segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

sENHORA CABELEIREIRA - por Vinícius Linné

Clarissa não brincava de médico. Não queria ter ciência do corpo alheio e tampouco que conhecessem o seu lhe interessava. Mesmo assim, criou uma brincadeira de se aproveitar: “Senhora Cabeleireira”. Como se pressupõe, não eram os corpos o interessante, mas as cabeças, ou, antes ainda, os cabelos; tudo bem, confessemos, o que realmente interessava à Clarissa eram as carícias.

Havia um menino na rua de baixo (qual era o nome do menino?) que brincava com ela e procedia bem assim: batia na parede para fazer de conta que era na porta, depois dizia: “Senhora Cabeleireira, vim cortar os cabelos! Quero o mesmo de sempre!”. Ditas essas frases, ele se sentava no degrau mais baixo da escada e, de costas para Clarissa, deixava que ela o penteasse demoradamente.

Não havia corte, havia Clarissa de olhos fechados, deixando os dedos brancos percorrerem os cabelos do menino (quase consigo lhe dizer o nome, mas ainda não). Havia a sensação quente que aos poucos amortecia e disparatava a menina. Clarissa já adivinhava que algum dia dedos como os seus se embrenhariam naqueles cabelos escuros, grossos como pelos de cachorro, e ali se contorceriam de prazer.

Às vezes, sozinha, Clarissa lembrava da sensação e sua mão dançava no ar, como se repassasse contornos, redemoinhos e o arrepio causado por um toque desavisado na nuca do menino (cujo nome ainda não digo / não lembro). A nuca quente, às vezes suada de verão, às vezes picada de insetos, às vezes pedindo um beijo que só mais tarde viria, eriçava-se toda. E Clarissa terminava com o brinquedo então, ofegante.

Um dia o menino (e talvez seu nome fosse mesmo “menino”) cansou de ser o cliente. Queria ser ele o Senhor Cabeleireiro. Melhor se fosse, ainda, com outro menino. Assim podia fazer-lhe a barba também, como Seu Diógenes lhe fazia com o pai. Mas contentou-se com Clarissa. Alheio aos intentos da menina com aquela brincadeira.

Quando ela disse as palavras, elas saíram tremidas. Era demais a sensação oposta, entregar-se, ser ela a selva branca de inverno na qual os dedos do menino se perderiam por descaminhos e desvios, cabeça, nuca, costas, demoradamente. Sim, ela esperava que fosse demoradamente.

Ele, obviamente, não tinha tanto tato. Puxava forte e fazia dores. Seria sempre assim com os meninos, Clarissa tinha dessas intuições. De todo modo, continuava muda, de olhos fechadíssimos, enquanto era tocada. Acariciada. Quase lambida pelos dedos dele.

Muito tempo passou sem que Clarissa abrisse os olhos ou o menino (sem nome?) dissesse palavra. Ele estava concentrado em fazer nela uma trança. Uma trança longa e dourada. Linda. Desde a testa até além da altura da nuca.

Ah, Clarissa... Ela deveria ter adivinhado quando o silêncio foi cortado por um estalo rápido. O menino (e nunca mais saberei seu nome) lhe cortou a trança rente ao couro. A trança longa e dourada e linda repousava feito um rabo de bicho morto nas mãos dele. E ele ria, ria enchendo a rua e a tarde de som. Clarissa abriu os olhos incrédulos e não sabia o que sentir. Primeiro viu aquele rabo, aquela corda, aquela trança de sisal e pensou ser só piada. Ele a devia ter trazido escondido. Brincava com ela, aquele menino, um maroto.

Depois correu afoita para dentro e nem teve tempo de chegar ao espelho. Apanhou na cozinha. “O-que-vo-cê-fez-com-es-se-ca-be-lo,-Cla-ris-sa!” Soletrou a mãe às palmadelas. E então tornou-se verdade. Verdade. E nenhum tapa doeu mais do que ele ter feito aquilo de verdade. Ela se entregara e agora tinha um buraco entre os cabelos. Um buraco que levaria meses e vergonhas para ser tapado, bem na frente, como insígnia, como marca de vergonha.

Clarissa nunca mais brincou com aquele menino. Sequer o olhava quando se cruzavam na rua. Mesmo depois de crescidos os dois.

O menino nunca mais se desfez. Nem daquela trança, nem daquela tarde de verão, nem do que sentia por Clarissa.

Um comentário:

  1. Há amores que conjugam mutilações. Eternizam-se assim.
    Bonito percorrer seu texto, Linné.
    Beijos, Huck.

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