Era casada com Acácio - que de inocente não tinha nada - e que saía de casa logo cedo,
garantindo a grana para manter todos vivos. Ponto. Tinham três
filhos. João, Pedro e Tiago. Além de sete gatos com sete vidas cada
um e que, se somados à vida de Pedro, João e Tiago, seriam dez
seres com sete vidas. Fez as contas mentais e chorou com a estimativa
de setenta longas vidas repetindo, repetindo, repetindo. Dez vezes
sete significava mais pia. Mais louça. Mais cebola e óleo. Menos
ela. Amélia não tinha um tempo para chamar de seu. Chorou na água
suja da pia entulhada. Sua lágrima caiu em cima da bola de óleo
podre que boiava, formando um coração que se desfez rapidamente. Ironias da visão. Fúria heterogênea.
Onde estava Mabelle? - que de querida não tinha nada.
Mabelle era descolada.
Tinha carro e facebook. Mascava chicletes e sempre que ia guardar um
livro na estante da patroa, vasculhava algumas páginas até encontrar os
grifos e lia, relia, tentando decorar. Sonhava ser culta como Amélia.
Era empregada diferenciada, o que chamou a atenção na hora de sua
contratação. Amélia imaginou que ela poderia ajudar com João,
Pedro e Tiago - que de discípulos não tinham nada - os gatos, a
louça e as cuecas de Acácio. Assim, Amélia, que acabara de lançar
um livro sobre arte chinesa por uma editora bacaninha e renomada,
poderia viajar pelo Brasil todo divulgando seu trabalho. Nas horas
vagas, ela era professora de história da arte. Em todas outras, era
dona de casa, esposa, mãe e ainda alimentava gatos, cachorros,
passarinhos e qualquer forma animal de vida que lhe pedisse socorro.
Mabelle era a solução de todos os seus problemas. Ela dirigia.
Tinha seu próprio carro. Sua independência seria a alforria de
Amélia para o mundo. Fim dos navios negreiros. Santa Princesa
Isabel. Com certeza, ela também teve uma Mabelle para ajudar com
seu império.
Naquela manhã, porém,
Mabelle não apareceu. Desgraçada, maldita, vaca, filha de uma puta. E
agora? A louça, a casa, a pia, as lancheiras, a escola, os
rascunhos, a agenda, o skype com a editora. E agora? E agora?
E agora? Não havia eco. Nem resposta.
Não pensou duas vezes.
Vacas merecem um pasto. Mabelle não poderia jamais ter feito isso
com ela. Ainda mais depois de ter lido Feliz Ano Novo. Rubem Fonseca
tinha razão. Agora Amélia sabia de onde vinha àquela satisfação
sangrenta. Sorriu.
Afundou as mãos na pia
suja e na água imunda. Achou a faca de cabo branco. Trancou as
crianças em casa e disse que voltaria em quinze minutos. Entrou no
carro e foi até a casa de Mabelle. Apertou a campainha enquanto a
empregada mentirosa olhava pelo olho mágico tentando pensar rápido
numa desculpa esfarrapada. Abriu a porta e Amélia nem precisou ser
convidada, já estava dentro da casa.
Nem deixou Mabelle
falar, abriu a boca e com tamanha satisfação gritou sua vaca, sua
vaca, sua vaca inúmeras vezes. E quanto mais gritava, mais
apunhalava Mabelle - cujo nome significava minha querida.
Juntou todos os pedaços
de Mabelle em vários sacos. Uma vaca merecia morar no pasto. Ponto.
Nessas horas, ficava feliz por morar em Presidente Prudente, um
local afastado, próximo de várias fazendas onde a pecuária de
corte tinha tradição nacional. Na estrada dezesseis haviam vários
pastos. Deixaria ali, pedaço por pedaço da vaca maldita que colocou
seus planos por água a baixo. Água suja, repleta de louças.
Espalhou Mabelle pelos
pastos como pétalas ao vento. Não sobrou um fio de cabelo. Voltou
para casa aliviada. As crianças estavam jogando vídeo game na sala e
nem notaram quando ela entrou. Foi até sua mesa de trabalho e dentro
do seu livro, o que está fazendo sucesso no Brasil todo, pegou a
lista de candidatas. Gostou de Gabriela, cujo nome significava a
enviada de Deus. Não dirige. Não tem facebook. Não masca
chicletes. Só cursou o primeiro grau e colocou uma observação
enorme no final do curriculum “farei qualquer coisa para ter uma
patroa para chamar de minha”. Amélia sorriu aliviada. Agora teria
tempo para ser uma professora com um livro de sucesso.
Puxa...... Gostei! rsrs
ResponderExcluirTragicrônica. Amélia precisa de uma PEC particular.
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