quinta-feira, 19 de julho de 2012

o EXCREMENTO - por Simone Huck

 Rastros, 2011 - Simone Huck

Ela seguia fria, seca e cada vez mais gorda em seu ofício de alimentar-se do passado.
Acho que era ela dois meses atrás, ainda magra e filha, subindo por alguma das paredes do meu úmido quarto. Naquele dia eu tinha tanta urgência que nem poderia perder tempo acertando-lhe um chinelo. Tudo me era sempre ontem. As coisas habitavam uma pressa, uma inóspita ausência de tempo para o que eu não via. Deve ter sido num desses momentos, em que também não percebi, que o amor que eu transpirava também trazia essa certa urgência e talvez parecesse - “vazio” – retrucou ela, antes de fazer as malas e sair pela porta cinza. Somos previsíveis no erro. Desconhecidos nos acertos.

Tenho pensado em quase tudo. Tenho habitado um quase nada.
Há dias que encontro alguns cinco minutos entre um trânsito e outro para pensar um pouco além de mim. Revejo sombras. Engulo espectros.
Escrevo um pequeno poema em minhas unhas, levo o dedo até a boca e a saliva limpa a tinta. A garganta engole os vestígios. A ausência omite o medo.

Poucas coisas me espantam. Apenas ela, gorda, alimentando-se das minhas lãs esquecidas num fundo de uma gaveta morta conseguiu me fazer parar e pensar. Será que as traças engolem o passado? Qual a forma de um excremento frio e cinza, cujo nome é “passado”?

Mastigo o canto das minhas unhas enquanto penso em desistir. Há uma forma de sabedoria na desistência. Olho a sua nova fotografia e penso: eu faria melhor. Minhas presunções precisam de algumas traças, eu sei. Assim como a sua cegueira, aquela que mastigou um damasco, arrotou e depois foi pendurar nossas roupas no varal. As futuras roupas que um dia serão o passado da minha gorda amiga traça em seu ofício de limpeza.

8 comentários:

  1. Desconcertante. Sabe aquilo de acordar a víscera sonolenta e vagarosa? Então.

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    1. Que eu te desconcerte sempre, querida Silmara.
      Obrigada pela leitura.

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  2. Faz um favor? Fique longe da dipirona.

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  3. Como já havia dito...Inexplicavelmente e inexpressivelmente bom!! Muito bom!!!!
    Tem o dom da escrita com você Si, muito interessante ler o que escreve. ADOREI!

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    1. Obrigada, Manoela. Pela leitura e pelo carinho. Beijos

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