Chegou depois de mais um dia comum: os papéis, as esperas, os excessos, a
efervescência de tudo que já foi dito, editado e repetido. A miséria branca de
tudo que quer ser visto ser gasto.
Abriu a porta, cansada.
A outra a esperava. Um casaco verde sobre o braço do sofá foi seu
anúncio.
Fechou a porta, deixou a bolsa sobre a mesa da sala.
Sentou num canto da cozinha a olhá-la, sem “oi”, sem beijo. Apenas a
olhava.
A outra sorriu e adivinhou seu humor, abriu a geladeira e lhe ofereceu
água.
Bebeu.
A olhá-la, um sorriso crescia dentro, bebia o encanto da mulher que
cozinhava: saia longa dançando no tornozelo, o movimento das pernas, o abrir e
fechar de potes e portas, o sal, as folhas.
O cheiro de manjericão esquentando a cozinha, ranger de talheres nos
pratos, som de garrafa abrindo: gosto e cheiro de tudo que as alimentava.
Panelas tampadas, a outra se aproximou dela, tirou seus óculos,
desabotoou sua blusa e apertou sua mão com carinho e força.
Durante o jantar sorriram. Um sentimento cru, solto, imune às
construções de fora.
Comeram com gosto, beberam bem.
À parte o cansaço, a dívida, os prazos, as penas, as dúvidas, no fundo
de seu silêncio, ela agradecia e pedia a presença delas juntas num espaço
eterno de tempo, envelheceriam juntas e meninas.
Os talheres mudariam, o sexo mudaria, o rosto mudaria, o cabelo mudaria,
no fim de seus dias naqueles corpos onde serenidade, paixão, sangue e violência
percorreram turvos e claros dias, elas sorririam em suas cores.
O tempo com inundações por muitas
vezes invadiria de mágoa e rancor com os dentes afiados das futilidades
pequenas, com o ácido do ciúme, as tônicas do egoísmo.
O que restará é a comunhão de uma vontade plena.
Na contramão do remédio para dormir, da dor de cabeça, da vontade de
conhecer a Grécia, de adotar trigêmeos, de virar hippie e plantar alimentos sãos,
de mandar todo mundo pro inferno, na contramão do desamor e da solidão larga
que cada peito abriga, aquela estará ali, a lhe oferecer água, esta estará
sempre com sorrisos de quem agradece o milagre do encantamento, porque no
silêncio de um bem nasce uma estrela, nasce num estalo de um dia cansado.
A pele será outra, a comida terá menos sal, o all star amarelo combinará
com as sandálias de couro compradas no litoral, haverá tempo para plantar seu
coentro, a outra fará sua aula de latim.
Descansam cansaço e sonhos, uma no colo da outra. Cultivam folhas
sadias, alimentam a vida, e desfazem os nós.
Lindo. De uma suavidade necessária. Um oásis no caos da miséria branca.
ResponderExcluirSeus textos sempre me são necessários. Em alguns trechos lembrou-me a ternura (quase que velada) de um clipe de Amanda Palmer.
http://www.youtube.com/watch?v=Lzek4sHZp-c
Parabéns por cada palavra.
Obrigada, Linné. Vi o clipe, muito bonito. Inspirador.Um xero.
ResponderExcluirIncrivel...
ResponderExcluirInspirador...
Parabens...
Incrivel...
ResponderExcluirInspirador...
Parabens...