quinta-feira, 29 de maio de 2014

dESAMOR - por Vinícius Linné

Ela não te ama mais. E pediu para eu dizer.

Ela não te ama mais, mas agora coloca mel em todos os chás. (Ele tem a exata cor dos teus olhos). Ela não te ama mais, mas deixa a janela aberta quando há tempestade e sempre que é outono. (Ela sorri toda quando uma folha seca entra pela janela. Era outono quando vocês quase se beijaram, não era?)

Ela não te ama mais, mas agora lê sonetos de Shakespeare. (Em cada um ela vê o teu nome). Ela não te ama mais, mas vê sempre os mesmos filmes, especialmente aquele do DVD que ela embrulhou para te entregar e nunca o fez. (Ela guardou até o embrulho: laço, fita e perfume).

Ela não te ama mais, mas bloqueou teu perfil no Facebook. (Só para não ver tua foto e correr o risco – ridículo – de te amar de novo). Ela não te ama mais, mas ainda ouve todo dia as tuas músicas (E chora, às vezes, naquela de que você gostava mais).

Ela não te ama mais. E pediu para eu dizer.
É verdade. Ela não te ama mais, mas amou.
E, sinceramente, foi a única.

terça-feira, 27 de maio de 2014

pALAVRAS MATIZADAS - por Adilma Secundo Alencar.

Ela arrasta meu coração por ladeiras de cidades antigas, oferece às rainhas do mar preces em nosso nome, ela come um mistério por dia. Quantas páginas escritas separando a intimidade de nosso corpo. O tempo é curto para tanto espaço alargado pelas suas mãos. Ela vai fazer enchente de tanto me trazer mar.

A força dos meus pulsos atada à vontade de levá-la para ver o abandono de uma palmeira na areia da praia, ou um sol se escondendo as serras de Jacobina, no sertão. Eu queria fugir e deitar meu sonho no dela,mesmo que seja careta e contrário à marcha do mundo. Meu delírio entre suas pernas significa uma linguagem de calor,um viço de meia noite em plena tarde clara, um dengo amolecendo o encontro dos nossos mistérios por trás da pele, por trás dos cílios,dos seios,das ancas, da língua, por trás do toque que erradia a luz é tudo mistério.

O encontro é perfume e cio espalhados no lençol, nos cabelos, escorrendo suor de flor serenando. Luzes embaixo da pele, faiscando nos olhos, nos dentes. Toda a carne ofertada a nossa fome. Nós colhemos palavras vermelhas, maduras, suadas, matizadas de cores quentes. Passamos, brilhantes, pela guerra ofertando flores.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

eSCOLHA - por Vinícius Linné

Há dias em que ele escolhe a desatenção. Sim, ele escolhe. O aleamento, a palidez, a impessoalidade de quem passa pela vida à passeio. Ele escolhe flanar nas ruas, sem dar atenção a qualquer um que diga seu nome. Ele escolhe até não reconhecer o próprio nome, não dito assim, em boca alheia, com outro tom que não o dela.

Há uma espécie de loucura seletiva, então. Uma loucura bem mansa e um pouco tristonha. Loucura de olhos baixos e baços, de não cantarolar na rua, de não cumprimentar os vizinhos, de não responder os emails. Loucura de só existir, de não viver, ver, sentir, ouvir.

Ele escolhe pausas, ele coleciona vazios, ele se deixa seduzir pelo não estar onde se está. E esse, então, passa a ser o seu ideal máximo: não estar. E não ser, obviamente. Não ser chefe, não ser colega, não ser o que sorri ao falar com quem não se gosta ou não se conhece. Ele escolhe internalizar. E, por isso, é chamado de louco. E não é louco qualquer um que abdique da razão do outro em benefício do próprio coração? E não é louco aquele que, podendo escolher, se escolhe?

terça-feira, 20 de maio de 2014

dESAGUOU - por Adilma Secundo Alencar.

Preparou um chá de canela e sentada no sofá cismou sobre os caminhos espinhosos que a levaram até ali, chorou que nem criança sem mãe. O copo de vidro, desses copos de boteco, virou mil pedrinhas transparentes. No instante do soluço e do corte no pé, ela sorriu uma alegria sem amparo e foi iluminada, o arriscado sempre fora seu amigo desde que saiu de seu canto de mundo, vasto e duro.

A dança do mundo obedece a chicotes, a angústia de saber a massa branca de nomes que segura arma tão letal, em salas limpas. Sob marquises enferrujadas, agonizam homens de sua mesma matéria, com pernas e braços apartados do óbvio conforto de ter onde ir e quem abraçar. Ela não quer orquestrar o ódio que já brilha sem nome em tantos meninos, ela queria mesmo, senhores, ela queria mesmo era humanizar, era amansar a violência nas raízes da linguagem.

Ela decidiu tomar um atalho, mesmo com um vidro espetado no peito do pé, porque os seus pés cresceram em terra seca, rachada de sol, uma terra sustentada durante o sempre pela palavra, pela promessa, pela fé nos olhos de Santa Luzia, oferecidos num pires, enfeitando a sala de sua mãe. Ela vai, porque ela é forte, é preciso muita força para se alimentar de nuvem. Deixem que ela vá, deixem.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

uM DIA - por Vinícius Linné

Às vezes, Clarissa tinha a impressão de que a vida, a vida de verdade, jamais começaria. Mas isso era antes. Agora, aos vinte e sete, Clarissa tem certeza. A vida, para ela, não começará.

É como se a vida fosse um baile de salão. Uma festa rica, em um salão iluminado de cristais, cujas janelas se abrem frescas para o verão e a noite. Um baile repleto de cetins e tafetás, lencinhos e valsas céleres. Um baile muito antigo e bonito para o qual ela não fora convidada.

Clarissa, no entanto, é feita de sutilezas e, sendo assim, ela descobriu o baile, ela ouviu a música ao longe, ela encontrou caminhos, ela desfez impossibilidades, ela espiou pelas janelas e entrou, enfim, no salão. Em vão. Entrou para descobrir que não pertencia àquele lugar.

A língua em que os outros cantavam não era a sua. Os passos da dança, ninguém lhe ensinara. Nada lhe diziam os panos, os lustres, as janelas e os cantos repletos de amassos do salão. Seria inútil, pois, ficar ali.

Mesmo assim, Clarissa ficou. De teimosa, ou de sutil, ficou a olhar a alegria que jamais lhe pertenceria. Ficou a se fascinar com a vida dos outros, mesmo que inventada. A marejar os olhos com as danças que ela nunca dançaria, a murmurar baixinho a melodia do que os outros cantavam à voz solta e que nunca seria dela. 

Às vezes Clarissa percebia a verdade angustiada: ela era só um atrapalho no baile alheio. Mas logo ela fingia esquecer e voltava a se consolar, imaginando que algum dia a notariam. Que algum dia a convidariam para uma das mesas, ensinariam a língua e a dança e diriam o porquê terem esquecido o convite. 

Nessas horas ela chegava a se imaginar amada. Coitada, ninguém a via. Nessas horas ela escondia sua certeza e tinha a esperança (de novo) de que a vida começaria, um dia.

Um dia...




quarta-feira, 14 de maio de 2014

fOGUEIRA - por Adilma Secundo Alencar.

É de sorriso o nosso encontro. O cansaço, a comida, as contas, os livros, a discrição, tudo fica abandonado esperando nossa saudade se acalmar um bucadinho e sossegar ainda que rapidamente da urgência do corpo  que a semana adia.

O lugar mais desejado do mundo é qualquer um que permita nossa nudez com o corpo e com os olhos, porque às vezes na metade de um café, na rua, de uma aula, séria, meu olhar volta-se nu para o teu e quando corre ao redor querendo chão é flagrado nu, como na primeira vez que vi as nuvens do alto, como da primeira vez que eu li Pessoa com o sangue. O que é mostrado nos meus olhos nus não é medida, é antes, desregramento, porque mais demoradamente as paisagens fixam poesias nas minhas retinas às vezes cansadas, às vezes meninas dessa vida toda. Todos os ímpetos acontecidos num passeio simples pela cidade já conhecida,vontade de conhecer o mundo todo e no fim do dia dormir na mesma cama que a tua.

Nos teus olhos com essa precisão de faca que teu rímel traça moram mil ou mais mulheres, tantas que são todas você. E todo dia é uma que tira minha roupa e acende meu olhar em imperativos minados de
pimenta, mel e cachaça. Chora lágrimas vermelhas, azuis, lilases, verdes, laranjas como o sol de verão, tem todas as cores nos olhos miudinhos , eles acendem nos meus umas luzes de fogueira de São João e de sol.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

eXORCISMAS - por Vinícius Linné

Para ti eu preciso repetir tudo. De novo e de novo e sempre e outra vez, como quem reza uma ladainha, como se eu falasse uma língua de lengalenga sem fim. Por acaso entendes as palavras que te digo? Eu rezo por ti, eu derramo bantos sobre a tua cabeça, enquanto tu praguejas e esparges merda fresca sobre a minha. Eu te abençoo, tu me esconjuras. É sempre assim. Eu te salvo, resgato, te monto em um pangaré alado. Tu me deixas, todas as vezes, como fugiria se eu fosse o próprio diabo. Teu inferno são outros. Nunca ouviste dizer?! Ah não?! Como não!? Como não se fui eu que disse e repeti, de novo e de novo e sempre e outra vez.

Vês? Não me vês. Não me ouves. Não me falas. Não me beijas. Teu inferno sou eu? Porque, sinceramente, o meu tem sido tua incompreensão. E temo que, no primeiro exorcismo, tu acabes banida junto com ela.

terça-feira, 6 de maio de 2014

oLHOS DE ESPANTAR O BREU -por Adilma Secundo Alencar.

Há dias em que não é fácil amolecer o olhar,porque há muita má vontade no mundo. Todo dia tem gente puxando o tapete de outra gente, gente irmã que só por uma estupidez muito grande se estranha.Eu não ligo a TV e quando ligo é para ter certeza que ela deve permanecer desligada, embora não veja com frequência a programação estúpida de nossas novelas açucaradas  e burras e de nossos jornais fedidos de cadáveres abandonados e legisladores engomados,mesmo assim ,ainda assim percebemos a repetição dos discursos de violência que a mídia propaga, nas pessoas próximas, nas conversas na padaria. 
É por pura irresponsabilidade que eu viro a cara para essa luta por uma vida que eu não invejo, eu não invejo homens e mulheres com seus relógios de ponto,seus cargos, suas úlceras comendo o estômago e seus olhos escorrendo ambição, me deixem passar ,senhores e senhoras, minha marca no mundo eu quero deixar nas areias dos oceanos que ainda desconheço, meus signos no mundo são de amor,são de letras derretendo em pressa de corpo.Que Deus não permita que suas mágoas e ambições pequenas e burguesas ,suas ambições de móveis novos e carros do ano  maculem por mais de uma hora meu riso irresponsável de quem ficou a manhã inteira desejando mandar flores,escrever cartas , viajar pra ver o horizonte de um ângulo novo. Eu fiz pacto de riso , fechei o corpo para a mágoa, meus pés são do samba mais que da lida, meus olhos são de meu bem, os faróis são só pedaços de tempo que aguardam coloridos minha passagem para olhar estrelas azuis enfeitando um colo de deusa de água. O sal do suor não produz tumor, passem longe de mim, senhores da guerra. Continuem sua ladainha e deixem meu carnaval,porque a avenida é minha, porque meu batuque não é de sua reza branca,porque eu não sou dada à profecias de fim, ofereço flores as suas armas, e atiço ao mar sua inveja, para ser engolida pelas ondas e pela fundura dos bichos ainda não catalogados.
Ter piedade é humilhar o outro, porque somos todos uma carne repartida, porque somos, mas senti piedade essa semana, tive piedade pela nudez suja que vi nos olhos de gente corrompida por um desejo escroto de fazer o mal, tive também medo e por medo cuidei de minhas flores, semeei minhas sementes de  sorriso no coração de quem me rodeia,porque o único imperativo é ver com olhos de sol, olhos cada vez mais amarelos para espantar o medo e atravessar esse breu que tanta gente alimenta nos olhos.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

sPOILERS - por Vinícius Linné

Todo leitor de livros acaba por se tornar, impreterivelmente, também um leitor de futuros. Para tal, não precisa utilizar-se de baralhos, linhas de mão, cristais, búzios, borras ou runas. Basta que se aprenda a ler pessoas. E sim, todo leitor de livros transforma-se em um leitor de pessoas.

Depois de páginas suficientes e de personagens surpreendentes, o leitor experimenta vivências e subjetividades diversas. A arte não é senão experimentação da vida. Já escreveu George R. R Martin: "Um leitor vive mil vidas antes de morrer, o homem que nunca lê vive apenas uma." De mil vidas vividas alguma lição se tira. Ou não?

Sim. Aprende-se a ver sinais, spoilers em marcas, expressões, falas e tons de voz. Aprende-se a analisar comportamentos, sutilezas, olhares, superficialidades, enfim, delicadas ondas que tremulam à superfície das águas e revelam nela os movimentos de dentro.

É por isso que às vezes me calo, macambúzio. É porque li. Li em alguém uma intenção, um sentimento, algo que quem não lê pessoas não foi alfabetizado para ver. Li um futuro que se aproxima, uma ação previsível que desencarretará em outra e outra, até chegar no que eu já antevi como o fim do conto.

Às vezes eu chego a falar. Cada vez menos, é bem verdade. No fundo, cansei de ser Cassandra. Cansei de ver e avisar sem que ninguém acredite: “Isso é besteira, é implicância, é bobagem, deixa assim, que mal há?” Há. E ele vem. Ele sempre vem, independente de quem não queira acreditar em mim ou nos spoilers.