Ela disse sim, decidiu tentar, há mais de um não que não
aceitava um convite.
Os primeiros gestos tão gentis, a avenida vazia, a
cidade sem fim, o desejo aceso. Acelerar o carro e despir fantasmas abraçados à
cintura, acelerar.
Às três da madrugada, na cozinha estranha, matava a
sede e morria de fome. Sentou no chão, amparada ao fogão, estirou as pernas.
Uma bomba silenciosa no estômago. A pele fria que
dançara no sereno daquela noite, que roçava mentiras em gestos languidos, a
mesma pele, agora, chorava, era açude de sertão, era açude esperando anunciação.
Cisma de um amor sem remédio, de um tempo que não
escorria, insistia em voltar cada vez mais nítido.
Soluçou baixo, engoliu algumas verdades, aceitou a
fome, se entregou ao cansaço.
Manhã. Uma fresta de sol aquecia os seios nus, o vento
frio e o som da cidade acordaram a preguiça comum, que dividia a mesma cama.
Ela se encontrou apertada entre braços quentes, abraçava também, como se um
abraço pudesse alimentar a fome adormecida, pudesse enfim, a vontade ser maior
que o medo, e o afeto vencer a rotina de desacreditar.
Avelã, geleia de amora, discos do Lupicínio, isqueiro amarelo,
sapatos marrons, leite.
Bebiam leite frio, comiam bolachas de gergelim. Corpos
em pele, olhos luzentes em caras amassadas.
O dia fuzilava de amor, a sala iluminada era tomada de
um calor tímido. A nudez tão natural como a fome, não incomodava, era ingênua
como tem de ser, era rotina do corpo o susto do sexo, era angustia da alma a
falta de morada do desespero.
Ela estava feliz, porque pés descalços e abraço de
manhã eram coisas caras à moça.
É de outra
tessitura o enredamento de seus dias comuns. É de alegrias sutis: comprar um
bom livro de poesia, conversar com amigos que ainda sabem chorar, ter uma
palavra nova pra dizer de dores ancestrais, ouvir música o dia inteiro e
reparar nas nuvens.
Ela é mulher doce, é frágil e pode matar com uma
sentença de silêncio e ausência. Às almas rasas de sentido e cegas de desejo, reserva
a sua piedade. Ela se sente ofendida por palavras órfãs de bocas humanas, palavras
de quem já deixou de ser e virou vazio, coisa oca.
Era doer e amar, era doer e sangrar, não via outra
forma, ela não sabia colher flores sem amor, cozinhar sem afeto e passar batom
rosa domingo de manhã.
Seu amor beirava a loucura, certa vez comeu margaridas
para sepultar uma amizade minguada, para encher a barriga de pétalas e os olhos,
de culpa branca e amarela.
A manha desfalecendo seu corpo, o instinto sustentado
sua vitalidade e a imensa fome, a fome sem nome em guerra com as unhas que
crescem, com a luz que atravessa seu dia, o seu dia no mundo.
Ela vai e não volta, é de tanto amor que tem.
"Ela vai e não volta, é de tanto amor que tem."
ResponderExcluirTão bonito, Dilma. Uma coisa que gosto sempre e que gosto muito em seus escritos é do ritmo. A construção inusitada da dor e das palavras, da espera e do amor. Bonito, bonito, bonito. Sempre suspiro.
Beijos de saudade,
Huck
Obrigada,Si.
ResponderExcluirSua sua fã,tiete, sempre.
Um xero.