Caminhava apressado
quando percebeu que a camisa apertava sua intenção de ser feliz.
Abriu a porta da sala, entrou, jogou as coisas no sofá e apressado
escancarou botão por botão da camisa azul. Queria ter vestido preto
naquele outubro fúnebre. Cores escuras mentem nossa possível luz.
Estava tão cansado. Mais um dia desnecessário no seu calendário
particular de perdas. Já não era possível tocar o passado feliz.
Enquanto abria a
camisa, conseguia perceber o emaranhado de teias. Era fato: havia
nascido mais uma aranha em seu peito. Estava perdendo o controle de
quantas famílias aracnídeas habitavam seu tórax. Como controlar as
pragas se há dias andava úmido, escuro e triste?
Acumulando velhas lembranças, abandonos; tudo propício para que a
sua praga interior se alastrasse rapidamente. Fantasmas brindam a
noite nos sótãos de nossas almas secas.
Trocava a camisa várias
vezes ao dia tentando esconder a proliferação das suas famílias
pessoais. Ajeitava o tecido de algodão acomodando da melhor forma
cada nova aranha nascida no peito. Às vezes seus particulares
predadores se irritavam com o aperto de suas angústias e lhe
envenenavam. Não lhe eram cúmplices, nem amigas. Eram picadas em
qualquer hora, estivesse ele em qualquer lugar: no mercado,
na padaria ou simplesmente percorrendo os doze quilômetros diários
que insistia em fazer a pé, na tentativa de refazer os caminhos da
sua passível perda. Alimentava-se das paisagens mortas da cidade
enquanto elas, alimentavam-se das paisagens mortas da cidade dele.
Era uma simbiose. Só ele emagrecia.
Devorava o caminho de
volta para casa com pés e olhos ávidos. Abria cestos de lixo,
revirava latas, procurava uma palavra. Havia de encontrar. Sua ânsia
era tanta que criou o hábito de roubar cartas nas caixas de correio
vizinhas. As aranhas do seu peito também tinham fome e angústias,
queriam simplesmente saltar dali, atravessar sua epiderme, rasgar sua
camisa, quebrar aqueles botões. Garantir a proliferação de suas
teias num lugar maior. Novas dimensões para velhos fatos.
Voltava para casa numa
dessas tardes vazias quando percebeu que o carteiro estava com a
sacola cheia. Era o fim dos quinze dias de greve dos correios.
Acendia-lhe a esperança de poder encontrar mais cartas que o comum.
Nos últimos anos os e-mails
roubaram-lhe o ato, cartas eram raridades, o que só fazia aumentar
sua dor. Quando só haviam contas nas caixas dos correios, recorria
à uma livraria, pegava algum livro de correspondências entre os amantes e lia, lia, lia. Devorava cada fala e cada interrogação.
Sorria com afirmações felizes e só assim conseguia nutrir suas
aranhas em seus ambíguos sonhos. Há paz na ilusão. Mas naquele dia
foi diferente. Sabia que haviam muitas e muitas cartas acumuladas e
que era possível, em alguma delas, ser novamente feliz. Enquanto o
carteiro vinha em sua direção, conferindo os números das
residências com os envelopes, ele abaixou e fingiu amarrar o tênis.
Tossiu. Demorou-se no cadarço o suficiente para o carteiro fazer
quase um quarteirão todo, dos dois lados. Quando não mais viu o
entregador de cartas, sabia que era hora de ser o ladrão das mesmas.
Foi rápido. Era ágil em furtar palavras escritas.
Conseguiu juntar
dezessete cartas e apressou o passo. Hora de voltar para casa. Suas
aranhas estavam quietas, parecia-lhe que naquela tarde não
reproduziriam. Ainda tinha tempo.
Separou as cartas por
remetentes. Os remetentes masculinos ficaram a direita e os
femininos, a esquerda da sua mesa. Antes de começar a ler, passou um
café e sorriu a vã esperança de viver um sentimento, mesmo que
roubado. Sempre começava pelos remetentes masculinos. Além de
estarem em menor número, eram breves, secos, diretos e quase sempre
sujos. Havia muito espaço em branco nas cartas masculinas. Letras
pesadas, assuntos diretos. Não haviam muitas aranhas nas cartas
masculinas. Homens não sabem escrever cartas, dificilmente saberiam
nutrir aranhas - pensou.
Leu a carta de Paulo
para Rafaela; fria, direta, sensata. A de Gustavo para Tereza; de
José para Estela; de Eduardo para Clarice e de Carlos para Augusto.
Das cinco, a de Carlos para Augusto falava de amor e mais se
aproximava de uma carta que desejava. Sorriu. Já começou a ser feliz
mesmo antes de começar a ler as cartas com remetentes femininos.
Antes de rasgar os
envelopes ajoelhou e pediu a Deus que tivesse alguma carta cujo
remetente se chamasse Catarina. Sabia que não era um nome muito
comum. Mas sabia também que nenhuma Catarina era comum. Por um
segundo, desejou com tanta fé que quase uma aranha conseguiu saltar,
líquida, de seus olhos. Lembrou das milhares de vezes que suplicou
por uma carta que fosse de “Catarina”. Não acreditava que um dia
pudesse encontrar. Leu a primeira, a segunda, a sétima, a décima
primeira quando já quase sem esperança, seus olhos saltaram e suas
aranhas, quase que em conjunto, picaram seu peito e o envenenaram.
Era uma dose alta de veneno. Ficou tonto. Segurou na mesa para não
cair e pode ler, com olhos embaçados, o nome do remetente:
CA-TA-RI-NA.
Não podia ser. Não
era possível. Estava ali a sua chance máxima de ser feliz naquela
noite. Só naquela noite ou enquanto durassem as breves palavras da
suposta Catarina. Há um infinito no finito das palavras. Antes de abrir a carta,
colou um papel com o seu nome e endereço no lugar do destinatário.
Pronto. Era uma carta para ele. Suas mãos tremiam. Encostou o
envelope no peito, suas aranhas acalmaram-se. O papel ficou aquecido na ilusão criada para manter-se vivo.
Abriu. Letras trêmulas
e borradas. Catarina chorava quando escreveu.
Estava tão nervoso que
sentia as inúmeras picadas. Mais uma dose alta de veneno. Era
questão de tempo para não mais respirar. Será que daria tempo para
ler a carta até o final? Angústia do início abreviando fins.
“Deito meus olhos
sobre tua busca. Você não me vê. Tento tocar tuas mãos, dizer que
ainda estou aqui. Você não nota. As crianças cresceram, você não
viu. Tua sombra construiu estátuas em outra direção. As aranhas
multiplicaram-se no quintal. Todos nós seremos envenenados antes do
último sorriso. Há um desejo em mim que só você poderá resgatar.
Na última primavera, antes da guerra particular devastar nossas vidas, eu e
você tínhamos...”
A cadeira tombou e ele
agonizou o veneno com a carta nas mãos. Havia tanto para ser lido.
Sorriu seu último sorriso. Catarina sempre teve razão. Nesse
momento, as aranhas libertaram-se. Solidão envenenada. Brindaram um
resquício de luz que a pálpebra apagou. Conseguiu imaginar as
crianças crescidas antes do seu coração ser paralisado.
Arabesco das teias.