terça-feira, 16 de outubro de 2012

àS VEZES- por Dilma Alencar.


Às vezes acordava assim, estranhando a própria solidão. Cueca, calça, camisa, sapato. Leite.
Rua.
A avenida com sonhos engarrafados buzinava o desespero dos que querem chegar. Andou até a padaria. Entrou, sentou, pediu pão com manteiga e café puro. Ao redor, homens mastigavam o itinerário do dia, olhos atentos ao noticiário, bocas afiando as verdades televisivas.
O homem ansiava pelo transbordamento, pela cisão, pelo fim do pó nos versos. A mão amparava a cabeça. Os cotovelos sobre a mesa. Olhava sua carteira, seu celular, suas chaves, o copo americano quase cheio de café puro e amargo.
No último fim de semana, tentara uma aproximação de corpo. Já esquecera o nome, o peso, o número, tinha certeza que também fora esquecido.
Uma nostalgia de verde, de cheiro de capim molhado lhe invadiu o olfato, respirou fundo, mas regurgitava palavras azedas nos últimos meses.
Decidiu não trabalhar naquele dia. Andaria.
Andou.
Atravessou a faixa de pedestres. Seguiu a calçada. Uma igreja à vista, o espetáculo: grandes estômagos, nutridos com açúcar, buscavam mais. Obesos e mórbidos de arrotos platônicos.
Na calçada, um homem dormia, um rato passava em direção ao córrego, um outro na cadeira de rodas exibia dentes brancos e largos enquanto distribuía panfletos cristãos.
Aproximava-se de um grande cemitério, entrou.
Mirou por instantes insistentes uma mulher de preto, preto em rímel, meia,vestido,salto, óculos. Ela secava as lágrimas, ele fitou em seus olhos chuvosos a agudeza do fim, como tumor explodindo, como cio molhando, como tudo que É sem mais, mas.
De repente seu peito já era dor, seu sexo já era sim. Deu dois passos em ré, abaixou a cabeça e saiu.  Um corpo morto seguiu, o corpo vivo e morno seguiu seu destino de casa. Nós nos punhos a serem desfeitos, apressou o passo. O repente de um choro ia lhe desgovernando a face. Trêmulo e suado, tentava abrir a porta.
Tomou água, ligou a televisão. Em cima da mesa estava a jarra de plástico cheia de leite, que ele deixara ao sair. Pegou a jarra e despejou o líquido no copo, pálido e incrédulo notou que no leite boiavam vermes amarelos e gordos.
Às vezes acordava assim, grave e incrédulo da vida.

2 comentários:

  1. "Às vezes acordava assim, grave e incrédulo da vida."

    Se fosse todo dia... coitado.

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  2. Pois é. ele, no fundo , é alegre!!!

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