quinta-feira, 14 de março de 2013

o HOMEM QUE APAGAVA - por Simone Huck

"Morte, 2013" - Simone Huck
  
Deixou os cabelos crescerem e passou a tomar banho com ácido. Nunca mais cortou as unhas nem arrancou os pelos que nasciam no meio de suas pintas. Não usava mais sabonete e há quatro meses deixou de fazer a barba. Enforcou as silhuetas que habitavam suas poucas memórias e tentou dormir naquela noite de chuva. Definitivamente queria ser outra pessoa.

Mudou todos os caminhos. Adiantou em sete horas e quatro minutos todos os seus relógios. Refez a agenda telefônica. Deletou todos os e-mails e apagou todas as músicas. Passou a se alimentar do mesmo alpiste que dava para os dois pássaros da gaiola que ficava em cima da geladeira vermelha, vazia e enferrujada. Não, não eram diabéticos; nem ele, nem os pássaros. Acostumou a beber o sal de suas lágrimas e não mais diferenciava os dias com a ponta de sua língua. Definitivamente procurava outra promessa.

Passou a não conversar com ninguém. Fingia uma surdez. Acentuava uma mudez. Andava pelo lado oposto das calçadas, em eterna contramão. Olhava para o asfalto e já não percebia, ao alto, como as árvores estavam. Se eram flores ou sertão. Não sabia qual estação pisava; em qual bairro chegava ou saía. Definitivamente queria outra alegoria.

Mês passado encontrou um papel colado num poste, entre rabiscos e grafite, o endereço de um tal Seu Joaquim. Por duas garrafas de cachaça e talvez cinquenta reais, Seu Joaquim prometia em apenas três dias apagar a memória de qualquer pessoa. Faria um desenho novo. Depois de algumas décadas, levantou a cabeça, anotou o telefone do Seu Joaquim num papel velho que estava no seu bolso sujo e decidiu ligar antes do fim da noite ou do dia. Definitivamente queria outra dinastia.

2 comentários:

  1. Há dias em que dá vontade de conhecer Seu Joaquim...
    Muito bom o seu texto, Simone!
    Abraço

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  2. "Passou a não conversar com ninguém. Fingia uma surdez. Acentuava uma mudez."

    Esse homem parece com alguém que conheço. Com alguém que encontro de quando em vez. Especialmente naquele lugar... o espelho.
    Muito bom.
    Abraço, Si.

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