quinta-feira, 4 de outubro de 2012

aranhas NO PEITO - por Simone Huck

Caminhava apressado quando percebeu que a camisa apertava sua intenção de ser feliz. Abriu a porta da sala, entrou, jogou as coisas no sofá e apressado escancarou botão por botão da camisa azul. Queria ter vestido preto naquele outubro fúnebre. Cores escuras mentem nossa possível luz. Estava tão cansado. Mais um dia desnecessário no seu calendário particular de perdas. Já não era possível tocar o passado feliz.

Enquanto abria a camisa, conseguia perceber o emaranhado de teias. Era fato: havia nascido mais uma aranha em seu peito. Estava perdendo o controle de quantas famílias aracnídeas habitavam seu tórax. Como controlar as pragas se há dias andava úmido, escuro e triste? Acumulando velhas lembranças, abandonos; tudo propício para que a sua praga interior se alastrasse rapidamente. Fantasmas brindam a noite nos sótãos de nossas almas secas.

Trocava a camisa várias vezes ao dia tentando esconder a proliferação das suas famílias pessoais. Ajeitava o tecido de algodão acomodando da melhor forma cada nova aranha nascida no peito. Às vezes seus particulares predadores se irritavam com o aperto de suas angústias e lhe envenenavam. Não lhe eram cúmplices, nem amigas. Eram picadas em qualquer hora, estivesse ele em qualquer lugar: no mercado, na padaria ou simplesmente percorrendo os doze quilômetros diários que insistia em fazer a pé, na tentativa de refazer os caminhos da sua passível perda. Alimentava-se das paisagens mortas da cidade enquanto elas, alimentavam-se das paisagens mortas da cidade dele. Era uma simbiose. Só ele emagrecia.

Devorava o caminho de volta para casa com pés e olhos ávidos. Abria cestos de lixo, revirava latas, procurava uma palavra. Havia de encontrar. Sua ânsia era tanta que criou o hábito de roubar cartas nas caixas de correio vizinhas. As aranhas do seu peito também tinham fome e angústias, queriam simplesmente saltar dali, atravessar sua epiderme, rasgar sua camisa, quebrar aqueles botões. Garantir a proliferação de suas teias num lugar maior. Novas dimensões para velhos fatos.

Voltava para casa numa dessas tardes vazias quando percebeu que o carteiro estava com a sacola cheia. Era o fim dos quinze dias de greve dos correios. Acendia-lhe a esperança de poder encontrar mais cartas que o comum. Nos últimos anos os e-mails roubaram-lhe o ato, cartas eram raridades, o que só fazia aumentar sua dor. Quando só haviam contas nas caixas dos correios, recorria à uma livraria, pegava algum livro de correspondências entre os amantes e lia, lia, lia. Devorava cada fala e cada interrogação. Sorria com afirmações felizes e só assim conseguia nutrir suas aranhas em seus ambíguos sonhos. Há paz na ilusão. Mas naquele dia foi diferente. Sabia que haviam muitas e muitas cartas acumuladas e que era possível, em alguma delas, ser novamente feliz. Enquanto o carteiro vinha em sua direção, conferindo os números das residências com os envelopes, ele abaixou e fingiu amarrar o tênis. Tossiu. Demorou-se no cadarço o suficiente para o carteiro fazer quase um quarteirão todo, dos dois lados. Quando não mais viu o entregador de cartas, sabia que era hora de ser o ladrão das mesmas. Foi rápido. Era ágil em furtar palavras escritas.

Conseguiu juntar dezessete cartas e apressou o passo. Hora de voltar para casa. Suas aranhas estavam quietas, parecia-lhe que naquela tarde não reproduziriam. Ainda tinha tempo.

Separou as cartas por remetentes. Os remetentes masculinos ficaram a direita e os femininos, a esquerda da sua mesa. Antes de começar a ler, passou um café e sorriu a vã esperança de viver um sentimento, mesmo que roubado. Sempre começava pelos remetentes masculinos. Além de estarem em menor número, eram breves, secos, diretos e quase sempre sujos. Havia muito espaço em branco nas cartas masculinas. Letras pesadas, assuntos diretos. Não haviam muitas aranhas nas cartas masculinas. Homens não sabem escrever cartas, dificilmente saberiam nutrir aranhas - pensou.

Leu a carta de Paulo para Rafaela; fria, direta, sensata. A de Gustavo para Tereza; de José para Estela; de Eduardo para Clarice e de Carlos para Augusto. Das cinco, a de Carlos para Augusto falava de amor e mais se aproximava de uma carta que desejava. Sorriu. Já começou a ser feliz mesmo antes de começar a ler as cartas com remetentes femininos.

Antes de rasgar os envelopes ajoelhou e pediu a Deus que tivesse alguma carta cujo remetente se chamasse Catarina. Sabia que não era um nome muito comum. Mas sabia também que nenhuma Catarina era comum. Por um segundo, desejou com tanta fé que quase uma aranha conseguiu saltar, líquida, de seus olhos. Lembrou das milhares de vezes que suplicou por uma carta que fosse de “Catarina”. Não acreditava que um dia pudesse encontrar. Leu a primeira, a segunda, a sétima, a décima primeira quando já quase sem esperança, seus olhos saltaram e suas aranhas, quase que em conjunto, picaram seu peito e o envenenaram. Era uma dose alta de veneno. Ficou tonto. Segurou na mesa para não cair e pode ler, com olhos embaçados, o nome do remetente: CA-TA-RI-NA.
Não podia ser. Não era possível. Estava ali a sua chance máxima de ser feliz naquela noite. Só naquela noite ou enquanto durassem as breves palavras da suposta Catarina. Há um infinito no finito das palavras. Antes de abrir a carta, colou um papel com o seu nome e endereço no lugar do destinatário. Pronto. Era uma carta para ele. Suas mãos tremiam. Encostou o envelope no peito, suas aranhas acalmaram-se. O papel ficou aquecido na ilusão criada para manter-se vivo.

Abriu. Letras trêmulas e borradas. Catarina chorava quando escreveu.

Estava tão nervoso que sentia as inúmeras picadas. Mais uma dose alta de veneno. Era questão de tempo para não mais respirar. Será que daria tempo para ler a carta até o final? Angústia do início abreviando fins.

Deito meus olhos sobre tua busca. Você não me vê. Tento tocar tuas mãos, dizer que ainda estou aqui. Você não nota. As crianças cresceram, você não viu. Tua sombra construiu estátuas em outra direção. As aranhas multiplicaram-se no quintal. Todos nós seremos envenenados antes do último sorriso. Há um desejo em mim que só você poderá resgatar. Na última primavera, antes da guerra particular devastar nossas vidas, eu e você tínhamos...”

A cadeira tombou e ele agonizou o veneno com a carta nas mãos. Havia tanto para ser lido. Sorriu seu último sorriso. Catarina sempre teve razão. Nesse momento, as aranhas libertaram-se. Solidão envenenada. Brindaram um resquício de luz que a pálpebra apagou. Conseguiu imaginar as crianças crescidas antes do seu coração ser paralisado.
Arabesco das teias. 

10 comentários:

  1. Minha cara Srta. Huck li seguidas vezes o seu texto. Bélissimo. Mas antes que ouse questionar e sei que o fará - a leitura para mim é quase uma obrigação da releitura. Acho que leio para poder reler e quando não há a necessidade da releitura é porque o texto escorreu sem deixar nenhuma "aranha" em minha superficie. Gosto de ser picada pelas palavras.
    E hoje eu o fui, diversas vezes. Lentamente. Me perdoe por usar um artíficio de seu texto, mas pareceu-me perfeita para explicar o meu olhar.
    Não posso dizer-me surpresa, mas não posso também não fazê-lo.
    Será que posso "levar" esse também para a revista? Diga-me que sim...

    bacio

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    1. Obrigada pela leitura, pelos olhos, pelas palavras e pelas aranhas, Lu... rs rs rs. Entendi perfeitamente !!!!
      CLARO que pode colocar essa crônica na revista. Aliás, a outra foi??
      Depois te conto sobre o "rapto" de uma poesia minha sem os créditos. Ainda bem que existem os DIREITOS AUTORAIS, amém... rs rs rs. (te conto o fato inbox).
      Bjs, Lu

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  2. Tenho que usar do mesmo artificio e dizer que fui também picada por tuas palavras. Tal como o significado do nome Catarina, seu texto é puro. Eu achei belíssimo e digno de ser lido infinitas vezes. Bjinhos...:)

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  3. Parabéns,Simone. Texto denso , venenoso ,bonito demais.

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    1. Uma certa dose de veneno é necessária! Bjs, Dilma. H.

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  4. Simone. Li com a angustiante sensação de ter aranhas sobre os olhos. Muito bom. Transmite o sentimento exato que deveria transmitir. E quem nunca se sentiu assim envenenado? A surpresa da carta de Catarina é sem igual. Construção perfeita.

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    1. Veneno. Carta. Catarina... Não dava pra ser diferente, Linné. Bjs, H.

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  5. Bravo. Bravíssimo.
    Escreves tua teia de letras e me prende nela.
    Sou presa fácil dessas coisas bonitas.
    Continua?

    (A propósito, matei uma aranha ontem. Sem querer.)

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    1. Com leitores assim, como vcs, continuar é um doce veneno. Obrigada pelo carinho, Franco. Bjs em vc, H.

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