Ainda hoje, Clarissa não come carne em sexta-feira santa. Não por medo do pecado porque isso já não existe, não depois de tudo. Não come porque de criança era assim. O peixe de que ela não gostava, a sopa de leite intragável, um desgosto de paladares, mas um sabor feliz no dia. A mãe não podia gritar!
Com a avó aprendeu outro costume. Era preciso confessar-se. E assim Clarissa o faz. Sem fé. Mas faz. Faz porque o sentimento de alívio não depende de acreditar. Alívio de quê? De ser quem se é. Clarissa se confessa assim:
— Padre, perdoai-me porque pequei em pensamentos e atos, contra Deus e os homens.
Depois ela diz baixinho:
— Padre, eu mataria, se fosse possível.
O padre a consola:
— Minha filha, em certas circunstâncias é normal pensar assim. Para defender a própria vida, por exemplo, mesmo sendo pecado, é normal a pessoa pensar que mataria alguém se fosse necessário.
— Não, não se fosse necessário, padre... Eu disse “se fosse possível”. Eu mataria se fosse possível. Se eu não pudesse ser descoberta, se meu crime não tivesse sobre mim qualquer consequência. Descobri na aula de filosofia. A professora nos apresentou o anel de Giges. Eu mataria. Não com armas, padre, não com veneno sutil, padre. Eu mataria com as minhas mãos, com as minhas unhas crescidas, com meus caninos, padre.
O sacerdote mandou que ela saísse dali, rezasse um terço e ficasse em paz. Enquanto Clarissa saía, ele mesmo lembrou-se do anel de Giges. Um anel capaz de tornar invisível quem o usasse, possibilitando que qualquer crime ficasse sem suspeito e, portanto, sem punição. “Com esse anel – pensou o padre – também eu mataria. Começaria por essa menina má. Mas antes, a estupraria.”
eu queria ter escrito essa crônica, EXATAMENTE como ela é. gosto do pensamento do padre, é como imagino, sempre.
ResponderExcluirLinné, que maestria de crônica.
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