"Metades", Santorini, 2014 - Simone Huck |
O
despertador toca. 5h25. Tem sono mas não há tempo. Nem de
começar a dormir. Nem de terminar de dormir. Levanta. Escova metade
dos dentes. Toma metade de um banho. Enxuga metade de um corpo. Veste
metade de uma roupa. Mastiga metade de um pão com manteiga vencida.
O eco da casa também é metade, sem língua, ressoando um constante
afogamento das coisas.
Bate o
cartão de ponto. 8h. Bate uma saudade antiga de fugir. Bate
medo de mais um dia igual. Bate um tédio. Ditongos e hiatos para a
nova turma se repetirão por anos e anos, sem nenhum encontro
vocálico que realmente justifique sua vida. Seus dias são como
bailarinas mancas que brincam com demônios. De sapatilhas, não
adianta correr.
Sai para
almoçar. 12h. Tem fome de tudo que nunca comeu. Nem viu. Nem
ouviu. Sede de oceano. Fome de solidão eterna. Vontade gritada de
mastigar um silêncio e ali ficar, até secar e ser alguma outra
coisa posterior ou anterior ao que é. Dentro dos restaurantes sua
fome é outra.
Volta.
13h30. Volta pela mesma rua. Vê as mesmas casas. O mesmo trânsito.
Os mesmos muros pichados agonizando mensagens sem sentido. O mesmo
atraso. Os mesmos olhos cegos de todas as pessoas. O mesmo do mesmo.
Sai.18h.
Amanhã voltará. Nada muda. Exaustiva repetição cada dia mais
envelhecida. Percebe que já se acostumou a não chorar. Percebe que
já se acostumou com o mofo dos meses.
Na solidão
da sua casa, nu. 20h. Tira roupas e sapatos. Tira a dentadura. Tira
a prótese de sua perna direita. Não fala, nem tomba. Tudo nunca lhe
soou tão falso. Uma sensação de ser anterior às suas máscaras, sua real anatomia. É um homem que enxerga.
Apoiando-se
em poucos móveis, arrasta-se até o espelho de moldura vermelha na
parede do corredor. 20h30. Vê o reflexo de uma autobiografia manca
e muda. Nada mais é verdade. É um homem em pedaços.
Na cama.
23h45. Observando a multidão de sombras no teto. Tenta fechar
metade dos olhos. Sabe que não conseguirá dormir. A vida é um estado
paliativo. Sem cura.
Aplaudo com minhas duas mãos. Não há meia admiração.
ResponderExcluirMuito, muito bom.
Caraca, muito bom.
Nossa.
ResponderExcluirEsse texto foi um soco. Eu me encontrei demais nele. E justamente em um momento de confronto. Obrigado. Só digo isso.