quinta-feira, 1 de agosto de 2013

eLEGIA À VERDADE - por Simone Huck


Da janela da cozinha vejo uma tarde de inverno com ares de outono. Enquanto preparo meu café, a falta de atenção acumula na repetição do açúcar. O céu está alaranjado; meu café, melado. Como não lembrar de você, Catarina? Seu café era o próprio mel. Viscoso de tão doce. Quente. Escorria carinho, afeto, afago. Um pouco de você vinha dentro da xícara, confesse. Crepúsculo adoçado de amor. Sabedoria líquida que minha espessa memória tem sede. Neste hoje, nesta solitária xícara de café, entre um mês de agosto sem importância, escorre apenas a ausência sólida que você deixou. Antes das primeiras flores nascerem sobre a terra que jogaram em sua cabeça, eu já estava germinada de saudade e ansiedade. Tudo, de lá pra cá, foi só acúmulo, Catarina. Nunca mais esvaziei.

Fecho os olhos e estou na varanda da sua casa. Penduradas em suas sobrancelhas estão minhas verdades. Seu sorriso, escandaloso de felicidade, está desenhado na cicatriz mais grossa do meu coração. A toalha xadrez sobre a mesa de madeira larga, o cuidado, suas mãos envelhecidas que comandavam as horas e as perguntas, seus olhos marejados de saudade de mim e o café doce, o mais doce que minha pouca vida já provou.

Precisamos conversar, Catarina. As coisas lá em casa estão incertas. Cada vez mais parecidas com as paisagens do meu coração, e você sabe que isso não é nada bom. Não quero passar dia e noite comendo incertezas no jantar. Não acredito em ninguém. Você sabe que sou a filha mais velha do seu filho mais velho e que sou teimosa feito uma mula. Só pioro. Encha-me de açúcar? Pede pra eu pegar seu cinzeiro. Senta ao meu lado e acende outro Hollywood. Não, obrigada. Eu parei de fumar já faz alguns anos, lembra? Só ficou o vício do café. Acendo seu cigarro. Entre seu pigarro e minha descrença, construa a verdade que vou acatar, Catarina. A fumaça que sai da sua boca sempre desenhou uma estrada em minhas noites. Me faça acreditar em alguma coisa que se assemelhe a Deus. Coe um pouco da minha tristeza e me sirva do seu abraço. Há um deserto hasteado em meu coração.

2 comentários:

  1. Eu gosto quando sua força constrói tristeza nessa sintaxe tão sua; Belo texto,Si.

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  2. E eu gosto das crônicas com açúcar, com afeto. Nada de adoçante.

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