Eu queria que você me amasse. Não
a ponto de cometer loucuras por mim, mas a ponto de eu poder pensar que sim.
Não a ponto de você entrar no primeiro ônibus, de madrugada, cruzar o estado
todo e chegar aqui de manhã, só porque eu pedi por telefone. Mas a ponto de eu
ter seu telefone. Porque assim, sem dizer nada, fingindo nem sentir, tudo que
eu tenho por dentro me afoga à garganta. E eu fico como a mulher na foto.
Eu queria que você me amasse a
ponto de eu poder lhe procurar só pra contar da mulher na foto. A mulher toda
fodida na foto. Olhos de ressaca. Isso sim são olhos de ressaca. Ressaca de
porre, sim, mas de mar também. São olhos que parecem a qualquer momento poder
derramar. E derramaram. Logo depois de eu tirar a foto. Mas na foto ela ainda
tem olhos inundados. Na foto, ela tem olhos de vaca indo pro abatedouro. E isso
não é ofensa. É lindo. Ela é tão fodida que sabe do abatedouro.
Foi a foto da mulher que me fez
pensar em você. Mas só depois que eu deixei ela em preto e
branco, pra revista, foi daí que os olhos brilharam. Foi como se eles
estivessem esperando essa escala exata de cinzas para poder vir à tona. A
mulher inteira veio à tona por esses olhos. As rugas, o nariz fino, as
bochechas escavadas, a boca amassada. Tudo no preto e
branco fez mais sentido. O
cigarro na mão dela ganhou outro ar. A fumaça se tornou um desfoque denso,
nublando a cena inteira. O decote pregado de rugas, a alça de um sutiã
aparecendo, o espelho de luzes, tão clichê com seus bicos quebrados.
Essa
mulher, foi como se ela tivesse nascido pra foto, pro sentimento dessa foto.
Como se ela tivesse vivido sempre em preto e branco, antiga e decadente, como num
filme de Bertolucci. Essa única foto conta a história
inteira dessa mulher, nem precisava de texto, de entrevista, de nada. Os boás
depenados refletidos no espelho, as guimbas de cigarro derramadas do cinzeiro,
a barata morta sobre a penteadeira, o whisky sem gelo, suspenso no ar, e a dor
naquele rosto, a dor pura de encarar a própria vida e parar de fingir. A dor
de assumir que é tudo só um abatedouro. Essa dor, cara, ela vai ficar doendo em
mim.
Se eu tivesse seu telefone, esse
seria o tipo de história que você gostaria de ouvir. O tipo que nos faria ficar
acordados a noite toda, mesmo se você não pegasse ônibus nenhum. Mesmo se eu não disse, mais uma vez, o que eu sinto. Não a
história da mulher, que é tão clichê quanto ela, mas a história dessa foto. Do
que eu consegui capturar ali.
Você sempre me disse que eu havia
nascido para isso, para fotografar. Que eu ainda ia ficar famoso e ter
exposição só com o meu nome. Quando eu vi a foto dessa mulher, eu quase
acreditei. Quase acreditei em você e na sua mania de me ver em um futuro bom. Depois
tudo passou. A realidade veio, o salário de merda, a revista que não serve nem pra recolher cocô de cachorro. Essa foto, esses olhos, tudo se
perdendo entre receitas de dieta e inaugurações idiotas. E eu me perdendo também, entre nossa distância e o silêncio do que eu deixei de dizer, entre o arrependimento e a certeza, só agora, do que eu sinto por você.
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uM SÉTIMO