quinta-feira, 29 de novembro de 2012

as PERAS também esPERAm - por Simone Huck

Sei que vou morrer antes de você chegar. Já se passaram tantos anos. Ainda espero. Ontem a noite, mais uma vez, fechei os olhos e seus passos pesados invadiram o assoalho da sala. Só os seus passos fazem a madeira ranger assim. Você tem um jeito pesado de andar.

Na geladeira, peras maduras esperam pela sua boca. Sei que será a minha, mais uma vez, a comê-las no seu lugar. Eu não desisto, nem as peras desistem de você. Nossas bocas confundem qualquer tipo de fruta. Outro dia abri a geladeira, coloquei todas as peras enfileiradas na mesa e fiquei falando de você. Agora as peras sabem exatamente o gosto da sua língua, o som da sua voz, o doce do seu hálito. Esperamos com avidez que a sua boca adentre a casa e a geladeira. Todos nós sabemos que você jamais chegará antes de morrermos. As peras morrerão antes de mim. Há uma certa ordem no caos da morte.

Ontem de manhã choveu. A chuva molhou o jardim. Peguei um pano e fiquei secando as flores. Ousei secar a chuva enquanto te esperava chegar. Sou pretérito perfeito que aguarda. Falei de você para o jardim. As flores brigaram comigo, não aprovaram minha honesta espera. Disseram que fidelidade tem prescrição, validade e durabilidade. Não entendi nenhuma dessas três palavras quando se trata de você. Nada disso se aplica a você. Muitas coisas não se aplicam a você.

Pintei outro quadro essa tarde. Ficou tão bonito. É colorido e denso como você. Espesso, grosso, com nuances opacas e gêmeas. Há pedaços seus tão iguais no mesmo lugar. Há pedaços tão distintos. Mistura de branco e preto. Tudo e nada.
Quando terminei, coloquei o quadro pintado de frente pra sua fotografia. Apresentei vocês dois. O quadro, denso, espesso e grosso, gostou da sua imagem no papel fotográfico. Achou seus dentes bonitos, seus olhos tristes, sua pele azul. Entendeu porque sempre vou amar e esperar você, que jamais chegará, nós sabemos. Já a sua fotografia olhou pro quadro com um certo ciúmes. Você nunca gostou de nada que pudesse dividir minha dedicação. Achou o quadro colorido demais, denso demais, grosso demais e virou as costas. Você virou as costas na fotografia e só resolveu olhar pra trás se eu prometesse moldurar o quadro e colocá-lo no porão da casa do meu pai. Nunca gostou dos moldes. Nem do porão da casa do meu pai. Nem de nada que pudesse te prender. Você nasceu livre. Talvez, ausente de tudo e em tudo. Você ainda não sabe quem é. Nem pra mim. Nem pra ninguém. Você nunca esteve em nada. Nunca esteve aqui. Sempre soubemos.

Sei que vou morrer antes de você chegar.
Ontem à noite, antes de dormir, descobri uma música nova na rádio da Palestina. Estamos todos em infinitas guerras. As estações do rádio, a Palestina, eu e você. Sorri e fiquei ouvindo, repetindo, repetindo, repetindo aquele novo som até dormir. Você teria gostado tanto de ouvir essa música nos meus fones de ouvido. A Palestina talvez dormiria em paz assim. 

Antes de apagar a luz, subi na escada e beijei a lâmpada quente do teto do quarto. Parece que a sua imagem está ali dentro daquela lâmpada, querendo atravessar com sua lança, o raio de luz. Você se parece tanto com a imagem de São Jorge, seu protetor.

Somos apenas imagens. Estados gasosos que serão dissipados pela urgência da espera.

Acenda a luz quando você chegar...

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Suéteres amarelos - por Dilma Alencar.


As mãos brancas e enrugadas teciam um suéter amarelo, no sofá, ao lado da janela em que o dia se abria quente, ela pensava com doçura na chegada de seu par.
Nesse dia, acordou antes das seis, olhou a pia: um prato, um copo, uma colher, era o retrato da noite passada. Lavou a louça, engoliu seu comprimido branco, tomou leite morno e agora tecia a possibilidade vã de um encontro.
A senhora vivia com vigor a cara solidão que alargava os móveis, quadros, livros, às vezes se sentia acuada diante daqueles objetos que cresciam em seu silêncio.
Acordou com um gosto de vento de chuva na língua. A mulher habitava a casa como um bicho arisco, como alguém que quer estar nu, como quem precisa da crueza das respostas em tudo que elas ovulam, fermentam, fincam.
Os anos marcaram sua pele branca, só os olhos fuzilavam de brandura, de mar, de horizontes, quem quer que os fitasse por alguns segundos.
Uma alma em arco-íris talhada no silêncio de uma vida de paixões que a eternizaram.
Nas paredes de sua casa, as fotografias sorriam o visgo dos encontros, das festas, dos sacralizados gozos efêmeros.
Ela abriu a porta da cozinha, no quintal suas flores bem cuidadas coloriam, com graça e cheiro, a manhã.  A laranjeira, molhada da forte chuva da noite, exalava calma e frescor.
A senhora se sentou no chão da cozinha, colocou o suéter, a linha e a agulha sob a cadeira de madeira que às vezes se sentava para esperar um pássaro cantar.
Tirou suas meias brancas e foi até o quintal, pisou na terra fofa que cobria as raízes da laranjeira, segurava os galhos mais grossos da planta e afundava os pés na terra molhada, sentindo uma unção nesse instante absurdo.
Sentiu por uns minutos um pertencimento e fincava cada vez mais o pé na terra, até sentir com nojo e espanto uma minhoca magra e cumprida entre seus dedos.
O nojo assustou a mulher, mas seu sentimento de nojo era o de quem já equilibra os próprios demônios e sabe reconhecer deus rente ao horizonte ou sob seus pés de pele fina e bem cuidada.
Ela se despiu, regulou o chuveiro, quis água fria.  Depois que água e terra desceram pelo ralo, ela parou de repente, um barulho oco e pesado veio da cozinha.
Viu a sua santa Luzia transformada em 21 cacos, perto da mesa.
Limpa da terra e da primeira saudade do dia, agora faria pão, coaria café e voltaria a tecer o suéter inacabado que deixara sob a cadeira.
Vinte anos, exatamente vinte anos repetindo uma espera vã. A morte nunca lhe responderia, ela logo morreria com suas memórias e os inumeráveis suéteres amarelos que ocupavam seu guarda-roupa e seu colo.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

eMIGRATIVA - por Vinícius Linné


Logo ela, a mais livrinha de todas nós, acordou um dia aprisionada. Foi assim, com susto: ela abriu os olhos e tudo era feito de escuridão. Abriu-os e piscou muitas, muitas vezes, porque tinha a impressão de que não os tinha mesmo abertos. E então, ainda precisou tocá-los para ter certeza. Só quando a ponta do dedo encostou no gelatinoso do olho, deixando nele uma digital nítida (para quem?), ela pôde saber que sim, estava mesmo de pálpebras arregaladas. Então o quê? Então de onde escuridão tamanha?

Era diferente. Era muito diferente das escuridões às quais estava acostumada. Tanto as reais, quanto as metafóricas. Não se via ponto de luz sequer, não se viam silhuetas, não se viam as coisas, simplesmente.

Onde estava ela?

Tentou lembrar da noite passada. Mas lhe parecia, fortemente, que tinha deitado em sua mesma cama de sempre. Estaria na cama? Não. Não porque tocava agora o chão e o descobria – com horror – orgânico.
O chão tinha a textura do que vive.

Tocou de novo, cheirou a mão. Um cheiro familiar e forte. Cheiro que lembrava os dias na fazenda, o sol lhe invadindo toda. E o pai, o pai assassinando uma vaca inteira, enfiando a faca na garganta e se cobrindo com o sangue dela. Era esse o cheiro. Apurou os ouvidos, como se fosse necessário, e então ela soube. Então ela lembrou. Lembrou da noite anterior, do colega desastrado e novo e feio. E lembrou de ele ter lhe ajudado a procurar um livro na biblioteca. E de como ele disse que ela cheirava a anis. E do quanto ela achou aquilo uma mentira. E do cheiro persistente e rançoso que ele próprio trazia, cheiro de vinho, amontillado.

Não! Não era possível.

Mas era a única explicação... Tocou novamente o chão. A mesma sensação de antes. Tocou a própria roupa e a sentiu coberta por um líquido espesso, viscoso. Passou os dedos pelos cabelos e eles já eram uma maçaroca de fluídos, fios e coagulação. Lembrou com horror das ilustrações daquele livro antigo. Aquele que ela tinha até medo de ler quando era menina. O único que ela detestava genuinamente: O Barba Azul. Lembrou da figura das mulheres, seus corpos no chão, alguns decapitados, o sangue tomando o aposento, o pânico da chave caída ali.

Chave!

Teria uma chave? Uma porta de saída? Se pôs de quatro a tatear no escuro, resistindo ao medo e ânsia que tinha de tudo que é vivo. Até bater, a poucos passos, em uma parede igualmente negra e orgânica. E assim fez, até se descobrir cercada. Não havia chave. Sequer havia porta.

Claustrofobia.

Ela precisava sair. Ela não fora feita para os espaços fechados, mas para as grandes vastidões. Assim gostava de pensar, mas era bem mesmo outra mentira. Nunca havia saído da própria vida, por exemplo. Ela mesma era uma prisão móvel. E estava em outra. Sim, as paredes se movimentavam. Entre golpes e silêncios, solavancos violentos a jogavam de um lado para o outro.

Precisava sair. Tinha que haver uma rota de fuga. Mas então onde? Por onde sairia do inóspito e imprevisível deserto em que se enfiara? Haveria ainda salvação? Ou seria esmagada até morrer?

Morte.

Em toda sua vida a solução passara pela morte. Em sua mente já havia acabado com a vida de mil maneiras diferentes. Mas era covardezinha. E se privava de tudo. Das experiências melhores até. Pela primeira vez considerou porém, entre um solavanco e outro, mais seriamente a alternativa. Mas como ali? Não havia nada. Nada com que se enforcar, nada para perfurar o peito, nada para beber e morrer envenenada. Seria ela obrigada a roer a carne dos pulsos? Seria assim?

Vomitou.

Se ao menos pudesse saber onde estava. Se ao menos alguém a pudesse ouvi-la e vir resgatá-la como sempre faziam. Mas ninguém vinha. E as paredes continuavam, aceleradas, ensurdecendo, subindo e descendo. “Por Deus”, ela queria dizer, mas já enchia a boca de vômito novo.

E de repente a resposta. De repente um barulho abafado de voz. Irreconhecível.

Da primeira vez ela não entendeu o que ele dizia. Vinha muito de dentro de si mesma aquele som. Da segunda, preparada, atentou melhor. E levou alguns segundos para, horrorizada, compreender. Era ele, o feio da noite, que em um arroubo de escritor cafona e tosco, repetia assim:

— Ela agora mora no meu peito, bem dentro do coração.

 F I M
* * * ou * * *

Coração. Coração. Coração.

Por isso a cápsula orgânica. Por isso o sangue. Por isso o cheiro de vaca morta.

Por isso a falta de chave e porta. Coração. 

Mas se ela estava dentro de um, então viria o sufocamento com o sangue. Ela se afogaria nas hemácias (quem sabe doentes) de um homem feio. Sim, sufocaria. A menos que... a menos que usasse unhas e dentes. A menos que corroesse aquele peito para sair dele. Logo ela, logo ela que por tantas vezes desejou essa prisão, só que em outros corpos. Corpos de homens não feios. Logo ela que sempre quis pertencer assim, que sempre tentou e não coube. Mas não era hora de pensar. Esqueceu todo resto. Começou. Arranhão por arranhão, bocada por bocada, a destruir o músculo que formava sua prisão.

Era inútil.

A cada pedaço arrancado, ficavam mais duras as paredes, pulsava mais o peito e fazia entrar mais sangue ali. De repente uma lufada de ar fresco. Um ponto de luz. Estaria salva? Teria uma faca assassina rompido sua prisão?

Os dois enfermeiros lutaram para lhe tirar da boca a espuma que forrava as paredes do quarto. E então veio o médico, com outra injeção, e tudo escureceu outra vez.

 F I M
* * * ou * * *


Mas ainda pulsava.

Ainda pulsava o coração do homem feio com ela lá dentro.


 F I M

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

um VERMELHO que não é sangue, nem quente, nem frio - por Simone Huck

-->"Prisioneiros vermelhos", 2011 - Simone Huck

Grito acentos. Perpetuo pontos. Gozo exclamadas interrogações que quase nunca sei - seria vermelha a dúvida que sangra?
Compulsivamente, minha pele queima a fala, a febre, os poros empoeirados que este dia tentou de todas as formas anular. Ilusório. É meu ofício escrever, mesmo que seja quase dezembro.
Danço na reticência da dúvida que não descansa. Quando acabam os significados, a pausa renova o verbo e os versos, as histórias e as verdades. Recomeço, mesmo que seja amanhã, dezembro - um receio vermelho começou a invadir a cidade.

[Objeções.
Pluralidades. 
PALAVRA É ATO. 
ESCREVER É ABRIGO.
HABITO (hábito).]

Deito a cabeça no travesseiro. Fecho os olhos e acendo intenções. Estamos todos repletos delas, mesmo que tenham um alto preço, senhorita doutora. Dezembro nos esmagará.
Já decoramos a casa, a fala, o rascunho e a pretensão. Amanheço escarrando acentos que não engoli de algumas frases que piscaram na sua árvore de natal. Falo e escuto o eco da minha própria palavra no parapeito da minha língua que pergunta - uma intenção vermelha começou a invadir nossos olhos. Dezembro me espera.

[não hospeda.]

terça-feira, 20 de novembro de 2012

pODE ACONTECER - Por Dilma Alencar.


Pode acontecer
Pode acontecer de quando eu atravessar a avenida de sempre você aparecer com cara de quem não dormiu, me cumprimentar e a conversa acontecer sobre a espera dos ônibus, ou sobre porque o metrô não funciona 24 horas.
Quem sabe, ouvir você tocar naquele bar que eu frequento, me aproximar e lhe dizer que aquela música do Cartola é tão cortante quanto um fado.
Num intervalo entre uma dança e outra, na hora de pegar mais um drinque, eu pise no seu pé, você me xingue, eu ache graça e isso vire conversa com risos e desculpas, quem sabe se nas mesas do lado de fora, se você não aparece e me pede um isqueiro.
Nas longas tardes de uma quarta improvável, naquela sessão vazia do cinesesc, notarmos que não há mais ninguém e talvez sorrirmos ao vazio da sala.
Nesses intervalos de solidão que nos põem serenos.
Quando entre os corredores do mercado, você me oferecer uma cestinha porque meu chocolate, papel toalha, esmaltes e café já não cabem em minhas mãos.
Com impulso natural você me fala do aumento dos produtos de limpeza.
De repente uma conversa sobre cactos ou sobre animais marinhos, ou não saber nada que nos coloque em contato e achar lindo o seu olhar de inverno, seu jeito displicente de acender um cigarro. As cores extravagantes de suas meias.
Pode acontecer até no duro breu do mês de dezembro. Numa tarde de vento gelado na pinacoteca, olhando o parque da luz, vendo os velhos encolherem suas memórias desejando estar entre coxas das meninas de cabelos secos e olhar e carne duros.
Vendo a vida escorrer no calendário, entre um feriado e outro, desejar o que pode ainda acontecer.
Numa feira de sábado, na barraca do pastel, escolhendo aipim, ou enquanto eu demoro sentindo o cheiro de terra molhada na banca de couve, rúcula, cebolinha verde, escarola.
No abrir do zíper, dos botões da sua blusa, numa tatuagem na nuca, no susto, no beco, na curva do deslize.
Nesses dias tensos de sangue escorrendo na rua, no caminho até a padaria, quem sabe na fila para assistir àquela peça anônima, naquele teatro amador da Roosevelt.
Pode acontecer durante seu sono, enquanto eu vejo estrelas no teto, pode acontecer enquanto sua mão passeia pela minha nuca e seu olhar interroga meu passado, ou quando uma estrela cadente dançar no seu olhar , quando você finalmente conhecer aquele conto mágico, do Rubem Braga, ou durante aquele papo sobre os chacras da criatividade.
De repente enquanto leio, no parque de sempre, deixando o sol esquentar as roupas curtas, o vento jogar flor no corpo cansado.
Pode acontecer quando eu acordar  querendo ficar mais uma noite, ou num susto descobrir que sei seu número de cor, pode acontecer de você gostar de meus olhares descarados em ambientes sérios, e de também não gostar desses ambientes chatos e protocolares.
Nos coletivos, todos estão conectados demais para algum suor, saliva, poucos inspiram flores, me afundo em grandes projetos para o dia, acordar cedo para brincar no parque e ver uma lagarta amarela é o mais brilhante deles, o resto é papel e risco.
Caminhar pelas ruas na comunhão com o caos, aliviar íngua no samba de todo sábado, sangrar com Bach ao ouvido e sentir a tontura de ver as cores explodirem nas avenidas entupidas de tédio e pressa.
Em todos os lugares acontece.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

úNICA tENTATIVA - Por Vinícius Linné


Uma vez ele tentou amar. Uma vez só.

Era uma mulher de supermercado. A mais nova delas. Trabalhava na padaria, sempre envolta em baunilhas e pães doces. Parecia ser ela mesma doce também, com aqueles olhos cor de melado e aquela boca de morango em calda.

Todos os dias ele comprava pão, mas só uma vez tentou amar.

É que a menina, ele reparava, o olhava sem parar.

Era amor? Ele não sabia.

Era bom.

Passou a sorrir mais, a viver encantado, a fazer planos, esquecer tristezas, desgraças, já nem sonhava mais com o acidente.

Passou a ver flores, a ver que o céu era azul e até a gostar do calor do verão. Era verão naquela vez única em que ele tentou amar.

De repente ele parecia ter sentido. Parecia que podia ser amado de volta, que podia viver plenamente. Parecia, até, que podia ser normal como eram todos os outros.

E nessa vez ele traçou planos e deu sentido à vida. E escolheu roupas novas e comprou perfume caro. E no dia em que choveu ele até tomou banho de chuva, como se fosse criança.

Nunca fora tão feliz.

Nunca fora tão solitário.

Sim, porque agora sentia falta, sentia umas solidões imensas. Queria tê-la para si, mais, muito mais do que aqueles minutos na compra do pão. Descobriu as amizades dela, os horários, tramava encontros, coincidências e ela sempre olhando.

Ficou sabendo, então, que ela estaria numa quermesse qualquer. Convidou um amigo e lá foi também. Na festa, ela não parava de olhá-lo. Era total a realização...

Era amor. Era verão.

Confidenciou ao amigo:

— Veja aquela moça... Ela não para de me olhar...

O amigo, ligeiro, respondeu:

— Ah, imagino como deve ser chato isso para você. Mas fazer o quê? Essas cicatrizes no seu rosto chamam mesmo muito a atenção.

Naquela noite, os sonhos com o acidente voltaram. E ele trocou de supermercado, de padaria, trocou de coração, de ruas, de encontros. Trocou até de estação. Para ele, nunca mais foi verão.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

"nada supera O PRAZER DE FUMAR HOLLYWOOD" - por Simone Huck

imagem retirada do blog do Guillon

Catarina sempre me intrigou. Gostava de sentar ao seu lado e ouvir histórias da guerra. Ela relembrava algumas palavras em alemão e na sequência, acendia seu hollywood e chorava. Sinto saudades do seu café em coador de pano, do seu colo, seu abraço que abrigava minhas guerras. Na fumaça do seu hollywood, eu seguia construindo minha casa. Quando Catarina morreu, no outro dia apareceu em meus sonhos ordenando que eu ocupasse seu lugar: levar crisântemos AMARELOS para Tereza, sua mãe. “Mas são AMARELOS, e não brancos, filha”. Obedeci poucas vezes. Catarina não se magoa tão fácil comigo.

Não tenho filhos que me questionem contradições. Nem marido para que eu exerça uma paciente disciplina cinza. Eu não conseguiria, sempre soube. O silêncio da minha casa abriga e não obriga.

Sempre colecionei coisas. Com o passar dos anos, o hábito pelas caixinhas permaneceu. Tenho uma estante repleta delas. Várias formas, materiais e dimensões. Algumas trazidas de outros lugares, outras, presentes de amigos que sabem do meu distinto gosto: que seja diferente e que tenha um formato diferente. Talvez eu mesma seja assim: uma coisa diferente num formato diferente. Quantas vezes sou apenas acúmulo? Não me encaixo em quase nada. Nem em mim – penso em "A Fonte”, de Duchamp e “Merzbau” de Kurt Schwitters. Sorrio um sorriso amarelado pela cafeína.

Mais um dia está amanhecendo. Escovo os dentes enquanto ela continua deitada na minha cama queen - minha solidão precisa de espaço. Sua estadia em minha cama é passageira. Minha independência segue preservada. Termino de escovar os dentes e essa certeza me faz respirar melhor. Talvez eu ainda seja uma mulher das cavernas.

Passo o café seguindo a mesma métrica diária. Quem mora sozinha há treze anos não pertence a mais nada, só as métricas de si mesmo. Quase sempre, errôneas. A vida deve ser uma soma em constante subtração. Café muito forte com açúcar na medida. Nem mais, nem menos. Ilusões são muito doces. Realidades, muito amargas. Meu café que fique no meio termo. Ponto. Adoçante é proibido no meu copo. Só está no armário para alimentar algumas formigas gordas no anual êxodo da toca fria para meu apartamento quente – está chegando o verão e as formigas - ou para agradar as poucas visitas. Adoçantes foram feitos para línguas de titânio, que não sentem o sabor terrível da fenilalanina. Jamais vou conseguir entender isso. Há obviedade em alguns sabores.

Enquanto passo o café meu olhar se perde na fumaça que minhas lembranças insistem. Há imagens que jamais apagaremos. Desista. Impregnadas em todos os cômodos do mundo, seguem resistentes em seu ofício de ser um passado que não mais habita nosso presente – prefiro algumas caixas de presente mais do que o presente.

Já não sou mais a mesma. Talvez eu fosse melhor ontem. A atual imagem da minha consciência no espelho, me assusta. Os anos encheram-me de verdades que jamais quis ver.

A sobriedade beija minha boca com seus lábios carnudos e quentes. O hálito de mais um dia recomeça. Estou mais próxima da minha morte, Catarina. Inevitavelmente vou ao seu encontro. Acenda um hollywood para mim também. Quando eu chegar, fumaremos um cigarro juntas e a fumaça não mais desenhará coisas que não saberemos explicar – nada supera o prazer de fumar hollywood com você, Catarina.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Metáforas brancas e vermelhas - por Dilma Alencar.


Terá coragem?
Coragem de me ver nua?
Rasgar minha saia? Numa metáfora de sangue alcançar as pedras atrás das nuvens?
Minha calma é proporcional à distância que você está.
Eu nunca inundei você do mar que minha carne chora.
Você aguenta o bicho arisco que habita a largura dos meus dias de solidão? Meus demônios estão secando ao sol, estendidos no varal, junto com as camisas brancas que quaravam na manhã que você partiu. Uma manhã de primavera, na qual as cores incidiam beleza de túmulos.
Na beleza dos milagres: do sol nas bolhas de sabão, das primeiras sílabas de uma criança cingindo mãe em mantra, dos olhos construindo contos com os bocejos preguiçosos dos operários do caos, do milagre do sangue entre minhas pernas me fazendo bicho, me fazendo fêmea, do tempo marcando o rosto, o rastro, nesses milagres eu choro a alegria do pão, do mato, do nervo, da gengiva.
Esses milagres fermentam a loucura duradoura de uma solidão colorida dissolvida num gozo singular que seus olhos femininos apedrejaram.
No meu afeto baldio nasceram girassóis para iluminar sua alma em assonâncias ofegantes e suadas.
Lágrimas escorreram nos nossos lençóis sujos de vodca e água. Minha natureza arisca gemeu pelos mortos sob a cama ordinária. Eu e você, ali, agonizávamos a tentativa de encontro, sombras do que foram mãos deslizando em cio, do que foi fome comendo instinto e cuspindo alma no canto do quarto.
Uma tragédia tão bonita como um poema barroco.
Mas lá fora, a vida seguia o rumo ordinário dos sentimentos enlatados.
Devorávamos os dias da semana como quem come sem fome, como quem não sente.
Onde ficou a força dos dentes brancos?
 À flor da pele: o espanto.
Qual o espaço dos milagres na ordenação miserável dos dias?
Os automóveis são estúpidos, um poema não pode ser comido. O poder medíocre comanda o mundo, nossa cama caiu num abismo sem prólogo, prazo, ou ingresso.
Há coragem para uma metáfora de sangue?
Se eu construir um quintal e soltar minha loucura sob o sol das três, se eu cantar minhas angústias no eu colo terno, seu eu sangrar seus olhos com uns espinhos e pedras que às vezes escorrem do meu peito?
Os copos descartáveis sob a mesa sujam de metáforas brancas o amarelo que entra pela janela. Eu fumaria, fosse eu fumante. Quis ser mesmo foi fumaça.
À míngua, esperam-se gotas de amor ao final da tarde.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

A SOLIDÃO DOS números PARES - por Vinícius Linné


“Os números primos só são exatamente divisíveis por 1 e por eles mesmos. Ocupam seu lugar na infinita série dos números naturais e estão, como todos os demais, emparedados entre outros dos números, ainda que eles mais separados entre si. São números solitários, equivocados, e por isso encantam a Mattia, que às vezes pensava eu nessa séria apareciam por erro, como pedras enfiadas em um colar, e outras vezes que também eles queriam ser como os demais, números normais e correntes, e que por alguma razão não podiam.”
{Paolo Giordano}

Ele tomou desde sempre o cuidado de não ser um número primo. Para pertencer, para ser divisível, preferencialmente por 2, para ser normal e corrente. Por todo tempo foi difícil. A mãe já não o quis. Encontrou outra mãe, outro pai, outro conjunto ao qual pertencer.

Quando começou a época de ter amigos, sua natureza quase prima manifestou-se novamente. Não queria muitos ao seu lado. Evitava-os. Inventava desculpas para que não fossem à sua casa. E para não ir à casa deles também. Dava-se com os poucos números normais ao seu lado. Até eles se revelarem nem tão normais, nem tão correntes. Um número tentando ser par, cercado de ímpares. Não deu.

Os pais estavam ali, ao lado, mas também não se dividiam por ele. Ele queria atenção, alguém com quem brincar... Não dava. Os pais pensavam demais em números. O pai nos números a ganhar, a mãe nos números a gastar. Nenhum deles tinha minutos a perder. Não. O menino que brincasse sozinho.

Brincava. Mas arrumava cachorros e gatos para brincarem consigo. Ao conjunto deles é que o menino pertencia. Eram múltiplos comuns.

Depois o menino finalmente cresceu e se fez par. Agora sim, ele jamais seria um número primo. Ele não sofreria da solidão não amainada, da natureza estranha e intermitente daqueles indivisíveis. Agora ele não seria mais um número equivocado. O que ele esquecia, porém, era que o número 2 também só é divisível por 1 e por ele mesmo. Outro primo, portanto.

Foi na prática que ele aprendeu que nenhuma equação faria dele um número perfeito. É que não se ajustava mesmo. Não pertencia, embora teimasse em pertencer. Ele queria mostrar um filme a ela. Ela não queria ver. Ele queria dividir uma música que achara linda. Ela achava torturante. Ele queria interessá-la por um livro sensacional. Ela dizia nem adiantar, não queria mesmo saber. Ele queria passar um momento com ela envolvido em uma grande paixão: fotografia. Ela de novo não queria. Que ele parasse de importunar... Ele crescera, mas continuava sem ninguém para brincar.

Ele saia, então, como o menino que fora, sozinho, cachorro na mão, já sem animo de fotografar coisa alguma, descobrindo, finalmente, que a solidão dos números pares pode ser infinitamente maior do que a solidão dos números primos.

Por tudo eles se dividem, e são sozinhos. Mesmo cercados de iguais, mesmo normais, mesmo correntes, não há companhia possível. Cada número no seu próprio espaço. Encontrando-se rápidos em somas e multiplicações, mas só esperando as divisões, as subtrações. Cada número tão sozinho quanto o anterior, não importando se primos ou não. Os primos ao menos tem a consciência da própria solidão, viram-se com ela. O que fazer, porém, com a solidão dos números normais? E, pior, o que fazer com a solidão dos números pares? Ele não sabia. E por não saber ia, aos poucos, se decompondo... 

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

o homem que CONHECE MINHA ALMA - por Simone Huck

Para C.C., com amizade e amor!
 
Não. Este “homem” não é Deus. Talvez Ele conheça minha alma. Mas sou eu quem não conhece a alma Dele. Não somos tão íntimos assim. Ele sabe dos meus anseios, eu jamais saberei os Dele. Em sua exclusiva onipotência, sou apenas uma mulher que às vezes chora. Ele me parece indestrutível. Eu, não.

Quando o despertador toca, ainda é madrugada. O homem que conhece minha alma levanta, resmunga insônias e entra no banho. Tateando o sabonete e a pasta de dentes, pensa nas palavras do dia. Silêncios oclusos antes do sol. Minutos depois já está pronto: ajusta a gravata, confere os óculos, chama o elevador com um olhar cinza. Entra no carro apressado, antes de sair pega o telefone celular e me liga. Partilhamos as traças da rotina. Do outro lado da cidade, eu também já estou a caminho do trabalho. O sol começa a nascer e já estamos juntos. Ele me conta seus medos enquanto confesso quem me roubou as noites de sono desde o último outono. Ele já sabia. Conversamos durante todo o caminho. Entre confissões, o dia vai ganhando formas pelo retrovisor dos nossos carros. Passado e presente dão as mãos. Somos sobreviventes de espantos compartilhados. Entre braços e pernas, relembramos com uma certa nostalgia o acúmulo das nossas vidas. Misturamos os sapatos pelo asfalto. Entre sonhos e certezas, projetamos um futuro indestrutível e revelamos em palavras sonoras o que não escrevemos para o mundo. Às vezes, ele me confessa descrenças, enquanto eu, entre ossos e pele, lhe digo onde não mais sou, nem estou. Somos mutantes da partilha. Soldados de mãos dadas entre nossas guerras. Nosso exército ocupa o mesmo país.

Ele começa a trabalhar, eu também. Na hora do almoço, entre os vãos dos intervalos, nos falamos novamente. Somos sobreviventes de uma rotina massacrante. De boca cheia, ele mastiga a comida apressado e pergunta alguma coisa nossa. Tem pressa na confissão. Almas gêmeas que agarradas, seguem pelo desfiladeiro da vida. Há confiança no salto quando estamos juntos. Ele é meu paraquedas. Sou seu abraço. No final da tarde, antes de chegarmos em casa, ele pra vida dele e eu pra minha, nos falamos novamente. Ele me conta como foi seu dia, escuta como foi o meu. Rimos. Rimos alto. Gargalhamos muito juntos. O mundo parece ser colorido e fácil quando somos apenas nós dois: um homem e uma mulher que se amam, sem máscaras. Penduradas, nossas almas secam nuas no varal. Ele sabe qual é a cor do meu medo. Disseca a vírgula que engasgo. Diante dele, não estou guardada no meu bolso.

O homem que conhece minha alma é frágil, doce e meigo. Tem dias que chora feito um menino em meus ombros. Nos abraçamos entre nossos restos. Ele não esconde seus medos. Muitas vezes me mostra sua destemida coragem. Me lança para cima com uma única palavra. Me arranca das lágrimas com um único sorriso. Numa conexão digital capaz de unir dois corações que se amam, me resgata da tristeza só por estar do outro lado da linha.

Nos conhecemos há treze anos. Nos últimos cinco, é que nos abraçamos para jamais soltar. O homem que conhece minha alma está próximo dos cinquenta anos, eu, dos quarenta. Muitas vezes sonhamos nossa velhice. Ele usará uma bengala cinza, eu terei uma cadeira de balanço. Ele continuará me ligando, resmungando alguma coisa do nosso passado. Eu não conseguirei dormir se passar um dia sem falar com ele. Quando estivermos próximos dos oitenta anos, terei aprendido tricô e farei um cachecol vermelho para ele. Ele vai ficar tão bonito de cabelos brancos, bengala cinza e cachecol vermelho. Colocaremos nossas cadeiras de balanço uma do lado da outra e passaremos a tarde toda relembrando nossa vida. O homem que conhece minha alma irá chorar tanto, eu sei. Ele é tão emotivo. Debaixo da minha catarata, ele continuará sendo o único que sempre conseguirá ler minha retina. 

Não haverá demência senil que nos apague. 

terça-feira, 6 de novembro de 2012

eNCANTAMENTO - por Dilma Alencar.


Chegou depois de mais um dia comum: os papéis, as esperas, os excessos, a efervescência de tudo que já foi dito, editado e repetido. A miséria branca de tudo que quer ser visto ser gasto.
Abriu a porta, cansada.
A outra a esperava. Um casaco verde sobre o braço do sofá foi seu anúncio.
Fechou a porta, deixou a bolsa sobre a mesa da sala.
Sentou num canto da cozinha a olhá-la, sem “oi”, sem beijo. Apenas a olhava.
A outra sorriu e adivinhou seu humor, abriu a geladeira e lhe ofereceu água.
Bebeu.
A olhá-la, um sorriso crescia dentro, bebia o encanto da mulher que cozinhava: saia longa dançando no tornozelo, o movimento das pernas, o abrir e fechar de potes e portas, o sal, as folhas.
O cheiro de manjericão esquentando a cozinha, ranger de talheres nos pratos, som de garrafa abrindo: gosto e cheiro de tudo que as alimentava.
Panelas tampadas, a outra se aproximou dela, tirou seus óculos, desabotoou sua blusa e apertou sua mão com carinho e força.
Durante o jantar sorriram. Um sentimento cru, solto, imune às construções de fora.
Comeram com gosto, beberam bem.
À parte o cansaço, a dívida, os prazos, as penas, as dúvidas, no fundo de seu silêncio, ela agradecia e pedia a presença delas juntas num espaço eterno de tempo, envelheceriam juntas e meninas.
Os talheres mudariam, o sexo mudaria, o rosto mudaria, o cabelo mudaria, no fim de seus dias naqueles corpos onde serenidade, paixão, sangue e violência percorreram turvos e claros dias, elas sorririam em suas cores.
 O tempo com inundações por muitas vezes invadiria de mágoa e rancor com os dentes afiados das futilidades pequenas, com o ácido do ciúme, as tônicas do egoísmo.
O que restará é a comunhão de uma vontade plena.
Na contramão do remédio para dormir, da dor de cabeça, da vontade de conhecer a Grécia, de adotar trigêmeos, de virar hippie e plantar alimentos sãos, de mandar todo mundo pro inferno, na contramão do desamor e da solidão larga que cada peito abriga, aquela estará ali, a lhe oferecer água, esta estará sempre com sorrisos de quem agradece o milagre do encantamento, porque no silêncio de um bem nasce uma estrela, nasce num estalo de um dia cansado.
A pele será outra, a comida terá menos sal, o all star amarelo combinará com as sandálias de couro compradas no litoral, haverá tempo para plantar seu coentro, a outra fará sua aula de latim.
Descansam cansaço e sonhos, uma no colo da outra. Cultivam folhas sadias, alimentam a vida, e desfazem os nós.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

"DEPOIS DE PESQUISAREM POR ANOS a causa e a cura DAQUELA ÚLTIMA EPIDEMIA DE LOUCURA, DESCOBRIRAM QUE DE UM CERTO TRIGO AMASSADO FIZERAM PÃO, BOLACHA E CUCA." - por Vinícius Linné


"Wheat", 2012 - A. Stiop


Houve o dia em que também ela enlouqueceu. No meio da tarde, ela cansou de estar nos prédios de cimento azul e de janelas poucas. Cansou da grosseria animalesca do que – ela supunha – deveria ser humano.

Já era louca quando ela levantou derrubando a cadeira e, entre olhares pasmos, saiu. Assim. Saiu como se fosse fácil, como se não devesse satisfações, como se não cumprisse horários e batesse pontos e precisasse obedecer. Saiu como se não tivesse responsabilidades e como se – meu Deus – fosse livre.

Quando chegou em casa, encontrou a casa desavisada. Baratas enormes corriam gordas e surpresas pela cozinha. No banheiro, duas delas faziam amor sobre sua escova de dente. Decerto era assim que viviam todas as tardes, na casa quente e fechada, enquanto ela trabalhava para lhes sustentar.

Quem era, afinal, a praga invasora? De quem a casa era mais? Dela, que quase nunca estava, ou das baratas que transavam sobre a escova de dente? Das baratas, ora. Das baratas...

Deitou no chão pensando sobre, enquanto era atravessada por uma cascuda das mais ousadas. Cuidou para não dormir. Se dormisse as baratas poderiam ir parar dentro dela. Assim passou muito tempo. Louca, olhos abertos, fitando o teto. Quando as costas começaram a doer, levantou-se e saiu.

Saiu de casa como se não fosse sua casa, como se pudesse deixar as portas todas abertas, como se não se importasse, como se não deixasse nada para trás, como se fosse – meu Deus – livre.

Saiu a caminhar até a cidade sumir. Encontrou, então, uma plantação de trigo maduro. Ali enlouqueceu ainda mais. E, pior, entregou-se à própria loucura. Entregou-se à sensação do trigo arranhando a pele, à sensação de correr sem rumo. Entregou-se à brisa, ao som, ao sonho. A louca sorriu e gritou como desde criança não fazia, sempre correndo, sempre mais rápido.

Ela conseguiu destruir os sapatos na terra, colar os cabelos na testa e encharcar as roupas todas com o suor que lhe vazava do corpo. Agia como se fosse livre – meu Deus.

Ninguém por perto, coisa alguma, construção alguma. Só trigo e céu. E as pernas no movimento mecânico e intenso de correr. O coração disparado, o corpo todo trabalhando, funcionando, o som de suas próprias gargalhadas regando a plantação, a volta à terra, às origens, às primeiras mulheres e suas descobertas, suas fugas, suas experimentações. Jamais se sentira tão mulher, tão fêmea, tão livre.


Já exausta, deixou-se cair na terra. Esmagou o trigo embaixo de si e passou a ver pouco mais do que espigas e céu. Um céu que se desfazia em muitas cores até quase escurecer. Grilos e sapos e saracuras já começavam a gritar em um brejo ali perto, as primeiras estrelas brilhavam e o vento já soprava mais frio. A umidade tornava-lhe a pele pegajosa e estranha, o que fez com que a euforia aos poucos se desfizesse, como em traços de fina névoa.

Ela já não conseguia mais ser feliz e louca e mulher e livre.

Levantou-se, então, e bateu o trigo das roupas. Arrumou como pôde o cabelo. Deu uma olhada nos sapatos, estragados, definitivamente. Estava de novo sã, de novo infeliz, e foi assim que rumou de volta para casa. Precisava tomar um banho, comer alguma coisa, ligar a televisão, escovar os dentes e ir dormir. No outro dia era terça-feira. Precisava chegar cedo no emprego, pedir desculpas, explicar que fora acometida de um mal súbito e torcer para que fingissem compreender.

Na quarta-feira tinha a hipoteca da casa para pagar. E, além disso, havia dois gatos - e um bando de baratas - que dependiam dela para se alimentar.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

te(N)são - por Simone Huck

 "Tensão", 2011 - Simone Huck
Ela pinta as unhas de azul e usa sapatos amarelos. Sorri concordâncias poéticas enquanto chora lágrimas de saudade enrolada numa coberta semântica. Acorda de madrugada para tomar um gole de café frio. Com a voz levemente rouca, grita com as baratas que tentam, no escuro da noite, devorar as palavras dos livros acumulados debaixo da cama. Ela dorme em cima de uma literatura que não compreende e ama.

Seu sexo é uma fonética incerta. Desde a primeira vez que nos vimos, sempre soube que ela seria a minha melhor análise sintática. Seus objetos indiretos agridem os meus diretos. Seu sujeito oculto me confunde. Ela gosta de batons alaranjados. Ontem a noite trocou o café por um copo de cachaça e dançou Luiz Gonzaga no canto da sala. Ela não tem medo da sua hedionda solidão. Lustra com alegria um porta-retratos vazio. Sorri para os desconhecidos na rua. Fala de Borges para o cobrador do ônibus com a mais pura insanidade íntima. Sua voz passiva me atiça.

Minha alma quer casar com a alma dela. Morar num cômodo úmido de uma biblioteca subterrânea. Sermos cúmplices de ácaros que se alimentam de vírgulas e papéis amarelados de tempo, ânsia e suor. Ser palavra, verbo e resposta sem dúvida, dúbia. 

Minha alma quer fazer amor com a alma dela em cima de um milhão de poesias rasgadas, entre rosas, espinhos e nenhuma santificação. Penetrar seus pretéritos imperfeitos, salivar ditongos entre sua boca laranja. Devorar hiatos entre seus pelos pubianos.

Amanhecemos abraçadas entre vãos e nãos.
Somos moradoras da periferia do nosso desencontro.
Em corpo, jamais seremos um livro na estante.