quinta-feira, 28 de março de 2013

a ÚLTIMA PRECE - por Simone Huck

 Géraldine Georges

Ajoelhou diante de um oratório velho e úmido repleto de mofo e fotografias antigas. Tinha passado os últimos anos trocando as imagens e as pessoas impressas no papel fotográfico de sua vida. Ninguém ficava. Ela continuava sozinha.

Chorou uma lágrima de gelo. Apertou com muita força os próprios dedos e olhou para o centro do oratório. As imagens de santo, Jesus, Kardec ou Buda - o que sua fé ainda acreditasse - não estavam mais ali. O tempo desbotou o Senhor que poderia lhe trazer alívio. Com olhos repousados nesse nada antigo e úmido, pediu um amor. Ela só queria alguém para amar. Nada mais.

Lembrou que sua alma morava dentro de uma bolsa preta, velha e rasgada que carregava junto com outros objetos também esquecidos. Com raiva e pressa, jogou tudo no chão até alcançar sua própria alma que segurava uma segunda bolsa. A bolsa da alma era mais pesada ainda. Repleta de chaves, cadeados e ferrugens. Tudo estava podre. Restos de papéis e tampinhas de caneta bic dividiam espaços com ínúmeros vícios, sobras, sombras, traumas, medos e mentiras que a alma contava tão bem para quem se aproximava. A bolsa da alma era uma bagunça. Tentou separar todo o lixo e ajoelhados, corpo e alma frente ao oratório, pediram por um amor.

Não se sabe quanto tempo se passou nem quantos meses ou anos ficaram ajoelhados ali, em sólido silêncio, clamando. Não se sabe se os céus ou o inferno ouviram suas preces. Os moradores da cidade apenas observavam, por trás de suas cortinas de curiosidade, o alto clamor. Eles duvidavam que corpo e alma conseguiriam alcançar os benefícios da prece.

Dizem que numa manhã de agosto, o pedido deles saiu do oratório e atingiu a autorização do Senhor que entregava amores de amar. Ele concedeu exatamente o que há anos corpo e alma pediam. Mas eles desconfiados frente ao recebido escolheram a bagunça pesada e densa que a bolsa da alma carregava. 
Não tiveram olhos de reconhecer amor de amar. Morreram ajoelhados, corpo e alma, mãos estendidas, clamando por algo que não viram chegar.

Dizem que o espírito dela, o único que ainda ficou, vive de contar mentiras para quem ainda acredita em histórias de amor primeiro.

2 comentários:

  1. E quem nunca caiu no conto do amor primeiro, que atire a primeira pedra...
    Muito bom!

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  2. Eta,Si.Que texto mais lindo,lindo dor,lindo agudo.Gostei tanto desse trecho :
    "Tentou separar todo o lixo e ajoelhados, corpo e alma frente ao oratório, pediram por um amor."
    Um xero.

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