domingo, 18 de setembro de 2016

sà - por Adilma Secundo Alencar


É misticismo esse jeito de ordenar as palavras, é o jeito dela não morrer, Macabéa me veio do tamanho de um prédio na paulista quando li pela primeira o livro da hora da morte, (Eu sei que é da estrela, saibam que li). Quantas vezes foi nela que encontrei o jeito de fugir dessa cidade toda feita contra mim, toda minha de tão estrangeira que sou. Às vezes, na solidão do primeiro mês é dentro de um mundo de ficção que nos refugiamos. Há 50 anos não fazia tanto frio, foi assim que cheguei, na mala mais saias do que calças, mais sonhos do que certezas. Quanto tédio na hora do almoço, quanta vontade de ir embora eu afastei dentro de suas entranhas, dos seus abismos, da sua sintaxe de represa arrebentando cercas, do seu parágrafo estourando uma barragem. Da seca ao sumo de flores pisadas numa calçada na cidade de São Paulo. Clarice me apresentou a possibilidade de enfrentamento das horas periclitantes, resisti a vida de Ana, nunca fui comprar ovos numa sacola, o cego nos espreita em qualquer esquina.
As mulheres de Clarice são vulcões, G.H. numa fremente erupção me deu o pão. A literatura é meu lugar de descanso, na aversão aos meios, ao livro de ponto, ao livro didático, ela salva meu entendimento tão torto sobre os elos frágeis das relações.
No perigo d’As Horas, na envergadura velha dos moralismos coléricos, nas intermitências do cansaço diário, a faca só lâmina de João Cabral brilha, não a loucura e o pavor da vida, mas a luta, a lida, a caminhada severina de quem desabrochou na terra da garoa. Dentro de cada história, de cada leitura devorada na busca de comunhão, estou. A Sanidade está aquém, talvez tão fundo que desconfiemos de sua existência e quem está de fora nem sabe, mas há sentido na solidão dos livros, dentro de um livro saltam Diadorim, Casmurro, dentro de um livro eu vi mineirinho morrer, e eu também, porque quis sua morte e me senti segura. Eu morri com Macabéa e só assim pude viver fora do Nordeste.

Clarice me tirou o chão, só por isso me digo sã.

3 comentários:

  1. Refúgios e abrigos. Tão bom quando a leitura nos acolhe e nos compreende. Belo texto, Dona Adilma!

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  2. Já eu sou insano por essa mulher. Comecei a ler seu texto meio distraído, entre outros afazeres. Quando vi que dele me vinha Clarice, fechei tudo e deixei para outro momento. Um de mais foco, de pura concentração. Agora consegui. Que linda declaração de amor ao literário. Sinto o mesmo. Vivemos pelas histórias que lemos. E morremos por ela também.

    Sobre São Paulo, ela me enche de vontade. Nunca estive nem perto, mas alguma coisa em mim vibra por ela. Mais do que por pontos turísticos de outras cidades, pelo (aqui) tão badalado Rio de Janeiro... É São Paulo que me chama do seu cinza.

    Um dia eu resolvo ouvir esse chamado.

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  3. Linné? Tomara que isso aconteça mesmo.

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