segunda-feira, 26 de setembro de 2016

mETADE de um hOMEM – por Simone Huck

"Metades", Santorini,  2014 - Simone Huck
O despertador toca. 5h25. Tem sono mas não há tempo. Nem de começar a dormir. Nem de terminar de dormir. Levanta. Escova metade dos dentes. Toma metade de um banho. Enxuga metade de um corpo. Veste metade de uma roupa. Mastiga metade de um pão com manteiga vencida. O eco da casa também é metade, sem língua, ressoando um constante afogamento das coisas.
Bate o cartão de ponto. 8h. Bate uma saudade antiga de fugir. Bate medo de mais um dia igual. Bate um tédio. Ditongos e hiatos para a nova turma se repetirão por anos e anos, sem nenhum encontro vocálico que realmente justifique sua vida. Seus dias são como bailarinas mancas que brincam com demônios. De sapatilhas, não adianta correr.
Sai para almoçar. 12h. Tem fome de tudo que nunca comeu. Nem viu. Nem ouviu. Sede de oceano. Fome de solidão eterna. Vontade gritada de mastigar um silêncio e ali ficar, até secar e ser alguma outra coisa posterior ou anterior ao que é. Dentro dos restaurantes sua fome é outra.
Volta. 13h30. Volta pela mesma rua. Vê as mesmas casas. O mesmo trânsito. Os mesmos muros pichados agonizando mensagens sem sentido. O mesmo atraso. Os mesmos olhos cegos de todas as pessoas. O mesmo do mesmo.
Sai.18h. Amanhã voltará. Nada muda. Exaustiva repetição cada dia mais envelhecida. Percebe que já se acostumou a não chorar. Percebe que já se acostumou com o mofo dos meses.
Na solidão da sua casa, nu. 20h. Tira roupas e sapatos. Tira a dentadura. Tira a prótese de sua perna direita. Não fala, nem tomba. Tudo nunca lhe soou tão falso. Uma sensação de ser anterior às suas máscaras, sua real anatomia. É um homem que enxerga.
Apoiando-se em poucos móveis, arrasta-se até o espelho de moldura vermelha na parede do corredor. 20h30. Vê o reflexo de uma autobiografia manca e muda. Nada mais é verdade. É um homem em pedaços.
Na cama. 23h45. Observando a multidão de sombras no teto. Tenta fechar metade dos olhos. Sabe que não conseguirá dormir. A vida é um estado paliativo. Sem cura.


2 comentários:

  1. Aplaudo com minhas duas mãos. Não há meia admiração.
    Muito, muito bom.
    Caraca, muito bom.

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  2. Nossa.
    Esse texto foi um soco. Eu me encontrei demais nele. E justamente em um momento de confronto. Obrigado. Só digo isso.

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