Pode acontecer
Pode acontecer de quando eu atravessar a avenida de sempre você aparecer
com cara de quem não dormiu, me cumprimentar e a conversa acontecer sobre a
espera dos ônibus, ou sobre porque o metrô não funciona 24 horas.
Quem sabe, ouvir você tocar naquele bar que eu frequento, me aproximar e
lhe dizer que aquela música do Cartola é tão cortante quanto um fado.
Num intervalo entre uma dança e outra, na hora de pegar mais um drinque,
eu pise no seu pé, você me xingue, eu ache graça e isso vire conversa com risos
e desculpas, quem sabe se nas mesas do lado de fora, se você não aparece e me
pede um isqueiro.
Nas longas tardes de uma quarta improvável, naquela sessão vazia do
cinesesc, notarmos que não há mais ninguém e talvez sorrirmos ao vazio da sala.
Nesses intervalos de solidão que nos põem serenos.
Quando entre os corredores do mercado, você me oferecer uma cestinha porque
meu chocolate, papel toalha, esmaltes e café já não cabem em minhas mãos.
Com impulso natural você me fala do aumento dos produtos de limpeza.
De repente uma conversa sobre cactos ou sobre animais marinhos, ou não
saber nada que nos coloque em contato e achar lindo o seu olhar de inverno, seu
jeito displicente de acender um cigarro. As cores extravagantes de suas meias.
Pode acontecer até no duro breu do mês de dezembro. Numa tarde de vento
gelado na pinacoteca, olhando o parque da luz, vendo os velhos encolherem suas
memórias desejando estar entre coxas das meninas de cabelos secos e olhar e
carne duros.
Vendo a vida escorrer no calendário, entre um feriado e outro, desejar o
que pode ainda acontecer.
Numa feira de sábado, na barraca do pastel, escolhendo aipim, ou
enquanto eu demoro sentindo o cheiro de terra molhada na banca de couve, rúcula,
cebolinha verde, escarola.
No abrir do zíper, dos botões da sua blusa, numa tatuagem na nuca, no susto,
no beco, na curva do deslize.
Nesses dias tensos de sangue escorrendo na rua, no caminho até a
padaria, quem sabe na fila para assistir àquela peça anônima, naquele teatro
amador da Roosevelt.
Pode acontecer durante seu sono, enquanto eu vejo estrelas no teto, pode
acontecer enquanto sua mão passeia pela minha nuca e seu olhar interroga meu
passado, ou quando uma estrela cadente dançar no seu olhar , quando você
finalmente conhecer aquele conto mágico, do Rubem Braga, ou durante aquele papo
sobre os chacras da criatividade.
De repente enquanto leio, no parque de sempre, deixando o sol esquentar
as roupas curtas, o vento jogar flor no corpo cansado.
Pode acontecer quando eu acordar querendo ficar mais uma noite, ou num
susto descobrir que sei seu número de cor, pode acontecer de você gostar de
meus olhares descarados em ambientes sérios, e de também não gostar desses
ambientes chatos e protocolares.
Nos coletivos, todos estão conectados demais para algum suor, saliva,
poucos inspiram flores, me afundo em grandes projetos para o dia, acordar cedo
para brincar no parque e ver uma lagarta amarela é o mais brilhante deles, o
resto é papel e risco.
Caminhar pelas ruas na comunhão com o caos, aliviar íngua no samba de
todo sábado, sangrar com Bach ao ouvido e sentir a tontura de ver as cores
explodirem nas avenidas entupidas de tédio e pressa.
Dilma, Dilma..
ResponderExcluirSempre suave como um sopro forte. E isso sem contradições.
É incrível como seus textos são frescos e pingam um orvalho de esperança em mim sempre que os leio. Gostei desse especialmente. Uma das frases até me arrepiou. (Não digo qual!).
Ah, uma pergunta, qual o conto do Rubem Braga?
Mais do que parabéns, obrigado. Seus textos me fazem um bem danado.
Linné, "Às duas Horas da Tarde de domingo" esse conto é mágico.Obrigada pelas palavras e pelo olhar. Um xero.
ExcluirLinné, "Às duas Horas da Tarde de Domingo" conto mágico.Obrigada pelas palavras e pelo olhar.Um xero.
ExcluirPode acontecer o tudo e o nada de nós. Em tudo e em nada de nós.
ResponderExcluirBonito, Dilma. Bonito. Vc sempre me arranca sorrisos. Ou lágrimas.
Bjs,
S
Eta, Si , eu sempre fico cheia de ousadia quando vc comenta , deve ser essa coisa de ser sua fã.
ResponderExcluirUm xero.