Evoeh entregara todos os documentos três meses antes do prazo previsto. Natural, portando, que lhe chamassem para ser o primeiro. Foi sem emoção que compareceu ao escritório psiquiátrico e respondeu ao questionário padrão, tendo sido aprovado prontamente.
Suas causas estavam bem explicadas, justificadas em mais de quarenta e duas laudas impressas. O próprio comitê avaliativo quase desejou para si o procedimento, tamanho o poder de persuasão das palavras de Evoeh. Não se podia mesmo esperar menos dele. Era doutor em História, Linguística, etc.
O procedimento era pioneiro, os riscos eram grandes, a junta médica explicou tudo pessoalmente a Evoeh.
— Pode-se morrer, o senhor está ciente disso.
— E daí? Viver assim é ver morrer o peito um pouco por dia.
— É irreversível.
— Eu sei. Como não seria se vai reverter o que me aconteceu ainda na infância, sem eu ter pedido?
— Pode ter consequências imprevistas... Sequelas, danos...
— Atravessar uma rua também tem consequências imprevistas. E o senhor as atravessa, não doutor? Então...
Os próprios médicos relutavam. O experimento era inédito, ainda roçava na ética e arranhava sorrateiramente os juramentos que fizeram a Hipócrates. Mas tendo a verba, o apoio do governo e, principalmente, voluntários ávidos... O quê fazer? Fazer.
No dia da cirurgia tentaram mais uma vez debandar Evoeh. Ele permaneceu impassível. Então não viam? Não viam que a cirurgia era a cura definitiva para a depressão que o assolava? Não viam que só assim a tristeza escorreria dele junto com o sangue perdido? Que só assim ele voltaria a se sentir completo e feliz? Não sabiam de nada esses médicos. Eles mesmos haviam pesquisado, listado os benefícios, divulgado a cura de se ser quem se é. E agora estavam ali, temerosos, acovardados diante do próprio poder.
Estavam assinados os papéis? Sim. Estavam encaminhados os documentos? Sim. Estavam aprovadas e carimbadas todas as fichas, todas as autorizações, todas as solicitações e isenções de responsabilidade? Sim. Então que aplicassem a anestesia e fizessem logo o que tinham de fazer.
Fizeram.
Quando Evoeh acordou novamente já o fez sorrindo, embasbacado. No quarto de recuperação, o médico lia o prontuário em que fora registrado o sucesso da operação. Todas as letras haviam sido retiradas do cérebro, apesar do “L” ter dado um certo trabalho – não entendiam o porquê. Os livros lidos também foram removidos completamente, nem lembrança das capas ficou. Houve um pequeno incidente, mas já o haviam previsto, de modo que podia ser incluído como resultado benéfico da operação: a consciência e a criticidade haviam sido afetadas. Talvez de modo permanente. As habilidades de fala também sumiram, bem como a empatia, o conhecimento de mundo e alguns milhares de neurônios. Paciência...
O importante é que Evoeh ficou feliz com o resultado. Agora, aliás, ficará feliz com tudo. Ele está exatamente como queria: novamente um analfabeto. Com o benefício de uma mente para sempre atrofiada, graças aos neurocirurgiões. Uma mente pronta para cantar as músicas do momento, acreditar no que a TV e o governo dizem e para se surpreender, imensamente, com as maravilhas de Deus e da vida – e da vida – que, enfim, é bela.
Inveja de Evoeh... MUITA inveja.
ResponderExcluirBelo texto, como sempre. Vou lendo e imaginando, viajando, sonhando... febril, sempre.
Bjs
S
Pois é, Simone. O texto nasceu da inveja que também tenho dele.
ExcluirEu poderia ser tão feliz se analfabeto.
Abraço.
Texto manso e dolorido,seus textos.Admiro, parabéns, gosto deles.
ResponderExcluirObrigado, Dilma. Acho que também eu sou manso e dolorido, no fim. :)
ExcluirGosto das suas leituras. Sempre sensíveis.