxicilina + Clavulanato de potássio.
1 cp de 12 em 12 h.

A Amoxicilina é pó cristalino, branco, de massa molecular 419,45 (isso é muito importante, me parece), levemente solúvel em água, álcool metílico e álcool etílico; praticamente insolúvel em tetracloreto de carbono, clorofórmio, éter e óleos fixos (para o caso de você tentar dissolver os comprimidos em clorofórmio e não dar certo). Por ser um antibiótico beta-lactâmico (e não tetra-lacônico ou hepta-lacaniano), atua destruindo (microscópicas explosões dentro de mim!) a parede (demolições) das células bacterianas, pois se une a uma grande variedade de proteínas responsáveis pela síntese de enzimas que alimentam bactérias infecciosas, deixando-as sem ação (petrificadas, mudas, hirtas, boquiabertas com o assassinato em massa, o genocídio espectral que, de repente, começa, graças a algo com massa molecular 419,45 e praticamente, praticamente, indissolúvel em clorofórmio).

O Ácido clavulânico (utilizado farmaceuticamente na sua forma de sal de potássio, chamado de clavulanato de potássio) é um fármaco que age inibindo a ação das beta-lactamases (não das hexa-Larousses, óbvio) que são enzimas responsáveis pela perda de ação de algumas classes de antibióticos. O ácido clavulânico acaba funcionando como um agente protetor do antibiótico (benditos escudeiros, dentro de mim, Sanchos Panças em batalha), protegendo-o do ataque da bactéria resistente aos antibióticos. Trata-se de uma associação medicamentosa que propicia uma ação combinada para combater bactérias patogênicas resistentes (elas resistem. É dura a batalha).

38.

A bactéria atacada pela amoxicilina.
A bactéria tentando atacar a amoxicilina.
O clavulanato, galante,
impedindo os ataques do segundo tipo.
Tudo dentro de mim.
Os corpos,
numa trilha de pus,
boiam
em lugar nenhum.
Dentro de mim.

Não eram as amídalas então.

39.

Meu sangue é vermelho e grosso, como um bom sangue deve ser. Ele escorre para fora das veias com pressa e se não fosse o algodão que a enfermeira rapidamente aplica sobre o buraco aberto pela agulha, tenho certeza de que ele escorreria todo, empapando o chão do hospital. Ele é ansioso. Ele quer ver mundo, ele mal se contém nos muitos tubos de ensaio. Ele não é um sangue que queira ser esmiuçado, examinado, lido nas palavras científicas dos homens de bem e de branco. É um sangue propenso a tragédias o meu. Quer escorrer de preferência na rua. E aparecer no jornal.

40.

Em uma semana os exames ficam todos prontos. Como se eles adiantassem. Como se a febre não subisse, a me devorar. Toda ela vinda de lugar nenhum. É quando eu perco mais três quilos. São quase dez já. É quando eu tenho, também, uma ameaça de convulsão.

Os exames são mapas astrais. Só os iniciados sabem decifrá-los. A médica mergulha neles, traça linhas, desenha retas, tira e coloca os óculos muitas vezes, como se isso lhe ajudasse a pensar. Ela emite grunhidos de entendimento. Ela quer me dizer alguma coisa. Qualquer coisa. Eu leio em seus olhos, ora com óculos, ora sem, que ela ficaria feliz de me anunciar até qualquer morte prematura. Um câncer, quem sabe. Qualquer tentativa de me diagnosticar, de me conter, de me explicar.

Mas meu sangue é feito para mais do que isso. Ele não me revela fácil assim. Ele me pulsa forte nas veias quando escuta que os exames não mostram doença alguma. Apenas, quem sabe, um princípio de anemia.

41.

ERITOGRAMA
                                 RESULTADO            VALOR DE REFERÊNCIA
HEMÁCIAS.........:  4,45 mi./mm³    4,1 a 5,7 mi./mm³
HEMOGLOBINA......:  13,20 g/dL      13,5 a 17,5 g/Dl
HEMATÓCRITO......:  40,00           38,00 a 50,0 %
VOL. GLOB. MÉDIA.:  89,89 fL        80,00 a 95,00 fL
HEM. GLOB. MÉDIA.:  29,66 pg        26,0 a 34,0 pg
C.H. GLOB. MÉDIA.:  33,00 g/dL      31,0 a 36,0 g/dL

42.

A hemoglobina (frequentemente abreviada como Hb (o que, para mim, faz muito sentido)) é uma metaloproteína que contém ferro (indispensável em qualquer guerra) presente nos glóbulos vermelhos (eritrócitos, caso você os conheça somente assim) e que permite o transporte de oxigênio (tudo respira) pelo sistema circulatório. Composta de 4 moléculas proteicas de estrutura terciária e 4 grupamentos heme que contém o ferro, cada íon ferro é capaz de se ligar frouxamente (com descompromisso, em um relacionamento apenas casual) a dois átomos de oxigênio, um para cada molécula de hemoglobina. (As minhas se descontrolaram então. Não há moléculas suficientes. Sobra oxigênio perdido. Ele não é levado para lugar nenhum. É nesse lugar nenhum que me inflamou algo, algo que nem a médica, nem os exames sabem dizer).

43.

Mas eu sei. Com a febre em 43 graus eu sei como chegar lá. É passando pelo buraco da Alice no muro. É atravessando o caos das cidades desertas, todas elas explodidas na última hecatombe. É seguindo pela devastação, pelo verde que agora violenta os prédios, os shoppings, as lojas onde manequins de marca se atolam no inço bonito e florescente. Eu sei. Eu sei atravessar as ruas desertas, olhando o céu com o mesmo verde pálido que ele tem desde que quase tudo morreu. Eu sei olhar os cervos de duas cabeças, bebendo nos lagos amarelados, sem me enregelar, fazendo até carinho no focinho dócil e dando a morder a outra mão por aquele que parece vindo do Hades.

Mas eu sei. Sei cruzar sobre corpos, desatolar minhas botas Sandro Moscoloni dos crânios putrefatos, arrancando brincos de pérolas do solado, como se fossem tachinhas sem importância e não o presente que Ludmila ganhou em sua festa de 15 anos no Gran Palazzo. Eu conheço o mapa, a rota. Pela primeira vez, eu, que sou todo desorientação, sei para onde ir. Sei de onde vem a inflamação, a febre, o ladrão de Hemoglobina que vive dentro de mim.  Sei onde fica aquela casa. A de quartos trancados, de paredes mofadas, de janelas lacradas e de café ainda frio, vertendo, em movimento eterno, de cima da pia. Eu sei que as samambaias, as mesmas que jogamos fora, renascem no lixo, indomadas.


Mas eu sei. Eu sei porque quando vou chegando perto ouço a música tocar. Um blues ainda mais triste só porque contrasta com as gargalhadas das outras duas. Sentadas em suas malas, dentro de mim, elas me esperam chegar para quebrarmos a porta da casa. Perdemos as chaves, todos os três. Mas elas me esperam e riem. Esperam e me abraçam tanto quando eu chego, que me sinto enfim amado. Amado pelo que eu sou: letras apenas. Letras aqui. E então eu compreendo que não há clavulanato nem amoxicilina que me sarem. Não há hemoglobina que me defina. Para a minha doença não há nem causa, nem cura.

Há a febre.
E ela é crônica.


Estamos de volta.

4 comentários:

  1. Com mil hemácias, Batman! Que texto é esse?
    Eu adorei muito mesmo de verdade.
    Uma hemorragia de sacadas geniais, uma atrás da outra, li dum fôlego só. (Queria saber escrever assim.)
    Retorno fabuloso, meninos.
    Olha. Vou te contar.

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    1. Pura inspiração envenenando o sangue.
      Que bom tê-la de volta conosco. ;)

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  2. As letras. Somente as letras. Formando rios de palavras. Rios de palavras são como nossas células "serial killers". Aqui, vezes nos salvam, vezes nos matam.

    Sinto cheiro de café pela casa.
    Uma janela foi quebrada.
    Há vida.

    Belo retorno.

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    1. Sempre, sempre por você. Graças a você!

      Meu obrigado. Sempre também.

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