terça-feira, 31 de julho de 2012

o MEU AGRADECIMENTO - por Dilma Alencar

Agradeço aos cabelos brancos que enfeitam a cabeça de minha mãe e me fazem comovida, às pessoas que, de uma forma ou de outra, perdoam meu silêncio, e são generosas, dividindo suas memórias cheias de afeto. Quero um instante de gratidão. 

Obrigada aos casais anônimos que trocam carinho escondido nos bares da cidade e me fazem acreditar nas cores, ao poema recebido, em que uma mulher bonita vive, porque eu não sou bonita, ao perdão pelos meus passos em ré, minhas tentativas em Sol maior, aos que com carinho humano e quente, tão raro, secam minhas lágrimas não óbvias, às mãos que oferecem calor e café. Aos meus amigos que entendem que “tempo é amor”, a todos os brindes, os prantos e quedas, às novenas de minha mãe, às desmedidas de um poema livre, aos escritos do Saramago, ao atendente da padaria que sabe do meu café puro, ao pé de mandacaru mais velho da roça, que insiste em ser verde, mesmo no roçado, a tudo que é árido e me comove, à dureza do açude seco, à contemplação gratuita de tudo que, em seu detalhe, é Deus. Também às memórias de  amor que me enfraquecem, a todos que de uma forma bruta, mansa, revoltada ou terna ainda acreditam numa mudança de rumo, num  prumo mais humano na vida. Às pessoas com cadência de afago, me perdoando o olhar, silenciando meu desespero, aos cinemas, aos teatros, aos estranhos que me apontam as estações de metrô, à verborragia artística que me pega rente à carne, ao farol que fechou porque um poeta de rua cantou flores e vendeu sua fé, aos meus espinhos no peito, fazendo lembrar que ainda tenho um, às minhas hipóteses de absurdo, às despedidas sem palavras, aos que se supondo fortes me seguram nos braços, aos que, sem razão nenhuma, me sorriem e acreditam no que eu não disse, aos que me apresentaram uma cor nova pra usar, que me falam de cinema, sem respeitar os caixões dentro do meu quarto, obrigada.

Há espaço, tempo e sobre todos: amor. Em pranto, em ira, em lago, em borboleta.

Eu AGRADEÇO.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

sACRIFÍCIO - por Vinícius Linné

Quatro deles mataram Maria Adélia. E o fizeram porque Deus mandou. Não, não há mais gente boa no mundo. Gente que desobedece a Deus. Não há. Em meio à sarça flamejante a voz Dele veio, retumbante: “Que Maria Adélia seja para vós como o corpo e o sangue de Cristo. Tomai todos e comei”.

Tomaram e comeram. A Maria Adélia. 

Os frangalhos do vestido amarelo, os ossos, os músculos mais duros, os nervos, os olhos, os pulmões, as tripas e os cabelos crespos e tingidos de amarelo estão em um monte no canto da garagem. Discutem os quatro sobre o que fazer com aquilo. 

Um deles é pragmático: Precisamos comer tudo. Até o último cabelo. Vocês ouviram Deus... 
Outro é gramático: Mas o Senhor não disse se tínhamos que comer tudo... Quando falou em corpo, eu entendi que era só a carne. 
Os outros dois arrotavam à larga, boca lambuzada de vermelho, sem conseguir engolir mais um dedinho sequer.

terça-feira, 24 de julho de 2012

a MORTE COMUM - por Dilma Alencar

Alguém, por favor, coloque de uma vez uma navalha no meu pescoço e sirva-se, ou use uma faca que tenha um cabo vermelho, ultimamente gosto de vermelho e laranja. Eu preciso tanto morrer. Nua com sangue entre os dentes, salivando ainda seu gosto. Estou lúcida como o diabo estaria, porque deus está bêbado e vendendo o amor nos bares e igrejas.
A morte será doce e colorida e não faltará verbo de ligação nas lembranças esquecidas depois de três chuvas. O anúncio de um sol entre os dedos, de um rasgo no vazio de sempre, na medida de tudo que pode transbordar eu não sei quanto de mim ainda pode morrer.
O afeto escorre de um olhar perdido e doce, porque a vida está crua, nua, mas a morte não vem, a morte seduz as sombras que eu escondo. Traga a navalha, eu quero morrer nua, olhando para você. No fundo a gente se perde. 
Já não há sangue, nem corpo, os verbos dormem, os olhos não fecham, a paz eterna é prenúncio de uma guerra. Mate, mastigue e jogue no seu lixo essa minha sintaxe imprecisa de quem perdeu. Meus verbos entre seus dentes podem alegrar o finalzinho de luz que me resta, a vontade de morrer esfria minhas mãos e descompassa meu ritmo.
Antes da navalha, gostaria que minhas palavras, ralas e saudosas, virassem lágrimas, eu também preciso de lágrimas teimosas escorrendo no meu batom vermelho, borrando essa  maquiagem que nem é minha. Quero tanto virar uma nuvem.
Há tanta vaidade vã em desejar a morte, como se uma faca, um punhal, uma navalha, uma corda, afirmassem uma vontade, como se num repente, por pura arrogância minha, eu quisesse as rédeas desse caos todo que é a minha vida. Que diabos é a minha vida? A morte não é um espetáculo, é só uma ponte. Eu não sou ninguém, eu já morri. Não haverá espetáculo nenhum. Desçam as cortinas. Eu morri, sem faca, lençol branco ou corpo nu.  Foi de morte comum. Essa de todo dia.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

a DEPRESSÃO PÓS-PARTO - por Vinicius Linné

o14, 2012 - Bartosz

Uma ponta branca no peito. Uma pústula posta entre os pelos - estes pretos. O estranhamento de ter em ti o que não te faz parte. Não é meu isso. É vivo. E me habita.

Os dedos de unhas sujas a apertarem de dor e dilaceramento a pústula. E eis o parto. 

O verme é o parto do homem.

É pela dor que se expele a vida não tua, mas que foi em ti gerada, de ti nutrida e por ti parida. Branco e gordo. Cego e liso. Boca ainda aberta deixando escorrer teu sangue e tua carne. 

Não choca o verme. Verme de se estraçalhar nos dentes. De se estourar na boca. De se comer porque um dia também ele te comeu. Lento. Silencioso. Farto verme.

Mas tu não comes o verme. Que pai seria se o fizesse? Antes joga-o descarga abaixo, ca-ri-nho-sa-men-te.

Depois, consternado, olha para o peito. Um buraco. Teu corpo sente a perda do verme. Soluça sangue. Rombo feito, peito abeto. Vazio por dentro. Sem o verme tu te tornas menos completo. Menos homem. Menos tu. 

Pariste. E secretamente te deu prazer o verme ao sair. O alívio de ser novamente tu, só tu, sem ninguém a te habitar. A satisfação de se ver livre do que inospitamente se embrenhou nas tuas carnes. O suspiro pleno da dor ao cessar... Passou. O verme havia saído. Sua boca havia aberto, largando o músculo ao qual se agarrava com terror de morte. Ufa.

Parido o verme ficou tu, o homem. E que carga é ser homem. Só homem, sem verme que lhe coma a solidão.

Ligeiros os teus dedos se embrenham nos pelos, já disse que pretos. Correm cutucando saliências, procurando novas pústulas, mais pontas brancas, outros vermes a poder parir. Mas outros não há.

Não ainda. Não na superfície. Não despontando do meio exato entre os teus mamilos.

Eles ainda tardarão a surgir. Poderão demorar no percorrer do caminho até a pele. Por enquanto ainda tomam força e forma. Ainda criam dentes e visgo. Ainda se alimentam, silentes, arrancando fibra a firba cada pedaço do teu já putrefato coração.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

o EXCREMENTO - por Simone Huck

 Rastros, 2011 - Simone Huck

Ela seguia fria, seca e cada vez mais gorda em seu ofício de alimentar-se do passado.
Acho que era ela dois meses atrás, ainda magra e filha, subindo por alguma das paredes do meu úmido quarto. Naquele dia eu tinha tanta urgência que nem poderia perder tempo acertando-lhe um chinelo. Tudo me era sempre ontem. As coisas habitavam uma pressa, uma inóspita ausência de tempo para o que eu não via. Deve ter sido num desses momentos, em que também não percebi, que o amor que eu transpirava também trazia essa certa urgência e talvez parecesse - “vazio” – retrucou ela, antes de fazer as malas e sair pela porta cinza. Somos previsíveis no erro. Desconhecidos nos acertos.

Tenho pensado em quase tudo. Tenho habitado um quase nada.
Há dias que encontro alguns cinco minutos entre um trânsito e outro para pensar um pouco além de mim. Revejo sombras. Engulo espectros.
Escrevo um pequeno poema em minhas unhas, levo o dedo até a boca e a saliva limpa a tinta. A garganta engole os vestígios. A ausência omite o medo.

Poucas coisas me espantam. Apenas ela, gorda, alimentando-se das minhas lãs esquecidas num fundo de uma gaveta morta conseguiu me fazer parar e pensar. Será que as traças engolem o passado? Qual a forma de um excremento frio e cinza, cujo nome é “passado”?

Mastigo o canto das minhas unhas enquanto penso em desistir. Há uma forma de sabedoria na desistência. Olho a sua nova fotografia e penso: eu faria melhor. Minhas presunções precisam de algumas traças, eu sei. Assim como a sua cegueira, aquela que mastigou um damasco, arrotou e depois foi pendurar nossas roupas no varal. As futuras roupas que um dia serão o passado da minha gorda amiga traça em seu ofício de limpeza.