quinta-feira, 15 de novembro de 2012

"nada supera O PRAZER DE FUMAR HOLLYWOOD" - por Simone Huck

imagem retirada do blog do Guillon

Catarina sempre me intrigou. Gostava de sentar ao seu lado e ouvir histórias da guerra. Ela relembrava algumas palavras em alemão e na sequência, acendia seu hollywood e chorava. Sinto saudades do seu café em coador de pano, do seu colo, seu abraço que abrigava minhas guerras. Na fumaça do seu hollywood, eu seguia construindo minha casa. Quando Catarina morreu, no outro dia apareceu em meus sonhos ordenando que eu ocupasse seu lugar: levar crisântemos AMARELOS para Tereza, sua mãe. “Mas são AMARELOS, e não brancos, filha”. Obedeci poucas vezes. Catarina não se magoa tão fácil comigo.

Não tenho filhos que me questionem contradições. Nem marido para que eu exerça uma paciente disciplina cinza. Eu não conseguiria, sempre soube. O silêncio da minha casa abriga e não obriga.

Sempre colecionei coisas. Com o passar dos anos, o hábito pelas caixinhas permaneceu. Tenho uma estante repleta delas. Várias formas, materiais e dimensões. Algumas trazidas de outros lugares, outras, presentes de amigos que sabem do meu distinto gosto: que seja diferente e que tenha um formato diferente. Talvez eu mesma seja assim: uma coisa diferente num formato diferente. Quantas vezes sou apenas acúmulo? Não me encaixo em quase nada. Nem em mim – penso em "A Fonte”, de Duchamp e “Merzbau” de Kurt Schwitters. Sorrio um sorriso amarelado pela cafeína.

Mais um dia está amanhecendo. Escovo os dentes enquanto ela continua deitada na minha cama queen - minha solidão precisa de espaço. Sua estadia em minha cama é passageira. Minha independência segue preservada. Termino de escovar os dentes e essa certeza me faz respirar melhor. Talvez eu ainda seja uma mulher das cavernas.

Passo o café seguindo a mesma métrica diária. Quem mora sozinha há treze anos não pertence a mais nada, só as métricas de si mesmo. Quase sempre, errôneas. A vida deve ser uma soma em constante subtração. Café muito forte com açúcar na medida. Nem mais, nem menos. Ilusões são muito doces. Realidades, muito amargas. Meu café que fique no meio termo. Ponto. Adoçante é proibido no meu copo. Só está no armário para alimentar algumas formigas gordas no anual êxodo da toca fria para meu apartamento quente – está chegando o verão e as formigas - ou para agradar as poucas visitas. Adoçantes foram feitos para línguas de titânio, que não sentem o sabor terrível da fenilalanina. Jamais vou conseguir entender isso. Há obviedade em alguns sabores.

Enquanto passo o café meu olhar se perde na fumaça que minhas lembranças insistem. Há imagens que jamais apagaremos. Desista. Impregnadas em todos os cômodos do mundo, seguem resistentes em seu ofício de ser um passado que não mais habita nosso presente – prefiro algumas caixas de presente mais do que o presente.

Já não sou mais a mesma. Talvez eu fosse melhor ontem. A atual imagem da minha consciência no espelho, me assusta. Os anos encheram-me de verdades que jamais quis ver.

A sobriedade beija minha boca com seus lábios carnudos e quentes. O hálito de mais um dia recomeça. Estou mais próxima da minha morte, Catarina. Inevitavelmente vou ao seu encontro. Acenda um hollywood para mim também. Quando eu chegar, fumaremos um cigarro juntas e a fumaça não mais desenhará coisas que não saberemos explicar – nada supera o prazer de fumar hollywood com você, Catarina.

6 comentários:

  1. Fiz bem em lhe cobrar o atraso na postagem. O feriado fica melhor assim.
    Ia pinçar algumas frases favoritas e colar aqui, para reiterar minha admiração, mas vi que ia ter que colar o texto inteiro.
    Beijos,

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    1. A programação da postagem falhou, Silmara. Mas ainda bem que tenho amigos atentos como você e mesmo em outro estado, consegui uma conexão no meio do mato e publiquei. Obrigada pelas palavras. Bjs, S

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  2. "Talvez eu mesma seja assim: uma coisa diferente num formato diferente. Quantas vezes sou apenas acúmulo? Não me encaixo em quase nada. Nem em mim – penso em "A Fonte”, de Duchamp e “Merzbau” de Kurt Schwitters."

    Posso quase usar de descrição.

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  3. Simone, boa noite! Desejo lhe enviar um texto. Como faço? Leio a resposta por aqui.
    Grata
    L.

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    1. Boa noite, L. Encaminhe para o meu email: simonehuck@gmail.com Aguardo. Abraço, Simone.

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