Ele deseja silêncio.
Segunda de manhã cedo veste calça jeans escura, camisa
preta.
Carro ligado, motor potente, rota traçada, dirige como
se isso lhe fosse natural, como comer, como seus pelos nascem e lhe escurecem o
rosto.
Morto, essa é a sensação que ele experimenta nas
últimas semanas, é homem saudável, saibamos, não estamos falando de doença
física, talvez da alma, se soubéssemos nós desse conceito líquido formado e
deformado pela linguagem.
Civilidade violenta dos dados, dos sons que computam a
morte, da gaze, do soro, do diazepam
que lhe acalma os nervos.
Doutor, neurocirurgião, trêmulo diante da carne
aberta, nervos de homem fugindo à razão da rotina óbvia de vinte anos de
profissão.
Na entrada do consultório, ele viu uma menina lendo um
livro de capa vermelha e verde, com desenho de morangos. A menina sorria sem
sentir o peso que o doutor acreditava ser inevitável, o peso do mundo.
Roupa azul, cabelo ruivo e sardas que combinavam com a
falta de seu canino, ela, doce, sabendo da linguagem como uma porta para uma
viagem mágica, das letrinhas criando borboletas, sons, sustos, brilhinho na
roupa das princesas.
Ele sorriu, ficou triste por invejar uma inocência tão
verde.
Luminescência.
Sofria por sentir a gente por trás de todo corpo, a
respiração que acompanha cada palavra.
Pisava fundo, acelerava na Avenida Vinte e Três de Maio,
comia bolo de chocolate e bebia café compulsivamente.
O jaleco branco apertava o corpo do homem. Os óculos,
ao contrário de sua nobre função, ofuscavam a precisão arrogante das cores. A
ele, parecia a todo o momento que o céu de chumbo desabaria sobre o trânsito
das seis da tarde, naquela avenida de signos de ambulância, de blindados, de
homens blindados de uma civilidade que não sabe morrer, porque os comprimidos
sempre lhes tiraram a dor com a mão, com pinça e piercing, com sexo e sangue. É
do homem o sofrer, mas a um doutor instruído,neurocirurgião dado à entrevistas,
homem de vida reta, questionar a pulsação da vida em suas metáforas de nuvem e
cuspe? Ora, essa dor conhecia o peso das palavras, era dor de bisturi e
prontuário.
Voltando para seu apartamento, numa esquina
movimentada, ele viu um jovem: sem camisa, branco, alto, magro. Vendia cigarros
de maconha. Ele se aproximou do doutor e, com um gesto, ofereceu seu produto.
Não, não comprou. Pegou o jornal que estava sobre o
banco do carona, com data da semana passada, ele leu o título de seu texto que
fora publicado no jornal e dizia sobre os efeitos nocivos da maconha.
Olhou se certificando que embaixo do jornal estava a
caixa de diazepam. Aliviado, viu uma cartela ainda cheia, na porta do carro.
Em casa, beijou a esposa com ternura, arrumou a
mochila dos filhos, deu comida ao seu cachorro e saiu desligando as luzes de
todos os cômodos. Na cozinha, abriu a geladeira, trêmulo como esteve na última
semana, pegou uma jarra de água, jogou dois comprimidos na boca e bebeu a água
gelada.
Dormiu durante horas.
Acordou com os imperativos lhe arrancando ordens, e
foi ao seu lugar no mundo, foi costurar carne e aliviar dor. A dor que a
civilidade amacia, mas não cura.
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