"Libertação", 2011 - Simone Huck
Sua boca era colorida e
seus olhos perdiam o cinza dos últimos anos. Sentou-se no chão
do banheiro de pernas abertas, não havia mais lágrimas para
chorar. Não estava nem cansada, nem feliz, nem triste, nem nada. Nas
ausências de tudo, um torpor sempre emerge.
Ali, naquele chão
frio, sentia-se leve, e se a janela estivesse aberta, tinha a certeza
que voaria por ela como uma pena levada pelo vento. Não pesava nada.
Nada ancorava em seus dentes e língua.
Esse torpor perturbado
elevou-se até sua consciência e tudo então, pesou. No chão do
banheiro havia uma escada, um balde, um par de luvas e dois galões
de soda cáustica. Seus olhos brilharam. Para manter sua paz era
preciso esvaziar os armários, os bolsos, limpar debaixo dos tapetes,
debaixo da cama e entre os vãos dos dedos. Era preciso limpar os
vestígios em suas unhas, boca, sexo e alma. Limpar o resto de cada amor
naufragado, de cada esperança desiludida. Percebeu que eram tantos
cadáveres, tantos ossos, tantas impressões digitais por suas
roupas, alma, orelha, sulcos e linfa. Como poderia manter a paz
assim? Havia uma multidão de mortos pendurados pelos ganchos de sua
lembrança.
Precisava correr.
Precisava limpar.
Precisava manter essa
sensação de leveza eterna, etérea, sua.
Era sua!
Lembrou que havia um
corpo no porta malas do carro e outro no porta luvas. Debaixo da sua
cama um saco cheio de braços e pernas que esmurravam e chutavam seu
colchão todas as noites enquanto tentava dormir. Debaixo do tapete da
sala, várias línguas falavam ao mesmo tempo, atrapalhando o volume
do Jornal Nacional. Só a soda cáustica resolveria.
Calçou as luvas e
começou o trabalho. Conseguiu juntar dez sacos de cem litros de um
monte de anseios anatômicos. Quanto tempo desperdiçado com cada
pedaço humano, pensou.
Colocou tudo no porta
malas do carro e seguiu madrugada adentro até ser surpreendida por
uma barreira policial.
Não tremeu, não
piscou, nada abalou.
Abriu a janela do carro
e sorriu um sorriso leve e azul que convenceria até o diabo.
O policial sorriu em
retribuição olhando o porta luvas que pingava sangue e nem pediu
seus documentos, nem quis olhar o carro. Ele, assim como ela, sabia
exatamente o significado de um sorriso azul.
Desejou “boa viagem”
e autorizou a passagem.
Ela seguiu no ofício
de limpar seu estado de leveza até o fim da soda cáustica.
"Não pesava nada. Nada ancorava em seus dentes e língua.
ResponderExcluirEsse torpor perturbado elevou-se até sua consciência e tudo então, pesou"
Gosto tanto disso que você constrói, há uma unidade bonita em tudo que você escreve, parabéns.
Obrigada, Dilma.
ExcluirAlgumas construções engasgam... Mas no final, há um pouco de libertação.
Bjs,
H.