quarta-feira, 10 de agosto de 2016

eLE - por Adilma Secundo Alencar


Ele é de lá, eu sei que seu silêncio também é saudade. Sessenta e nove anos vivendo sobre as mesmas pedras cicatriza de algum jeito uma arquitetura de carne: amor, filhos nascendo, filhos indo embora. A promessa que fizera para sua mãe fora cumprida, nunca abandonaria sua terra enquanto ela vivesse, ela se foi no dia de seu aniversário, doze de outubro é mais que feriado, é aniversário dele, que não quer mais música alta nem bebidas nesse dia. Ele é diferente de seus irmãos, não veio para São Paulo ser metalúrgico na região do abc, ficou roçando a terra dos outros até comprar um pedaço de terra que chama de seu. Lá tem açude, a casa que ele nasceu, tem uma cisterna que na minha infância era lugar de brincar, foi lá que aprendi a dar nó no sisal e colocar na ponta de uma vara de caçutinga para capturar lagartixas. Ele me ensinou como enterrar manivas, me mostrou que fruta de incó é boi, boneca e comida, eu tive uma luva de couro para cortar mandacaru, antes de ler Vidas Secas eu sabia dos Fabianos, os sonhos de baleia eram sonhos de meu irmão que vivia no meio do mato procurando bicho, menos por fome do que por lazer.
Ele se atrapalha com as palavras, a televisão que ele tanto gosta nunca mostrou quem ele é, os nomes estrangeiros e os costumes urbanos não são seus, ele sabe o nome das aves que bebem água no açude, do nome das prensas, do forno e das formas de uma casa de farinha, ele sempre me traz esteiras de palha e novas havaianas quando volta lá de casa. Ele está aqui comigo, mas se agonia de saudade. O que fazer acordado antes das seis da manhã numa cidade toda alheia ao seu entendimento?
Se eu pudesse, para apaziguar sua saudade, eu lhe traria o som que o pneu de bicicleta faz em contato com a terra molhada, quando a gente desce uma ladeira sem apertar o freio, traria também o barulho dos pássaros de manhã, um sofrê cantando no galho de uma jurema, traria o brilho de uma enfieira de peixes recém pescados, sei que ele gostaria também de receber o cheiro do curral, o barulho do leite na lata de alumínio, os sons de seus filhos ainda pequenos, as tarde de tanto amor e silêncio com seu bem, o barulho do dominó na mesa ,entrecortado pelas vozes que há décadas lhe são amigas.Ele é uma fortaleza, lá, é dono dos seus olhos e pernas, dirige uma moto e sua própria vida, conhece cada árvore do itinerário de casa até a sua roça.Seu eu pudesse encurtaria as lonjuras entre aqui e lá.

5 comentários:

  1. Eu estava debaixo de uma árvore em Pernambuco, frente ao mar, quando me acomodei para ler seu texto. Lindo, lindo, LINDO. Suspiros ao fim, sempre.

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    1. Obrigada,Simone. É muita generosidade sua me deixar escrever aqui com vocês, estou feliz de voltarmos a escrever.

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  2. Já eu estou numa sala de informática, numa escola qualquer, perdido, alheio, sem que a TV me mostre também.
    Por um momento, porém, estou aí com você. Pelos sons, pelos cheiros, pelos nomes que nunca antes ouvi falar, mas que de repente, pela magia de um texto, me aparecem na frente, como se eu os conhecesse desde sempre.

    Obrigado pelo oásis do que me é alheio, quando o conhecido é puro dessabor.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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    1. Vinícius,obrigada pela leitura, eu admiro muito seus textos, é de uma beleza,ah,como eu sei do dessabor do ensino propedêutico que engessa a gente. Se tu souber como a gente melhorar esse cansaço que por vezes bate tão forte,me diz?!
      Um xero.

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