terça-feira, 30 de outubro de 2012

cIRANDA - por Dilma Alencar.


Nunca vira antes um azul tão bonito quanto o que incidia na saia dela, o cheiro do seu cabelo lhe amolecia as pernas. A conversa seguia livre, temas variados: fé, sexo, drogas, o preço do café, da cachaça, do estacionamento. Ela falava prosa ele ouvia poema barroco, e devoto, já vendia a alma. Um rosário de imagens invadiu sua possibilidade de corpo e espaço. Ela passava entre as mesas do bar, ele olhava e rezava orações que desconhecia. O homem, inseguro, ousou tocá-la, surpreendido pelo próprio impulso, acariciou o rosto dela e de presente os olhos claros de cílios longos lhe derramaram uma ternura limpa e larga, ele hesitou, teve medo de que os olhos dela silenciassem suas sombras.
A excitação de primeiro encontro.
A pressa da primeira transa o fizera esquecer as sombras, os sótãos, as ruínas que seu peito abrigava. Sereno, prostrava-se nu diante dos olhos densos e ternos de uma menina mulher. Corpo em fogo, sentiu um caco de vidro  sangrar seu estômago, de repente suas mãos já eram sangue. Recolheu as mãos, preocupou-se em cobrir os espinhos do peito, em esconder a azia, os vãos no canto da casa, em esconder o corpo, em pegar a coberta e dormir aquela hemorragia interna. A menina funda na sua devoção à tristeza do homem, nem percebia as raízes verdes e fortes que lhe furavam o estômago. O primeiro nó foi dado, regaram a tristeza um do outro, a ciranda do desencontro crescia, ainda sem mãos dadas.
Ele sorriu, fingiu uma alegria amarela, mentiu duas vezes em cada frase, ela retribuiu o sorriso e fingiu acreditar.
Meses sem a encontrar. Evitou o bar do primeiro encontro. Retomara as pétalas cinzas da memória. Comprou sapatos novos, gravatas novas, fez a barba e mentiu pro espelho. A menina não lhe arrancou os dentes amarelos, nem cuspiu nas suas velhas certezas.
O andar torto, os olhos imprecisos, as pedras no casaco e um cinza que insistiu em ficar, assim a moça de olhar de água o queria. No vão faltou carne onde escorreu verbo. O preço do pão é caro, a alma pena.
Ele telefonou meses depois, foi gentil e clichê, foi sincero e limpo, não forjaria alegorias vazias numa primavera tão bonita. Ela aceitou o convite, ele a escutou e soube quem ela era, no homem um encanto novo nascia, pensou em comprar roupas mais leves, nela um cansaço despontava e teve preguiça de derramar novamente um olhar terno num terno cinza tão gasto. A ciranda do desencontro crescia, mas nela a lua sempre derramava certezas maiores que a rotina turva. Um dia sentiria as mãos dadas e a ciranda.
Na semana passada foram vistos de mãos dadas dançando na chuva. Incendiaram numa trovoada de outubro. A água escorreu nos sapatos novos do homem e lavou o olhar da menina.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

o arrepio DO DOCE - Vinícius Linné


"Candy Spoons", 2010 - Julievr


Que corte trazes na alma para deixá-la escorrer a todo instante? O que te faz querer ser assim, bom e justo e correto e doce. Doce, como se o resto não bastasse. Insistes ainda no açúcar cande, quando ninguém o faz por merecer. 

Tentas, bem o sei, ser bruto. Tentas de todo jeito. Nas palavras ríspidas, nos gestos secos, nos murros bem aplicados entre os olhos. O corte na alma, porém, insiste em não cicatrizar e em deixar escorrer essa calda de mel. Basta uma distração, um curativo há tempo demais sem trocar... e pronto. Lá tu estás a ser gentil e delicado.

Droga! Não é de delicadeza que tu precisas. Não é desse polvilhado de confeiteiro que o mundo sobrevive. Para sobreviver é preciso arder no olho alheio. É preciso inspirar medo, não compaixão. É preciso causar ânsia pelo que é azedo, não vontade de te que tenham mais.

Ser bom não é lucro aqui. Tu já devias ter aprendido. Mas tu não aprendes, não é? Enquanto não levar uns bons pontos, enquanto não suturar a alma, enquanto não cauterizar cada frincha cortada, não irás parar de vazar doçura. E ainda o tentas ocultar de mim, engolir, disfarçar... Se nota no ar, tolo. O ar à tua volta tem o cheiro pesado de caramelos. E não era para ter.

A alma assim infecciona. Assim a ferida não sara. Assim o bom não para de escorrer nunca e o mundo todo apodrece. Ou esqueces? Esqueces que o doce também arrepuna? Eu não esqueço. Não esqueço porque meu mundo já apodreceu inteiro. Sim, eu costumava ser doce também. Até me vazar a alma toda. Até se esgotarem meus confeitos coloridos. Até eu receber na cara a lavagem que é a alma alheia. Porque é isso que a alma deve ser: comida de se dar aos porcos. Com almas doces é que não se faz nada. Às almas doces só o desperdício.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

libertAÇÃO - por Simone Huck


"Libertação", 2011 - Simone Huck
Sua boca era colorida e seus olhos perdiam o cinza dos últimos anos. Sentou-se no chão do banheiro de pernas abertas, não havia mais lágrimas para chorar. Não estava nem cansada, nem feliz, nem triste, nem nada. Nas ausências de tudo, um torpor sempre emerge.
Ali, naquele chão frio, sentia-se leve, e se a janela estivesse aberta, tinha a certeza que voaria por ela como uma pena levada pelo vento. Não pesava nada. Nada ancorava em seus dentes e língua.

Esse torpor perturbado elevou-se até sua consciência e tudo então, pesou. No chão do banheiro havia uma escada, um balde, um par de luvas e dois galões de soda cáustica. Seus olhos brilharam. Para manter sua paz era preciso esvaziar os armários, os bolsos, limpar debaixo dos tapetes, debaixo da cama e entre os vãos dos dedos. Era preciso limpar os vestígios em suas unhas, boca, sexo e alma. Limpar o resto de cada amor naufragado, de cada esperança desiludida. Percebeu que eram tantos cadáveres, tantos ossos, tantas impressões digitais por suas roupas, alma, orelha, sulcos e linfa. Como poderia manter a paz assim? Havia uma multidão de mortos pendurados pelos ganchos de sua lembrança.

Precisava correr.
Precisava limpar.
Precisava manter essa sensação de leveza eterna, etérea, sua. 
Era sua!  

Lembrou que havia um corpo no porta malas do carro e outro no porta luvas. Debaixo da sua cama um saco cheio de braços e pernas que esmurravam e chutavam seu colchão todas as noites enquanto tentava dormir. Debaixo do tapete da sala, várias línguas falavam ao mesmo tempo, atrapalhando o volume do Jornal Nacional. Só a soda cáustica resolveria.

Calçou as luvas e começou o trabalho. Conseguiu juntar dez sacos de cem litros de um monte de anseios anatômicos. Quanto tempo desperdiçado com cada pedaço humano, pensou.
Colocou tudo no porta malas do carro e seguiu madrugada adentro até ser surpreendida por uma barreira policial.
Não tremeu, não piscou, nada abalou.
Abriu a janela do carro e sorriu um sorriso leve e azul que convenceria até o diabo.
O policial sorriu em retribuição olhando o porta luvas que pingava sangue e nem pediu seus documentos, nem quis olhar o carro. Ele, assim como ela, sabia exatamente o significado de um sorriso azul.
Desejou “boa viagem” e autorizou a passagem.

Ela seguiu no ofício de limpar seu estado de leveza até o fim da soda cáustica.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

o QUE PARECE-Dilma alencar


É incrível como o tempo passa, me disseram outro dia, eu pensei em você, sei lá, de repente uma saudade besta de lhe escrever cartas, eu adoro cartas, elas ficaram sem endereço quando você partiu.Eu queria dizer aquelas coisas bobas, dizer que você fica linda de sobretudo preto e batom claro ou de como aquela semana inteira longe quase me mata. Queria que você soubesse que eu continuo vendo o mundo com aquele “jeito torto” que você insistia em dizer que não era o melhor. Estou bebendo mais nos últimos meses, mal fiquei em casa esse semestre. A moça da biblioteca pergunta por você insistentemente e me olha com cara de interrogação quando pego livros de filosofia, meu humor não lhe responde nada.
Semana passada eu quis ter um filho. Eu pensei em você, eu deixei de pensar. Seríamos três. Seríamos tanto. Seríamos.
Exposições, shows, festivais, saraus têm preenchido o tempo, quando há tempo. Você sabe de minha interrogação do bom senso, das construções que engessam.
No sábado, encontrei seu olhar dissolvido numa tela de um artista famoso, eu que nada entendo de arte. Apartada das certezas dos espectadores da exposição, desci até o Anhangabaú, entrei num bar sujo, desses que você nunca vai conhecer. Bebi.
Caminhei junto com os sãos que transitavam pelo centro, que fazem refeições regulares, transam com a regularidade de uma missa e são felizes em seus corpos e casa.
Aprendi a fazer peixe grelhado. Eu sei que você gosta de peixe, mas só agora aprendi.
Eu vou embora da cidade, eu queria que você soubesse. Se eu pudesse escrever uma última carta, diria que eu vou ficar numa casa bonita com prateleiras verdes pros meus livros de poesia. Com um balcão dividindo a cozinha da sala. Ah, que eu estou lendo uma autora nova que lembra você de TPM, que você vai gostar da nova coleção da risqué. Que eu descobri teorias semânticas e autoras que pesquisam a retórica dos sentimentos. E que eu desconfio de tudo isso, mas amo a novidade. Na universidade tem umas flores brancas que lembram suas mãos.
 Continuo com minhas manias: andar por aí sozinha. Ontem fez uma tarde linda, eu quis dividir com você. Daria meu olhar só pra você, você guardaria meu sorriso.
Às vezes você dói tão bonito que se eu dissesse ninguém acreditaria. 

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

pERDIÇÃO - por Vinícius Linné


Primeiro esqueceu o nome em cima da mesa. Depois, como se o visse, apanhou-o, mas já nem lembrava para que servia, de modo que botou no bolso e ali o deixou. Ao lavar a calça, a mãe não procurou nada nos bolsos, o nome ali ficou. Com a água e as giradas de torvelinho, o nome se desfez, perdido para sempre.

Já sem nome, nem falta de nome, ele continuou a perder as coisas, distraidamente. A sombra, deixou, numa tarde de muito sol, sobre o chão quente da praça. Tirou-a um pouco, como que para aliviar o cansaço de sempre carregá-la, e esqueceu-a lá. No outro dia, quando deu-se por conta e foi buscá-la, já não havia nem sombra da sombra.

O amor, que apertava o peito, ele tirou para poder respirar melhor. Era um amor tão bonito. Meu Deus, tão bonito. Mas não servia para muito. Apesar da beleza era doído. Doído como um sapato que um dia servira bem, mas agora apertava os pés. Ele até pensou em doar o amor a alguém. Era uma pena simplesmente desfazer-se dele. Mesmo apertado e machucando, continuava tão lindo o amor. Colocou-o em uma sacola. Doaria quando passassem arrecadando coisas desse tipo. A empregada, porém, enganou-se com as sacolas e, ao fim do dia, colocou o amor no lixo. O caminhão levou.

Algum tempo depois, o homem notou horrorizado tudo que perdera. E notou, mais horrorizado ainda, que, mesmo com as perdas, continuava a existir exatamente como antes. Nada, absolutamente nada havia se alterado. Já sem nome, sem sombra e sem amor, ele continuava vivendo da mesma forma que sempre vivera: sem motivo.

Então que era a vida?

Nada. 

Ou antes perdição. De tudo, inclusive de tempo.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

(...) - por Simone Huck

Quando cheguei, a casa, o armário e o chão estavam vazios. 
Nada escorria. 
Nada dizia. 
Nada queria.
As palavras fizeram as malas e partiram.
Mudez. Mudez de vogais e consoantes traduzíveis. Nenhum acento para salvar uma literatura inteira, a minha, ao menos. 
Não havia sombra em meu corpo.

Procurei alguma explicação para tamanha calmaria diante desse cenário. Fechei os olhos. Estaria participando de um cinema mudo? Ninguém respondeu. Ninguém escreveu. 
Há dias brancos que não deveriam existir.

Da minha boca as palavras foram dissecadas sem nenhum sinal de cicatriz pela traquéia. Palavras costuradas por fios cirúrgicos invisíveis.

Sim, há muitos dias invento uma vida, mesmo que muda.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

àS VEZES- por Dilma Alencar.


Às vezes acordava assim, estranhando a própria solidão. Cueca, calça, camisa, sapato. Leite.
Rua.
A avenida com sonhos engarrafados buzinava o desespero dos que querem chegar. Andou até a padaria. Entrou, sentou, pediu pão com manteiga e café puro. Ao redor, homens mastigavam o itinerário do dia, olhos atentos ao noticiário, bocas afiando as verdades televisivas.
O homem ansiava pelo transbordamento, pela cisão, pelo fim do pó nos versos. A mão amparava a cabeça. Os cotovelos sobre a mesa. Olhava sua carteira, seu celular, suas chaves, o copo americano quase cheio de café puro e amargo.
No último fim de semana, tentara uma aproximação de corpo. Já esquecera o nome, o peso, o número, tinha certeza que também fora esquecido.
Uma nostalgia de verde, de cheiro de capim molhado lhe invadiu o olfato, respirou fundo, mas regurgitava palavras azedas nos últimos meses.
Decidiu não trabalhar naquele dia. Andaria.
Andou.
Atravessou a faixa de pedestres. Seguiu a calçada. Uma igreja à vista, o espetáculo: grandes estômagos, nutridos com açúcar, buscavam mais. Obesos e mórbidos de arrotos platônicos.
Na calçada, um homem dormia, um rato passava em direção ao córrego, um outro na cadeira de rodas exibia dentes brancos e largos enquanto distribuía panfletos cristãos.
Aproximava-se de um grande cemitério, entrou.
Mirou por instantes insistentes uma mulher de preto, preto em rímel, meia,vestido,salto, óculos. Ela secava as lágrimas, ele fitou em seus olhos chuvosos a agudeza do fim, como tumor explodindo, como cio molhando, como tudo que É sem mais, mas.
De repente seu peito já era dor, seu sexo já era sim. Deu dois passos em ré, abaixou a cabeça e saiu.  Um corpo morto seguiu, o corpo vivo e morno seguiu seu destino de casa. Nós nos punhos a serem desfeitos, apressou o passo. O repente de um choro ia lhe desgovernando a face. Trêmulo e suado, tentava abrir a porta.
Tomou água, ligou a televisão. Em cima da mesa estava a jarra de plástico cheia de leite, que ele deixara ao sair. Pegou a jarra e despejou o líquido no copo, pálido e incrédulo notou que no leite boiavam vermes amarelos e gordos.
Às vezes acordava assim, grave e incrédulo da vida.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

NAS tintas DE RIMBAUD - por Vinícius Linné




Da primeira vez que perguntaram quem já ouvira falar de Rimbaud, ela ergueu a mão, orgulhosa por ser a única da sala. Rimbaud, sim, o pintor. Como ninguém ouvira falar dele? E justo ali, em pleno mestrado.

Sua sorte foi o professor ter seguido adiante, sem perguntar-lhe nada. Quando ele disse que Arthur Rimbaud fora um dos grandes poetas franceses, ela quase ficou sem cor. Então não era pintor? Com quem ela lhe confundira? Não sabia dizer. Por toda vida ligara o nome “Rimbaud” à pintura. E agora isso? Melhor era escutar.

Escutou. Escutou que apesar do sucesso todo, dos elogios, da consagração precoce, da genialidade, dos prêmios, da escrita única, dos poemas em latim, dos poemas em francês, do anarquismo, dos desregramentos do sentido, da paixão por Paul Verlaine, daquele encontro em Bruxelas, de Uma estação no inferno, de tudo tudo tudo, Rimbaud desistiu de ser poeta aos 20 anos e foi ser traficante de armas na África.

Ela escutou estarrecida. Porque para ela também só existia o sucesso e suas firulas todas, as pompas de ser reconhecida e admirada. Para ela a desistência não existia. Tanto quanto um Rimbaud escritor. Na mesma aula, porém, passaram os dois a se fazer presentes: o poeta e a rendição.

Sim, ela podia se render. Ela podia desistir. Ela podia dizer não às próprias expectativas. Ela podia dizer adeus à própria carreira. Ela podia dizer “foda-se” aos seus três livros lançados. Ela podia, se quisesse ela podia, ir para o interior, arrumar um marido estúpido e parir seis filhos. Ela podia envelhecer cuidando da casa, dando comida às galinhas e falando só da vida alheia.

Meu Deus, que coragem, no entanto, ela precisaria para desistir. Para dizer não. Para admitir que nada daquilo a satisfazia mais. Nem as festas, nem as prendas, nem os mimos pelas participações e falas em eventos. Nada fazia sentido. Dar milho às galinhas era mais útil. Então não viam? Rimbaud viu. Os homens precisam mais de armas do que de versos. Precisam mais de filhos do que de livros. Precisam mais da vida alheia do que da própria.

Pensou tudo isso. Tudo...

No fim do curso, entregou ao professor um artigo sobre as inferências homossexuais em O coração torturado. E apresentou-o depois em dois ou três simpósios. 

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

bISTURI do tempo - por Simone Huck

 "Sem título", 2010 - Simone Huck

Eram feitos de carne, seus ossos. Qualquer dureza que intencionasse lhe sustentar. Era feito de abril seu outubro cinza, quieto, quase morto. Ele trocava a música, a roupa, a direção do carro e ainda assim, tudo afligia seu pulmão desesperado por paz. Não, não estava em guerra. Nem em conflitos. Não haviam mais medos ou dúvidas; estava na verdade, branco. Sem cores na alma ou na pálpebra. Sem vermelho nas veias ou nas teias. Estava lentamente morrendo por dentro. Sombras fantasmagóricas beijam nosso presente com lábios de passado.

Trouxeram a maca da urgência. Colocaram todas as suas veias sobre ela. Um sistema sanguíneo indo para uma sala de transfusão. Quiseram lhe injetar vermelho, roxo, amarelo ou laranja. Qualquer cor que pudesse lhe colorir. Era urgente a tentativa, vão o movimento. Havia perdido qualquer tipo de possibilidade no dia em que ela lhe negou três vezes:
Não
Não
Não

Nesse dia não havia Paulo, Cristo ou galo cantando. Soldados do exército romano não apareceram. Nenhum interrogatório se levantou da terra seca. Ali, ele soube que estava sendo sacrificado pelos problemas particulares dela: sua casa, sua família, seus filhos, suas contas e traumas. Na intenção de reparar seu passado omisso, ela omitia seu melhor presente, seu melhor homem, seu exclusivo amor. Condenou-os a um eterno purgatório simplesmente porque não o enxergou quando era preciso nem ousar piscar.

Os anos seguiam.
Ele sem sangue. Ela, sem retina.
Nada mais tremia.

Semana passada ela entrou em cirurgia. Estava tão cega, tão cega que nem mais conseguia sair de casa. Tinha dificuldades para levantar da cama sozinha.
Trouxeram a maca da sala de cirurgia, colocaram seus olhos sobre ela e levaram o cego par para raspagem. Depositaram os dois num recipiente com água pura. Era preciso retirar a camada grossa de sal. Lágrimas solidificadas. Com luvas e muito cuidado, os médicos pegaram os olhos nas mãos e descascaram cada um deles até a retina ficar novamente limpa e doce. Colocaram tudo no lugar. Pronto. Ela ganharia alguns dias de luz. Voltou para casa caminhando. Não estava feliz, mas também não estava triste. Estava, lentamente, morrendo por dentro.

Havia um altar particular no coração de ambos. Velas vazias queimavam saudades diárias. Eram incapazes de refazer os caminhos perdidos, as palavras atropeladas; retomar os anos onde foram simplesmente, felizes. Instalou-se as pedras da incapacidade. Só atravessava quem era morador local. Não moravam no mesmo bairro, nem na mesma cidade. Dias impossíveis sorriam manhãs de café com leite. Tinham dificuldades para dormir nos últimos anos. O amor amanhecia atrás da porta do quarto, incansavelmente. Vida transformada em migalhas para alimentar estômago vencido.

Semana passada ele foi novamente pra cirurgia. Tinha passado a semana revendo as mais de sete mil fotografias que tinham juntos. Não resistiu. Taquicardia. Asfixia. Braços formigando. Trouxeram a maca. Colocaram seu coração em cima dela e correram para a emergência cardíaca. Seu corpo, vendo a cena, desejou que tudo pudesse acabar ali. Será que era possível, com um bisturi, arrancar o amor que sentia por ela do seu miocárdio? Na hipótese de um possível sim, sorriu. Encontrou paz nesse sorriso.

Semana passada ela foi novamente pra cirurgia. Havia passado a semana toda falando nele. Os dentes não aguentaram. A língua secou. O palato derreteu pela acidez das lembranças mortas. Os lábios quase gangrenaram pela repetição do nome dele. Colocaram sua boca em cima da maca e a levaram para a sala de cirurgia. Seu corpo, vendo a cena, desejou que tudo pudesse acabar ali. Será que era possível, com um bisturi, arrancar o gosto dele das suas insistentes papilas gustativas? Arrancar a imagem dele escondida entre seus dentes? Na hipótese de um possível sim, sorriu. Encontrou paz nesse sorriso.

Tudo tangia a uma incansável e débil tentativa de se apagarem.
Há esperança na mentira.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

tERNURA-por Dilma Alencar.


Cúmplices em sim, sorriam à tarde, ao bar exótico, aos rapazes desejosos de suas companhias.  Uma, séria, falava de trabalho, de trânsito, de política, de pensadores pertinentes para repensar os novos paradigmas, a outra, irresponsável, radiava um cheiro de incenso, sorria, bebia. Tirou um livro sujo e velho dentro de sua bolsa de pano. Escreveu: língua e silêncio.
Saíram.
O sol invadia de luz e calor seus corpos nus, no chão da sala. Uma janela grande, com cortinas abertas, dava para um jardim, onde envelhecia um banco de madeira.
Na casa, o silêncio brindava à beleza das mulheres nuas. Acordaram com as mãos deslizando em procura, tato dizendo poesia, pele instruindo gozo. A libido, a febre.
Um espanto e um encantamento afloraram dentro daquelas mulheres ao perceberem que seus olhos brilhavam com uma intensidade nova, não se sabia se diabólica ou santa. Brilhantes, macias, quentes, surpresas daquela mansidão de tempo e espaço, como se o mundo dormisse pra sempre e lhes restasse apenas viver somando suspiros. Abriram a janela, um cheiro de terra molhada anunciou que do lado de fora também chovia.
Frutas em cima da mesa, água gelada e beijos longos: desjejum. Um derrame de carinho ininterrupto excitou mais uma dança.
As palavras se perdiam na sintaxe dos seus corpos, as interjeições eram setas, semânticas da carne e da água, eram os acordes dissonantes, mágicos.
O cansaço não veio, sorrisos e olhos claros incendiaram suas vontades, um nó de fitas coloridas enfeitava o tornozelo de uma, um brinco de coruja mostrava-se nas orelhas do outra, aos poucos descobriam uma à outra, pássaros dançavam nas costas desta, com umas letras que a aquela não decifrou, lhe encantou o mistério da costela, lhe excitava a tinta preta na pele pálida. Seu sorriso foi a melhor prosa já escrita pelas mãos místicas de uma doce desconhecida.
Foram maiores que o espaço da carne, os olhares eram faróis iluminando horizontes, a sala, o mar se fazia vertical no arrepio do umbigo, o inconsciente gozava aonde o paladar alcançava e enfeitiçava as duas almas com azul, a casa ia tomando um amarelo crisântemo.
Anoitecia.
Dispersos na sala: chaves, cereal, brincos, colares, lingeries, estojos, livro, lenços, lápis, celulares, perfumes, aliança.
Reuniram seus pertences, uma ficou, esta morava flutuante em ternuras e esperou até aquela noite pra dizer sim .  A outra voltou tonta, com duas toneladas de luz nos olhos, nunca mais se perderiam, se pertenciam em laço, nó, alma.
Nasciam duas deusas, choveu durante uma semana. Flores lilases molhadas enfeitaram a cidade, poucos notaram. 

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

O homem OPERADO - por Vinícius Linné

Evoeh entregara todos os documentos três meses antes do prazo previsto. Natural, portando, que lhe chamassem para ser o primeiro. Foi sem emoção que compareceu ao escritório psiquiátrico e respondeu ao questionário padrão, tendo sido aprovado prontamente.

Suas causas estavam bem explicadas, justificadas em mais de quarenta e duas laudas impressas. O próprio comitê avaliativo quase desejou para si o procedimento, tamanho o poder de persuasão das palavras de Evoeh. Não se podia mesmo esperar menos dele. Era doutor em História, Linguística, etc.

O procedimento era pioneiro, os riscos eram grandes, a junta médica explicou tudo pessoalmente a Evoeh.

— Pode-se morrer, o senhor está ciente disso.

— E daí? Viver assim é ver morrer o peito um pouco por dia.

— É irreversível.

— Eu sei. Como não seria se vai reverter o que me aconteceu ainda na infância, sem eu ter pedido?

— Pode ter consequências imprevistas... Sequelas, danos...

— Atravessar uma rua também tem consequências imprevistas. E o senhor as atravessa, não doutor? Então...

Os próprios médicos relutavam. O experimento era inédito, ainda roçava na ética e arranhava sorrateiramente os juramentos que fizeram a Hipócrates. Mas tendo a verba, o apoio do governo e, principalmente, voluntários ávidos... O quê fazer? Fazer.

No dia da cirurgia tentaram mais uma vez debandar Evoeh. Ele permaneceu impassível. Então não viam? Não viam que a cirurgia era a cura definitiva para a depressão que o assolava? Não viam que só assim a tristeza escorreria dele junto com o sangue perdido? Que só assim ele voltaria a se sentir completo e feliz? Não sabiam de nada esses médicos. Eles mesmos haviam pesquisado, listado os benefícios, divulgado a cura de se ser quem se é. E agora estavam ali, temerosos, acovardados diante do próprio poder.

Estavam assinados os papéis? Sim. Estavam encaminhados os documentos? Sim. Estavam aprovadas e carimbadas todas as fichas, todas as autorizações, todas as solicitações e isenções de responsabilidade? Sim. Então que aplicassem a anestesia e fizessem logo o que tinham de fazer.

Fizeram.

Quando Evoeh acordou novamente já o fez sorrindo, embasbacado. No quarto de recuperação, o médico lia o prontuário em que fora registrado o sucesso da operação. Todas as letras haviam sido retiradas do cérebro, apesar do “L” ter dado um certo trabalho – não entendiam o porquê. Os livros lidos também foram removidos completamente, nem lembrança das capas ficou. Houve um pequeno incidente, mas já o haviam previsto, de modo que podia ser incluído como resultado benéfico da operação: a consciência e a criticidade haviam sido afetadas. Talvez de modo permanente. As habilidades de fala também sumiram, bem como a empatia, o conhecimento de mundo e alguns milhares de neurônios. Paciência...

O importante é que Evoeh ficou feliz com o resultado. Agora, aliás, ficará feliz com tudo. Ele está exatamente como queria: novamente um analfabeto. Com o benefício de uma mente para sempre atrofiada,  graças aos neurocirurgiões. Uma mente pronta para cantar as músicas do momento, acreditar no que a TV e o governo dizem e para se surpreender, imensamente, com as maravilhas de Deus e da vida – e da vida – que, enfim, é bela.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

aranhas NO PEITO - por Simone Huck

Caminhava apressado quando percebeu que a camisa apertava sua intenção de ser feliz. Abriu a porta da sala, entrou, jogou as coisas no sofá e apressado escancarou botão por botão da camisa azul. Queria ter vestido preto naquele outubro fúnebre. Cores escuras mentem nossa possível luz. Estava tão cansado. Mais um dia desnecessário no seu calendário particular de perdas. Já não era possível tocar o passado feliz.

Enquanto abria a camisa, conseguia perceber o emaranhado de teias. Era fato: havia nascido mais uma aranha em seu peito. Estava perdendo o controle de quantas famílias aracnídeas habitavam seu tórax. Como controlar as pragas se há dias andava úmido, escuro e triste? Acumulando velhas lembranças, abandonos; tudo propício para que a sua praga interior se alastrasse rapidamente. Fantasmas brindam a noite nos sótãos de nossas almas secas.

Trocava a camisa várias vezes ao dia tentando esconder a proliferação das suas famílias pessoais. Ajeitava o tecido de algodão acomodando da melhor forma cada nova aranha nascida no peito. Às vezes seus particulares predadores se irritavam com o aperto de suas angústias e lhe envenenavam. Não lhe eram cúmplices, nem amigas. Eram picadas em qualquer hora, estivesse ele em qualquer lugar: no mercado, na padaria ou simplesmente percorrendo os doze quilômetros diários que insistia em fazer a pé, na tentativa de refazer os caminhos da sua passível perda. Alimentava-se das paisagens mortas da cidade enquanto elas, alimentavam-se das paisagens mortas da cidade dele. Era uma simbiose. Só ele emagrecia.

Devorava o caminho de volta para casa com pés e olhos ávidos. Abria cestos de lixo, revirava latas, procurava uma palavra. Havia de encontrar. Sua ânsia era tanta que criou o hábito de roubar cartas nas caixas de correio vizinhas. As aranhas do seu peito também tinham fome e angústias, queriam simplesmente saltar dali, atravessar sua epiderme, rasgar sua camisa, quebrar aqueles botões. Garantir a proliferação de suas teias num lugar maior. Novas dimensões para velhos fatos.

Voltava para casa numa dessas tardes vazias quando percebeu que o carteiro estava com a sacola cheia. Era o fim dos quinze dias de greve dos correios. Acendia-lhe a esperança de poder encontrar mais cartas que o comum. Nos últimos anos os e-mails roubaram-lhe o ato, cartas eram raridades, o que só fazia aumentar sua dor. Quando só haviam contas nas caixas dos correios, recorria à uma livraria, pegava algum livro de correspondências entre os amantes e lia, lia, lia. Devorava cada fala e cada interrogação. Sorria com afirmações felizes e só assim conseguia nutrir suas aranhas em seus ambíguos sonhos. Há paz na ilusão. Mas naquele dia foi diferente. Sabia que haviam muitas e muitas cartas acumuladas e que era possível, em alguma delas, ser novamente feliz. Enquanto o carteiro vinha em sua direção, conferindo os números das residências com os envelopes, ele abaixou e fingiu amarrar o tênis. Tossiu. Demorou-se no cadarço o suficiente para o carteiro fazer quase um quarteirão todo, dos dois lados. Quando não mais viu o entregador de cartas, sabia que era hora de ser o ladrão das mesmas. Foi rápido. Era ágil em furtar palavras escritas.

Conseguiu juntar dezessete cartas e apressou o passo. Hora de voltar para casa. Suas aranhas estavam quietas, parecia-lhe que naquela tarde não reproduziriam. Ainda tinha tempo.

Separou as cartas por remetentes. Os remetentes masculinos ficaram a direita e os femininos, a esquerda da sua mesa. Antes de começar a ler, passou um café e sorriu a vã esperança de viver um sentimento, mesmo que roubado. Sempre começava pelos remetentes masculinos. Além de estarem em menor número, eram breves, secos, diretos e quase sempre sujos. Havia muito espaço em branco nas cartas masculinas. Letras pesadas, assuntos diretos. Não haviam muitas aranhas nas cartas masculinas. Homens não sabem escrever cartas, dificilmente saberiam nutrir aranhas - pensou.

Leu a carta de Paulo para Rafaela; fria, direta, sensata. A de Gustavo para Tereza; de José para Estela; de Eduardo para Clarice e de Carlos para Augusto. Das cinco, a de Carlos para Augusto falava de amor e mais se aproximava de uma carta que desejava. Sorriu. Já começou a ser feliz mesmo antes de começar a ler as cartas com remetentes femininos.

Antes de rasgar os envelopes ajoelhou e pediu a Deus que tivesse alguma carta cujo remetente se chamasse Catarina. Sabia que não era um nome muito comum. Mas sabia também que nenhuma Catarina era comum. Por um segundo, desejou com tanta fé que quase uma aranha conseguiu saltar, líquida, de seus olhos. Lembrou das milhares de vezes que suplicou por uma carta que fosse de “Catarina”. Não acreditava que um dia pudesse encontrar. Leu a primeira, a segunda, a sétima, a décima primeira quando já quase sem esperança, seus olhos saltaram e suas aranhas, quase que em conjunto, picaram seu peito e o envenenaram. Era uma dose alta de veneno. Ficou tonto. Segurou na mesa para não cair e pode ler, com olhos embaçados, o nome do remetente: CA-TA-RI-NA.
Não podia ser. Não era possível. Estava ali a sua chance máxima de ser feliz naquela noite. Só naquela noite ou enquanto durassem as breves palavras da suposta Catarina. Há um infinito no finito das palavras. Antes de abrir a carta, colou um papel com o seu nome e endereço no lugar do destinatário. Pronto. Era uma carta para ele. Suas mãos tremiam. Encostou o envelope no peito, suas aranhas acalmaram-se. O papel ficou aquecido na ilusão criada para manter-se vivo.

Abriu. Letras trêmulas e borradas. Catarina chorava quando escreveu.

Estava tão nervoso que sentia as inúmeras picadas. Mais uma dose alta de veneno. Era questão de tempo para não mais respirar. Será que daria tempo para ler a carta até o final? Angústia do início abreviando fins.

Deito meus olhos sobre tua busca. Você não me vê. Tento tocar tuas mãos, dizer que ainda estou aqui. Você não nota. As crianças cresceram, você não viu. Tua sombra construiu estátuas em outra direção. As aranhas multiplicaram-se no quintal. Todos nós seremos envenenados antes do último sorriso. Há um desejo em mim que só você poderá resgatar. Na última primavera, antes da guerra particular devastar nossas vidas, eu e você tínhamos...”

A cadeira tombou e ele agonizou o veneno com a carta nas mãos. Havia tanto para ser lido. Sorriu seu último sorriso. Catarina sempre teve razão. Nesse momento, as aranhas libertaram-se. Solidão envenenada. Brindaram um resquício de luz que a pálpebra apagou. Conseguiu imaginar as crianças crescidas antes do seu coração ser paralisado.
Arabesco das teias. 

terça-feira, 2 de outubro de 2012

a CISMA- por Dilma Alencar

Nas noites de insônia, ele não ligou, não deu notícias. Sua barba grisalha cobriu o rosto doce. Os olhos fundos não diziam para ninguém de sua dor. Madrugadas de cigarros e silêncio inundavam a varanda enluarada. Sentado no degrau entre a sala e a varanda, pensava em viagens de balão num céu estrangeiro. Na cozinha, os pratos sujos tomavam o espaço da pia, da mesa, do fogão. Na geladeira, as batatas e cenouras floresciam, tudo crescia a ausência do homem. Houve dias em que não tomou banho.

Durante os dois primeiros dias, ele ficou nu. Três maços de cigarro, um pacote de café, meio quilo de açúcar e uma ira sem alvo o alimentaram. No terceiro dia, pediu uma pizza e comeu querendo vomitá-la, a fome é mais forte que a dor e por isso tanta gente insisti em acordar. No quarto dia, as contas de luz e de água o esperavam no abrir da porta. Ele as recolheu, lembrou do mundo de fora, engoliu uma saliva azeda de cigarro e insônia. Teve medo.

Abriu os olhos diante do espelho, fechou e abriu os olhos e sentiu a vertigem de se saber só. Embaixo do chuveiro, a espuma, a água, o sêmen, as lágrimas e seu xampu vagabundo escorriam pelo ralo sujo. Tremor da primeira angústia, do primeiro gozo das lembranças dela. O corpo gozava a dor gelada do nunca mais.
No canteiro de sua casa, regou um túmulo, orou para um deus de entranhas fazer flor do mármore frio que ele exibia no quintal.
Vestido para a lida diária, encostado no muro perto do ponto de ônibus, acendeu um cigarro, tragou com mais cansaço que prazer e observou o movimento da vida. Estes primeiros passos doíam, sua mão ainda exibia o símbolo decadente dos cortes frescos. No caminho até a casa dela, pensava nos primeiros sinais do fim. Aquele não cheio de vírgulas e predicações, aquela viagem repentina na qual ela lhe castrou a liberdade exibindo-o como um acessório que dondocas infelizes compram em lojas limpas e refrigeradas. Lamentou as coisas não reparadas. Lembrou dos reclames, de falar sobre superficialidades sociais, redes,rendas. Pensou em comprar uma mochila amarela que vira numa loja do centro. 
Sorriu, por instantes seu rosto alargou-se em esperança, brilhava. Quem o visse no ônibus naquela manhã diria se tratar de um jovem noivo. Depois de um merecido poço escuro, ele reencontrou o vigor que morria rotineiramente entre as coxas, as falas, os lábios, os seios da mulher que lhe trouxe, com a partida, o homem com visgo e sede.

Não negava os dias ruins, de manhã o cheiro de café lhe enjoava o estômago, faltava a harmonia do frescor do corpo de sua mulher, ninfa morena anunciando mel e flor no seu quintal. Sofreu sem gritos a morte do filho que não tiveram, o acampamento que foi adiado pelos motivos de sempre, a viagem de balão que lhe prometera, aquele poema na parede da cozinha, as fotografias em que ela lhe sorria com um derrame de ternura que desequilibrava seus sentidos.
Varreu a casa, lavou a louça, fumou e fez as malas. Antes de partir, compraria a mochila amarela. O túmulo no quintal não lhe deixava dormir, gritava seu nome.
Era a voz dela.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

cleptoMANÍACA - por Vinícius Linné


Ela queria lhe roubar um sorriso e não conseguia. Também, vendia-se fácil ao primeiro macho de dois cruzados. Não bastando, irradiava perfume falso e batom vermelho, era quase tóxica. Para fazer-lhe sorrir, bastaria um comentário inteligente ou um sorriso próprio. Isso ela não tinha. Tentou no lugar a gargalhada falsa, a bebida rápida e o short curto. Não deu.

Ela queria lhe roubar um beijo e não conseguia. Normal, afiava os dentes e os saltos dos sapatos. Preocupava-se mais com a cerveja em lata do que com o coração alheio. Invejou, inventou e desmontou tudo que ele podia ter em volta. Deixou-o só no mundo dela. Nem assim ele a quis.

Ela queria lhe roubar o nome e não conseguia. Difamou, cortou em sílabas e deu às cadelas suas para que lhe comessem. E quanto mais arrastava o nome dele à pedra sabão da rua, mais deixava cair o próprio, perdendo-o nos barrancos infestados de barro e esgoto sujo. No fim, ela própria já se chamava “merda”. E ele, “espelho de aço polido”.

Ela queria lhe roubar a luz e não conseguia. Apagou holofotes, fez tenda de voal para cobrir-lhe o sol, soprou as velas de cada igreja, como se pudesse deixá-lo no amaldiçoado escuro em que ela vivia. Não pôde. Cintilavam-lhe estrelas apesar de tudo.

Então nada dele ela poderia roubar? Nada poderia pegar com as mãos sujas, com as unhas encardidas de sangue? Nada dele poderia colocar na boca podre e sentir desfazer na língua purulenta? Já perdia a esperança...

Foi então que veio a recompensa. Ganhou dele algumas coisas, atiradas como ossos: escárnio, nojo, indignação e total repúdio. Ela recolheu tudo como se fosse manjar doce, embora sujo de terra preta. Sorveu, bebeu, lambeu e não deixou uma gota para trás, engolidora de viscos que era. Aproveitou-se de cada sentimentozinho. Tinha sido, enfim, notada. Roubara-lhe um olhar, de desprezo, mas ainda assim era um olhar.