domingo, 5 de fevereiro de 2017

cINCO SÉTIMOS - por Vinícius Linné

Começo a desconfiar que certo mesmo é quem trai e mente. Quem se aproveita e tem caderneta até na zona. Come fiado e dá calote em puta.

Certo é quem bebe e corre de facão, destrincha o vizinho e pede um chope da Brahma. Vai Verão, vem Verão.

Certo mesmo é quem volta de madrugada pra casa, espanca a mulher e ameaça matar quem se meter.

Certo mesmo é ter registro na polícia. Distúrbio doméstico, um domingo  sim, outro talvez. E de meio dia jogar panela ainda quente de arroz no meio da rua. Mais dois pontos se acertar alguém.

Certo mesmo é não trabalhar. É  dar trabalho e, claro, um malho em toda vagaba que aparecer.

Certo é pegar aids e passar pra mulher, de preferência antes dos 30. E votar no Bolsonaro, claro.

Certo é chamar de vagabundo quem trabalha, de trouxa quem escreve. Se for poesia, de viado.

Certo mesmo é estar no SPC e Serasa. E ameaçar quebrar a cara de qualquer um que lhe cobre em casa.

Certo mesmo é comprar no nome dos outros. Não pagar. E nem ter vergonha. Ir pro meio da rua, num sábado à tarde, no centro, e bater bronha.

Certo é arrotar na mesa e querer mandar. Dar soco na cabeça de criança pra ela aprender a se comportar.

Certo mesmo não é fumar maconha, que dá cheiro, é cheirar coca pra ninguém desconfiar, enquanto a mamãe não sabe porque o filhinho é tão difícil de se lidar.

Certo é no fim de semana pedir dinheiro emprestado pra comer e ir comprar uma caixa de Polar. Ficar mal, entrar em coma alcoólico, ir pro hospital. Fazer a mulher levar comida de casa, claro, porque comer a lavagem dali nem pensar.

Certo mesmo é não ter educação. Nem desconfiar para que serve obrigado, com licença, por favor e perdão.

Certo é ser filho da puta de mãe crente.

Sim, certo é ser um bosta. Porque daí sempre aparece alguém para lhe justificar.

Filho certo: o que está preso. Tráfico de entorpecentes. Quantas vezes eu disse pro coitadinho não andar com esse tipo de gente?

Marido certo: o que chega às quatro da manhã das putas e dorme o dia inteiro. Shhh! Não faz barulho. O papei bebeu um pouquinho demais ontem e está cansado. Também, trabalha a semana inteira, o coitado.

Pai certo: o que caga todas as regras, mas não segue nenhuma. Se você não se comportar, vou contar pro seu pai. E você sabe como ele é...

Certo mesmo é ser todo errado, coitado, coisa de gênio, de gênero, de classe social, pobrezinho, é assim mesmo porque foi assim que ele foi criado, não é agora que ele vai mudar. Tem que entender. Tem que aceitar, respeitar. Afinal, também não é nenhum bandido. Só fica assim quando bebe. E como bebe, coitado. Para tentar esquecer os problemas. Culpa dos outros, claro. Das companhias. Ou do irmão que lhe passou a perna em dezembro de 73. Se não podia estar bem, estar forte, rico até. O coitado. Ah, deixa ele dormir, coitadinho. Deixa ele se divertir, pobrezinho. Homem é homem. Eu sei. Foi assim a vida inteira. Ah, mas ela já sabia antes de casar. Agora que não reclame. Sim, até me bate de vez em quando, mas bota comida dentro de casa. Tudo culpa da branquinha. Não, coitadinho, querem despejar ele agora. Mas ele não tem dinheiro pra pagar o aluguel. Como é que o dono da casa não entende? É demais, tem duas famílias pra sustentar, o miserável, a da mulher e a da amante.  Depois não é pra tomar umas no fim de semana. Coitado.



Nossa. Como eu demorei a entender o que é certo. Eu, com todos os meus livros, meus poemas e os sites sobre como criar os melhores filhos. Como eu demorei. Com a minha prepotência, minha arrogância e minha crença em ser qualquer coisa a mais. Como eu demorei. Querendo viver minha vida como se estivesse num filme cult qualquer. Querendo ser feliz amando uma só mulher. Como fui um besta quadrado que paga as contas e ainda devolve o troco errado. Meu Deus, nem ficha na polícia eu tenho. Nunca pisei em puteiro. Nunca bebi o salário inteiro. Nunca saí sem dizer onde ia, nem que fosse na padaria. Eu rimo, meu Deus, eu rimo de ridículo que sou. Esperando alguém entender o que eu falo, o que eu escrevo, o que eu calo. Por favor, com licença, obrigado. Desgraçado. O tempo inteiro desgraçado. Querendo fazer da vida qualquer coisa mais do que um monte de bosta. Querendo ser reconhecido, tocar o sublime. Filho de caminhoneiro não deve aprender nunca quem é Matisse. E eu querendo ainda impressionar os pais, os pares, a elite de uma cidade que nunca vai me ver de verdade. Ridículo. Ridículo querendo fugir dos padrões, dos estereótipos, da criação, do gênio, do gênero, do meio. Querendo viver um romance desses de música, mãos dadas no escuro, dividindo o mesmo fone. Querendo uma mão que chegue no meio da tarde e me suba quente pelos pelos das coxas. Um Trouxa. Um trouxa. Lendo sobre arte, querendo não fazer alarde, ouvindo música clássica, até.


Como eu pude entender tudo tão errado até agora?


Até agora.


3 comentários:

  1. Maravilhoso teu texto. Lembrou-me Fernando Pessoa: "Eu sei que não sou nada.Nunca serei nada, não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo". DBN

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  2. Uau. Um texto que deixa nossa traquéia fechada. Febre crônica total. Como podemos viver tanto tempo assim? E ainda viver?

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o Febre CRÔNICA agradece sua leitura e comentário.