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"Paradigma" por Simone Huck |
Foi pelo riso que viemos. Viemos por ruas esfareladas, a avistar um horizonte no qual o sol estava sempre a se pôr. Viemos por desconstruções, sem vê-la, confiantes apenas. E silenciosos. Meu Deus, como viemos silenciosos. Vez ou outra nos olhávamos e sorríamos, mas nunca nos falamos enquanto estávamos em meio aos escombros.
Talvez fosse medo.
Medo de, ao falarmos, desfazermos o riso que nos guiava. Medo de desmoronar os restos de prédios, de arrebentar os últimos e solitários fios que ainda se agarravam a alguns postes. Medo de que os cacos se partissem se alguma coisa disséssemos.
Nada falamos e o riso nos trouxe para a única rua em que ainda existiam árvores. A única casa com um riso dentro.
O riso bom era estampado nos papéis de parede, bordado nas cortinas, enferrujado nas panelas cheias d’água de chuva, incrustrado nos azulejos, cascateado chuveiro abaixo e pingado sem parar na banheira branca.
E então ela, dona da casa, dos caminhos e do riso, estava lá, braços abertos, espalhando beijos, recolhendo malas e servindo cafés fortes.
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"Café do ponto" por Simone Huck |
Meu quarto seria esse. O de minha companheira de viagem seria aquele. Café bom quando bem quiséssemos e papéis em dias certos, sobre as escrivaninhas, nos quartos. E nosso riso se imiscuindo ao dela, contornando móveis e criando pássaros para as quinas das árvores.
De repente, porém, a casa começou a ficar muda. O riso que nos trouxera foi, aos poucos, substituído por uns suspiros. Suspiros que infiltraram pelas paredes, a desenhar rachaduras e a fazer poças no carpete. O início do silêncio nos mantinha em um permanente arregalar de olhos, com medo de termos que abandonar o verde e voltar ao âmbar e à areia das ruas.
Tateamos por toda casa, mas não havia como colocar a mão no lugar exato em que lhe doía. Os suspiros vieram fundos e chegaram até a porta da frente. Foi então que ela, a dona da casa, dos caminhos, do riso e, agora, dos suspiros, deixou-nos na mão a chave de prata.
Seria egoísmo pedir que ela ficasse.
Seria egoísmo deixá-la partir.
Entre dois egoísmos, respeitamos a compaixão dela.
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"Chuva" por Simone Huck |
Como fechar tudo e partir com ela, se ela tinha caminho e nós não? Como deixar a casa, se as videiras que ela plantou morreriam sem nossa água e atenção? Como deixar as pilastras caírem e as paredes tombarem, se ela teve tanto trabalho para erguê-las?
Ela fizera o refúgio por nós, construído de riso e dor. Se agora era nossa a chave, só nos cabia continuar. Com riso e dor. Sim, abriremos as portas nos mesmos dias marcados, para construir ninhos do que ela deixou. Aconchegaremos papéis e prantos, sentimentos e cafés prontos, mantendo a lareira acesa, sempre acesa, para que tudo fique na temperatura exata de febre. Febre Crônica.
Continuaremos a rir aqui. Um pouco menos alegres, é verdade, mas com a certeza de que nosso riso a guiará de volta. Nosso riso a encontrará no momento certo, varrendo montanhas, passando por pontes caídas, contornando concretos desfeitos, como o riso dela fez um dia, até nos encontrar. Que nosso riso a encontre e que ela venha caminho afora, que ela venha embora. Embora para sua casa, Simone.
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Esse texto de caminhos é recoberto de carinhos e homenageia a ela que criou essa casa e nos trouxe, Adilma e eu, até ela. Sim, é um texto de despedida. A partir de hoje, Simone recria outros refúgios e nos deixa de responsáveis por este. Que possamos cuidar de tudo, fechar as janelas quando houver vento, não mexer no gás nem na luz, trancar bem à noite e deixar as plantas vivas até ela voltar, pronta para um café.
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"Mutante e insensato" por Simone Huck |