"Ághata" por V. Linné |
Ághata é uma boneca de sabão, mas modelada em cigarro, rancor e cancro. Quem poderia querer brincar com ela? Ninguém, nem Ághata.
O cigarro é sua dose diária de autodestruição. A fumaça azul sobe e empesteia ares, mares e cabelos platinados, a turvar os pensamentos e a misturar-se à fumaça de cafés tingidos. Ela não se importa com o cheiro ou o gosto sempre de incêndio que a boca tem. Ela não se importa porque é toda ruínas depois do sinistro.
O rancor é a raiva triste que lhe corrói e lubrifica os mecanismos. É só de rancor que ela se mantém a funcionar. Suas veias incham e se dilatam enquanto um sumo verde e visguento as percorre. Ela odeia. Ághata odeia todas as coisas vivas e aquelas que ainda estão por se fazerem inventadas. Ághata também se odeia, até a raiz das unhas, vermelhas, naturalmente. E demonstra esse ódio. Meu Deus, como demonstra esse ódio, sempre pleno em seus olhos de boneca que se fecham verdes quando a deitam.
O cancro é seu material mais precioso, sua joia, seu estigma. Ela tem orgulho dele e o esconde como a ostra oculta sua pérola. Ele é a sua prova, a sua indulgência, a razão de tudo, do rancor ao cigarro vagabundo. Vez ou outra ela rebrilha o cancro ao sol. Como para lembrar aos outros de que ela é mártir das culpas alheias.
Ághata é uma boneca de sabão, mas modelada em cigarro, rancor e cancro. Quem poderia querer brincar com ela? Ninguém, nem Ághata.
Apesar disso, compraram-na na loja. Apesar disso, colocaram-na dentro de uma casa de bonecas, toda branca e brilhante. Apesar disso, deram-lhe outro nome e roupas novas. Apesar disso, arranjaram-lhe uma marionete por marido e um bebê por filho. Apesar disso, deram-lhe vida. Sim, bastou um Sopro de fumaça e a boneca fez-se carne.
Carne, cigarro, rancor e cancro, o mesmo material de que são feitas as pedras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
o Febre CRÔNICA agradece sua leitura e comentário.