quinta-feira, 3 de abril de 2014

aLGUÉM - por Vinícius Linné


“[...] Acho que aprendi o que vou contar com meu pai. Quando elogiavam demais alguém, ele resumia sóbrio e calmo: é, ele é uma pessoa. Até hoje digo, como se fosse o máximo elogio que se pode dizer de alguém que venceu numa luta, e digo com o coração orgulhoso de pertencer à humanidade: ele, ele é um homem. Obrigada, por ter desde cedo me ensinado a distinguir entre os que realmente nascem, vivem e morrem, daqueles que, como gente, não são pessoas.”  (Clarice Lispector, em ‘A descoberta do mundo’.)



A mulher, muito loira, contava-me, entre baforadas de cigarro, a história assim:

¬— Quando eu era moça, veja bem que absurdo, quando eu era moça, uma vez uma professora de escola, muito exigente, chata mesmo, disse-me: “Tu nunca vais ser alguém”! E veja só! Veja onde eu cheguei! Veja quem eu sou agora! Veja bem! Ela estava errada! Eu Me Tornei Alguém.

Olhei. Mas olhei com meus olhos de cobra, herdados das mulheres da família. Olhei com sinceridade e olhei verde, que é meu jeito de olhar quando me dizem “veja bem”. E não vi. Ou melhor, vi. Vi roupas caras, diploma na parede, carro importado e cargo importante. Mas Alguém... Não, Alguém eu não vi.

Era toda ela equivocada. Caía na crença do que lhe diziam, sem pensar sobre. Talvez eu devesse ter lhe dito a verdade. Não disse. Deixei para que um dia ela a descubra. Ou, quem sabe, deixei para que, ignorante, ela continue feliz, nutrindo sua imagem falsa de ser alguém.

Afinal, se eu lhe dissesse “Mas o que é ser ‘Alguém’?”, ela, de súbito, entraria em contato com as rachaduras de sua máscara e não, não sobreviveria ao choque.

A vocês, esclarecidos, a vocês eu digo: o que é ser Alguém? 

O rico dirá aos pobres que “ser alguém” é ter dinheiro.

O doutor dirá aos analfabetos que “ser alguém” é ter estudo.

O chefe dirá aos empregados que “ser alguém” é ter um cargo.

Estarão os três errados. 

Quem é Alguém não sente a necessidade de se afirmar como tal. Isso só para começar. Além disso, uma resposta assim revela um erro básico, que um Alguém jamais cometeria: não saber diferenciar os verbos SER e TER.

TER dinheiro e não SER rico de espírito é desperdício. TER diploma e não SER sábio é ignorância. TER um cargo e não SER líder é só mais um aborrecimento. Desperdício, ignorância e aborrecimento não fazem de uma pessoa um Alguém.

Conheci ao longo da vida analfabetos pobres e desempregados que eram Alguéns fantásticos. Minha avó é um exemplo. Ela era Alguém. 

Afinal, ser Alguém é reconhecer o humano que há no outro. É respeitar e respeitar-se. Sobretudo isso: respeitar-se. É manter-se fiel aos próprios princípios, é não calar nos erros, nem deixar-se comprar por muito ou pouco. É tornar leve a existência do outro. Ser Alguém é fazer sorrir. É ser simples, é ser útil, é ser bom. É transformar. É salvar um dia, uma vida, um arquivo que o outro esqueceu aberto. Ser Alguém não é ter grandes coisas é ser uma pessoa nos pequenos atos. É romper barreiras, deixar marcas e acreditar.

A loira, entre baforadas, não via o que todos em volta viam: ela era Ninguém. A personificação do Ninguém. Toda ela recoberta de ignorância, gozo vazio e ouro. Toda ela benfazeja de fumo, preconceito e sexo. Toda ela reluzente de arrogância, superioridade, intolerância e raiva. Toda Ninguém, mascarada como em baile, iludida como em show de mágica, tola e pintada feito um palhaço triste de circo. E eu tive, então, pena dela. 

“Eu sou Alguém” é paradoxo. É frase que não se pode dizer porque, quando se diz, revela-se uma mentira. Isso a loira, tão cheia de si, não sabia. Não sabia do desprezo dos outros, dos comentários, das maldições sussurradas que nunca lhe seriam dirigidas se ela fosse Alguém. Se ela compreendesse. Se ela escutasse. Se ela, como humana, se humanizasse.

Clarice aprendeu isso com pai. Eu aprendi com Clarice. Mas não, eu não lhe disse. Deixei que a loira continuasse iludida. Talvez eu o tenha feito – e o texto não é sobre ela, é sobre mim –  porque para mim falte muito, também, para eu chegar a ser Alguém.

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