quarta-feira, 30 de abril de 2014

eU NÃO SEI - por Adilma Secundo Alencar.

Um bebê é um mistério. Um parto é um susto. A ciência e a religião não diminuem o meu espanto do que é um parto, bebês não deveriam nunca,nunca mesmo morrer.Eu não gosto de assistir às notícias da televisão,coisas de morte, violência e não é por motivo político, posicionamento intelectual, não, é porque eu me comovo indecentemente. Mas quando no café da padaria, ou mesmo entre um fazer doméstico e uma leitura besta olho para a TV, eu me surpreendo com a minha falta de tato para a dor. Um bebê é um pedaço de nuvem,aqueles olhinhos reconhecendo o mundo com um espanto que eu teria se não tivesse vergonha de mostrar meu medo, meu desamparo. A imensidão de uma casa para os olhos de um bebê deve doer,deve sim, sair ou chegar. Por aqui tudo está pronto para enquadrá-lo, terá uma língua e logo depois de uns poucos anos uma gramática lhe dirá de uma estrutura óssea que move essa água toda dita língua.
Eu não saberia o que fazer com um bebê nas mãos, eu tremeria como uma criança no primeiro dia de aula, como no meu primeiro dia de aula em que eu me senti triste, eu me sentiria Deus, "um Deus de saia" com uma criança nas mãos, por isso meu espanto e encanto por todas as mulheres que parem filhos para o mundo, porque o que é um filho? Eu penso,sem experiência na maternidade, que se leva a vida inteira para saber e não se sabe ainda.
Eu não saberia direito ver um filho crescer sem chorar, eu não presto para essas emoções, eu sou muito comovida de absurdos, eu me sustentaria em todas as coisas bonitas do mundo: terra, galho,flores,vento,água e lhe ensinaria que eu não sei das coisas e pediria perdão também , pediria perdão pela violência desse mundo feio que uma mãe mora querendo comer uma via láctea, querendo beber nuvens de algodão doce, eu sei que o primeiro não para um filho deve doer muito, doer na mãe, doer no útero morada de um coração para sempre. Um cordão umbilical é uma metáfora.
Bebês são milagres de carne e fragilidade saindo de dentro de seres também milagrosos e místicos,porque embrutecemos tanto a ponto de matar?
Eu não quero a notícia da TV, o que eu diria para um filho que soubesse que um recém nascido foi morto.
Eu não presto para escrever sobre essas coisas, porque é assombroso saber que os olhos de um bebê foram cerrados por uma maldade que não tem nome nem porquê.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

mUDAR - por Vinícius Linné

Diante de toda tela em branco a vontade é a de não escrever. Diante de toda perspectiva de mudança a vontade é a de permanecer. É cômodo não fazer nascer o que ainda não existe. É cômodo deixar as palavras no peito, os móveis na casa, os livros na estante, os relacionamentos no mesmo status, os esforços no mesmo emprego. É cômodo ficar.

Mudanças assustam com seus riscos: perder coisas no caminho, riscar móveis, rasgar livros, arranhar sentimentos, perder estabilidades. Mas, mudanças também tentam com seus encantos: encontrar novos caminhos, comprar outros móveis, reencontrar antigos livros, fortalecer sentimentos, ganhar reconhecimento pelo que se faz...

É como se eu precisasse sempre escolher. Mudar ou não? Arriscar ou não? Tenho aprendido que Sim é sempre a melhor resposta para a vida. Não importa o que virá, nada pode ser pior do que nada vir, do que a tela continuar sempre em branco, vazia, angustiante. Tenho me lembrado, cada vez mais, de um menino que queria colecionar vivências. Um menino ávido de mudança que passou tempo demais perdido.

Um menino que descobre agora, como homem, o orgulho de ter sua casa, seus móveis, sua mulher, sua vida, seu trabalho, seu controle e sua escrita. Um menino que descobre, abismado, que colecionar vivências e escrever por telas em branco é, simplesmente, dizer sim e mudar quantas vezes a vida permitir.

terça-feira, 22 de abril de 2014

vERDE SEM NOME - por Adilma Secundo Alencar.

    Um homem olhando o mar ficou grande milagrando palavras salgadas: onda, maresia, conchas, pedras, horizonte aberto. Ele quis comer um pedaço daquele verde sem nome, o homem se jogou ao mar e foi abençoado por todo o mistério fundo daquelas águas. Ele pisou na areia molhada e de volta ao trajeto  perdeu a comunicação comum, seus olhos ganharam um arredondamento pueril, desses que as crianças têm antes de um ano de idade.
     Ele movia os olhos translúcidos  e revestia o mundo com um derrame de amor tão bruto que quase fez seu coração, tão quieto até aquele dia,explodir descompassado. Aos poucos foi retomando o equilíbrio físico, digo físico,sim, pois dentro das coisas inquietas que a gente ordena com as palavras, nesse dentro inquieto ele sentia uma chuva de poesia querendo tinta, querendo papel. 
     O milagre que o mar gozou nos dentro daqueles olhos criou poeta, poeta desses de adivinhação. E foi assim que nasceu um artista.Nesse dia ele soube para que veio parar nesse espaço e nesse tempo. 
      O mar criou um artista de olhos marítimos , tudo que ele desenha faz um mar sangrar nos olhos de quem vê.




quinta-feira, 17 de abril de 2014

sEXTA-FEIRA SANTA - por Vinícius Linné

Clarissa não crê em Deus. Não mais. Mas crê em tradições, crê no passado e crê nas lembranças que tem. As lembranças das velhas sextas-feiras santas, seu dia preferido, o dia em que a mãe louca não podia gritar.

Ainda hoje, Clarissa não come carne em sexta-feira santa. Não por medo do pecado porque isso já não existe, não depois de tudo. Não come porque de criança era assim. O peixe de que ela não gostava, a sopa de leite intragável, um desgosto de paladares, mas um sabor feliz no dia. A mãe não podia gritar!

Com a avó aprendeu outro costume. Era preciso confessar-se. E assim Clarissa o faz. Sem fé. Mas faz. Faz porque o sentimento de alívio não depende de acreditar. Alívio de quê? De ser quem se é. Clarissa se confessa assim:

— Padre, perdoai-me porque pequei em pensamentos e atos, contra Deus e os homens.

Depois ela diz baixinho:

— Padre, eu mataria, se fosse possível.

O padre a consola:

— Minha filha, em certas circunstâncias é normal pensar assim. Para defender a própria vida, por exemplo, mesmo sendo pecado, é normal a pessoa pensar que mataria alguém se fosse necessário.

— Não, não se fosse necessário, padre... Eu disse “se fosse possível”. Eu mataria se fosse possível. Se eu não pudesse ser descoberta, se meu crime não tivesse sobre mim qualquer consequência. Descobri na aula de filosofia. A professora nos apresentou o anel de Giges. Eu mataria. Não com armas, padre, não com veneno sutil, padre. Eu mataria com as minhas mãos, com as minhas unhas crescidas, com meus caninos, padre.

O sacerdote mandou que ela saísse dali, rezasse um terço e ficasse em paz. Enquanto Clarissa saía, ele mesmo lembrou-se do anel de Giges. Um anel capaz de tornar invisível quem o usasse, possibilitando que qualquer crime ficasse sem suspeito e, portanto, sem punição. “Com esse anel – pensou o padre – também eu mataria. Começaria por essa menina má. Mas antes, a estupraria.”

quarta-feira, 16 de abril de 2014

sIGNOS - por Adilma Secundo Alencar.

Uma gota de chuva, um copo de café com leite, um botão vermelho na sua blusa, em transe ardente de minhas vontades desmedidamente prontas para seu sim, eu já não sei levar os dias sem ressignificar as flores abertas em todos os cantos anunciando sua vinda. A água insiste e rompe os ferros dos trens, a sintaxe das placas, as modalizações todas amolecem cadentes num imperativo seu: vem
Não fico, faço festa pagã para jogar suas rendas rente aos pés da cama, rentes à calma que precede o beijo.  Uma pétala nua embalando ventanias, um canto de sereia anunciando naufrágios, abismos de carne e dentes mergulhando num rio morno para legitimar a língua, fazer verbos sustentados numa gota de arco-íris cismando nas retinas nuas de sua meninice, porque seus seios são meus dois olhos em farra de samba , meus dois olhos nadando em beleza de carnes nuas.

Cismar na escolha do batom é sina de vermelho , é sina de cigana doida enlouquecendo meus lençóis, revirando retalhos de poesias azuis, tecendo lã amarela nas manhãs de outono. Na desrazão do signo e no encantamento das letras abrindo um universo de raízes ,de sumo, de carne e osso. O espaço de todos os signos molhados abençoando a semana de fruto, de flor e vida. Porque é de água seu signo e minha sede.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

vÍCIO DE SER - por Vinícius Linné

Por que você é assim, hein, tão afeito aos extremos tão afoito em sofrer? Por que você precisa descer até o último degrau antes de descobrir que a piscina não dá pé? Por que, se no terceiro a água já havia engolido seus cabelos? Eu mesmo não compreendo. Não compreendo a ânsia de se entregar. Se fosse ao amor, talvez eu compreendesse. Mas ao sofrer? Não, ao sofrer eu não compreendo. E mesmo assim você se entrega. Se entrega como se seu corpo fosse programado para isso. Como se a falta de ar, a pressão no peito, a morte próxima, fizessem parte de você. Fazem?

Outro dia eu li que nossas células se viciam em certas sensações. Seria isso? O hormônio do sofrimento é sua vibe, sua viagem, sua fissura, seu vício?

Você me cala e pede licença. Diz que não me deve explicações. Grita, xinga, esmurra a porta antes de abrir e bate ao fechar. Anoitece. Você não volta. Anda pelas ruas como que submerso na piscina, sufocando, bebendo o ar em goles desesperados. Sofre. Na rua você sofre. E é, então, feliz.

terça-feira, 8 de abril de 2014

gENTE - por Adilma Secundo Alencar.


No meio da multidão tem gente vendo coisas abandonadas: um pedaço de céu, um pedaço de bolo de milho, um trecho de um poema antigo resgatado num papel amarelo, um envelope, tem gente selando cartas e aprendendo o movimento das flores. 
O trabalho repete o roteiro e o café convida o corpo para um livro vermelho, pelas páginas de romã de lábios em sim, pelas vontades abrindo botões e mistérios, pelos largos caminhos da comunhão das coisas sofisticadamente simples, por ser irresponsavelmente doce, os olhos dela crescem nas cores quentes e prendem o afago mais íntimo, a força mais extrema como um rio turvo em correnteza iluminando uma manhã no mato ermo de gente e de bicho.

Alguns homens apartam bezerros no interior de uma cidade qualquer e desejam água, fumam fumo de rolo e cismam na seca e no céu, outros nas salas velhas e sábias e frias das universidades tentam entender a velocidade dos beija-flores. Tem gente rindo das notícias e fazendo poemas modernos nas portas de banheiros público.
A todo momento tem gente pulsando, pulsando grampo, faca, folha, rima, ramo verde, filho,  riscos, desenhos, discos, código de célula, de cédula. 
A todo momento tem gente.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

aLGUÉM - por Vinícius Linné


“[...] Acho que aprendi o que vou contar com meu pai. Quando elogiavam demais alguém, ele resumia sóbrio e calmo: é, ele é uma pessoa. Até hoje digo, como se fosse o máximo elogio que se pode dizer de alguém que venceu numa luta, e digo com o coração orgulhoso de pertencer à humanidade: ele, ele é um homem. Obrigada, por ter desde cedo me ensinado a distinguir entre os que realmente nascem, vivem e morrem, daqueles que, como gente, não são pessoas.”  (Clarice Lispector, em ‘A descoberta do mundo’.)



A mulher, muito loira, contava-me, entre baforadas de cigarro, a história assim:

¬— Quando eu era moça, veja bem que absurdo, quando eu era moça, uma vez uma professora de escola, muito exigente, chata mesmo, disse-me: “Tu nunca vais ser alguém”! E veja só! Veja onde eu cheguei! Veja quem eu sou agora! Veja bem! Ela estava errada! Eu Me Tornei Alguém.

Olhei. Mas olhei com meus olhos de cobra, herdados das mulheres da família. Olhei com sinceridade e olhei verde, que é meu jeito de olhar quando me dizem “veja bem”. E não vi. Ou melhor, vi. Vi roupas caras, diploma na parede, carro importado e cargo importante. Mas Alguém... Não, Alguém eu não vi.

Era toda ela equivocada. Caía na crença do que lhe diziam, sem pensar sobre. Talvez eu devesse ter lhe dito a verdade. Não disse. Deixei para que um dia ela a descubra. Ou, quem sabe, deixei para que, ignorante, ela continue feliz, nutrindo sua imagem falsa de ser alguém.

Afinal, se eu lhe dissesse “Mas o que é ser ‘Alguém’?”, ela, de súbito, entraria em contato com as rachaduras de sua máscara e não, não sobreviveria ao choque.

A vocês, esclarecidos, a vocês eu digo: o que é ser Alguém? 

O rico dirá aos pobres que “ser alguém” é ter dinheiro.

O doutor dirá aos analfabetos que “ser alguém” é ter estudo.

O chefe dirá aos empregados que “ser alguém” é ter um cargo.

Estarão os três errados. 

Quem é Alguém não sente a necessidade de se afirmar como tal. Isso só para começar. Além disso, uma resposta assim revela um erro básico, que um Alguém jamais cometeria: não saber diferenciar os verbos SER e TER.

TER dinheiro e não SER rico de espírito é desperdício. TER diploma e não SER sábio é ignorância. TER um cargo e não SER líder é só mais um aborrecimento. Desperdício, ignorância e aborrecimento não fazem de uma pessoa um Alguém.

Conheci ao longo da vida analfabetos pobres e desempregados que eram Alguéns fantásticos. Minha avó é um exemplo. Ela era Alguém. 

Afinal, ser Alguém é reconhecer o humano que há no outro. É respeitar e respeitar-se. Sobretudo isso: respeitar-se. É manter-se fiel aos próprios princípios, é não calar nos erros, nem deixar-se comprar por muito ou pouco. É tornar leve a existência do outro. Ser Alguém é fazer sorrir. É ser simples, é ser útil, é ser bom. É transformar. É salvar um dia, uma vida, um arquivo que o outro esqueceu aberto. Ser Alguém não é ter grandes coisas é ser uma pessoa nos pequenos atos. É romper barreiras, deixar marcas e acreditar.

A loira, entre baforadas, não via o que todos em volta viam: ela era Ninguém. A personificação do Ninguém. Toda ela recoberta de ignorância, gozo vazio e ouro. Toda ela benfazeja de fumo, preconceito e sexo. Toda ela reluzente de arrogância, superioridade, intolerância e raiva. Toda Ninguém, mascarada como em baile, iludida como em show de mágica, tola e pintada feito um palhaço triste de circo. E eu tive, então, pena dela. 

“Eu sou Alguém” é paradoxo. É frase que não se pode dizer porque, quando se diz, revela-se uma mentira. Isso a loira, tão cheia de si, não sabia. Não sabia do desprezo dos outros, dos comentários, das maldições sussurradas que nunca lhe seriam dirigidas se ela fosse Alguém. Se ela compreendesse. Se ela escutasse. Se ela, como humana, se humanizasse.

Clarice aprendeu isso com pai. Eu aprendi com Clarice. Mas não, eu não lhe disse. Deixei que a loira continuasse iludida. Talvez eu o tenha feito – e o texto não é sobre ela, é sobre mim –  porque para mim falte muito, também, para eu chegar a ser Alguém.

terça-feira, 1 de abril de 2014

mALUCA -por Adilma Secundo Alencar.

          Ela comprou canetas coloridas e um par de sapatos vermelhos, ela faz compras, artigos, biscoitos, birra, cartas, planilhas, sopas, riscos, rasgos. Ela é maluca, ela faz amor com a chuva, na chuva, ela está presa a um mundo de pequenos milagres e certa vez chorou vendo um nascimento de sol numa Segunda nua cheirando a vodca. Ela pode a qualquer momento eternizar um rosto e minar de amor suas mãos firmes ou chorar uma angústia primária e sem nome e  de repente fugir deixando seus dois filhos,porque uma barriga com gente é um encantamento que ela não soube ter, não sabe, não soube.
     Mas há filhos seus, porque suas retinas reconhecem a mesma carne sua multiplicada nos rostos outros e é por isso que evita, avilta, prescinde da guerra, porque os nós das almas alcançam menos entendimento que fado.
     Na explosão tímida de uma palavra atravessando a garganta com menos certeza que tremor, com menos medo que vontade, como as unhas crescendo indiferentes à vontade, como uma planta, uma palavra que quer romper uma língua, ou um imperativo que quer deitar numa cama, nessa explosão anunciada pela sua respiração,ela dança.
      Colorir o sal dos dias e plantar pequenos milagres porque é só por amor que se vive, ela sabe,o resto é entulho e mágoa deixando a gente triste.
Por amor, as mãos, apesar do avesso, ainda fazem carinho, por amor ela acorda para o mar de milagres, do pequeno quarto come superlativos de fantasia pelos  cantos mais escondidos do mundo.
Ela é maluca.