"Guernica", Pablo Picasso
Os aviões saíram da
ilha no começo da noite. Camuflados. O batalhão não sabia qual
ordem seria dada. Inúmeros inocentes no caminho das bombas. Alguns
culpados morreriam. Sou um comandante covarde. Não sei quanto tempo
demorei, dentro de mim, para tomar a decisão. Nunca acreditei na
vitória dessa guerra. Engulo estratégias febris. Há quatro meses
não durmo. Rabisco o teto do quarto com pensamentos sem
esperança. Deus não acende a luz desse escuro. Talvez nossa
trincheira esteja rasa demais.
Ela está emagrecendo
velozmente. Pele, osso e olhos verdes sentam à mesa para o pedaço
de pão. A ceia é farta, o corpo não. Nossa vida tornou-se uma
agenda sem mês, ano ou fim. Dia de cirurgia. Dia de quimioterapia.
Dia de controle. Dia de retorno. Dia de ausência. Dia de pequenos
sorrisos. Dia de não morrer, ainda. Fecho os olhos e lembro quando
ela me alimentava fazendo aviãozinho. A vida era mais fácil. Eu não sabia. Não havia espaços insalubres.
Meus soldados estão
com fome. A noite não consegue amanhecer. O inimigo caminha na
perpendicular da minha estratégia. Alimenta-se de sangue, linfa,
mitocôndrias, cromossomos, macrófagos e proteína. Sou um
comandante pendurado no arame farpado da própria trincheira. Os
soldados me emprestam esperança.
Ela aperta o canto da
boca seca e me pergunta qual caminho a droga percorrerá em seu
corpo. Conseguirá atingir todos os alvos? Em poucas horas me tornei
uma analista de mentiras sênior. Conto que tudo ficará bem com
tamanho convencimento que nem o diabo duvida. Ele apenas sorri
sarcástico, enquanto os anjos da cabeceira da cama dizem amém.
Todos estão no quadro da última santa ceia. Quando terminar o vinho
e o pão, cada um sacará sua arma, arrancará sua máscara e tudo
será uma história contada, repleta de fins que não acredito. Mais
tarde, anjos e demônios autorizarão suas guerras.
Divido os soldados em
batalhões. Tenho medo do confronto. As noites são frias e lentas.
Os dias são velozes e secos. Não confio em nossa infantaria. Como o
inimigo me surpreenderá? Os meses se acumulam em pés cansados. A
guerra durará muito tempo ainda. As fotografias que trago no bolso
mostram que um dia estivemos felizes. A ilusão beija minha boca.
Assino mais um termo de
consentimento. Nunca fui tantas vezes responsável por ela. A droga
entra pela veia do coração. No átrio direito encontra amor. No
átrio esquerdo, medo. O septo interatrial organiza as emoções e o
batalhão de defesa. Nada se mistura. Ela continua com olhos verdes que me olham. Meus olhos estão vazios. A droga ficará quarenta e oito
horas sendo injetada em seu corpo por uma bomba de infusão. Nossa
artilharia está pronta. Tenho medo do comportamento inimigo. O
câncer é inteligente. Sou apenas um ser humano incapaz de salvá-la
com minhas mãos.
Não sei quem morrerá
primeiro. Eu, meus soldados ou ela. Sou um comandante sem o mérito
das medalhas.
Bravo. Bravíssimo!
ResponderExcluirArrepiante.
Obrigada amiga Franco.
ExcluirBeijo grande.
A uma amiga.
ResponderExcluirTalvez nossa trincheira esteja rasa demais, talvez as bombas não se acovardem, talvez na guerra a vitória perca o sentido, talvez a espera me tome a culpa, talvez a luz seja o rabisco de um Deus só, talvez a ilha construa uma ponte na batalha, talvez seja um caminho para a inocência, talvez a covardia tenha fugido camuflada por aviões. A noite começa, minha solidão é quem fenece.
Sua foice pode ceifar a carne, meu pão é feito de dias. Seu esqueleto é etéreo, nossas lembranças são pétreas. Não haverá eternidade capaz de adoecer as horas, os minutos ou os segundos que passamos sobrevoando o sofrimento e a incompreensão. Não há vácuo em nosso espaço.
Empurro acima o sol como quem aperta enter, minha artimanha cursiva penetra obliqua à escuridão. Entrincheirados nas células do meu verbo, meus soldados tecem farpas de serifas.
Limpamos o canto da boca, uma da outra, no pano alvo da esperança. Nossa última ceia não será hoje, nem anjos nem demônios estão autorizados a mudar minha história. Não lhes concedo pão, vinho, declarações de ódio, ou ultimatos de amor.
Divido o soldo dos batalhões, engrossamos a sopa ainda que rala. Nossa infância é o estofo da noite, histórias esmorecem o tiro das surpresas, limpamos as botas solta-se o barro, torrões de descrença.
Assassino a dúvida com sentimento. Quando foi mesmo que me tornei mais velha que ela? A droga do medo cozinha coração numa colher de amor. Meus olhos transbordando letras misturadas, que injetam e recheiam bombas com poesia. Minha coragem forja a cruz que vai à ponta da bala. O inimigo pode ser inteligente, mas meus soldados comungam há séculos palavras de luta. Comandam nos tempos medalhas unidas, feito mãos dadas. Enquanto houver um leitor, digo não ao luto do abraço.
Bonito, Ricardo. Bom poder te inspirar assim.
ExcluirBeijão.