Para C.C., com amizade e amor!
Não. Este “homem” não é Deus. Talvez Ele conheça minha alma. Mas sou eu quem não conhece a alma Dele. Não somos tão íntimos assim. Ele sabe dos meus anseios, eu jamais saberei os Dele. Em sua exclusiva onipotência, sou apenas uma mulher que às vezes chora. Ele me parece indestrutível. Eu, não.
Não. Este “homem” não é Deus. Talvez Ele conheça minha alma. Mas sou eu quem não conhece a alma Dele. Não somos tão íntimos assim. Ele sabe dos meus anseios, eu jamais saberei os Dele. Em sua exclusiva onipotência, sou apenas uma mulher que às vezes chora. Ele me parece indestrutível. Eu, não.
Quando o despertador
toca, ainda é madrugada. O homem que conhece minha alma levanta,
resmunga insônias e entra no banho. Tateando o sabonete e a pasta de
dentes, pensa nas palavras do dia. Silêncios oclusos antes do sol.
Minutos depois já está pronto: ajusta a gravata, confere os óculos,
chama o elevador com um olhar cinza. Entra no carro apressado, antes
de sair pega o telefone celular e me liga. Partilhamos as traças da
rotina. Do outro lado da cidade, eu também já estou a caminho do
trabalho. O sol começa a nascer e já estamos juntos. Ele me conta
seus medos enquanto confesso quem me roubou as noites de sono desde o
último outono. Ele já sabia. Conversamos durante todo o caminho.
Entre confissões, o dia vai ganhando formas pelo retrovisor dos
nossos carros. Passado e presente dão as mãos. Somos sobreviventes
de espantos compartilhados. Entre braços e pernas, relembramos com
uma certa nostalgia o acúmulo das nossas vidas. Misturamos os
sapatos pelo asfalto. Entre sonhos e certezas, projetamos um futuro
indestrutível e revelamos em palavras sonoras o que não escrevemos
para o mundo. Às vezes, ele me confessa descrenças, enquanto eu,
entre ossos e pele, lhe digo onde não mais sou, nem estou. Somos
mutantes da partilha. Soldados de mãos dadas entre nossas guerras.
Nosso exército ocupa o mesmo país.
Ele começa a
trabalhar, eu também. Na hora do almoço, entre os vãos dos
intervalos, nos falamos novamente. Somos sobreviventes de uma rotina
massacrante. De boca cheia, ele mastiga a comida apressado e pergunta
alguma coisa nossa. Tem pressa na confissão. Almas gêmeas que
agarradas, seguem pelo desfiladeiro da vida. Há confiança no salto
quando estamos juntos. Ele é meu paraquedas. Sou seu abraço. No
final da tarde, antes de chegarmos em casa, ele pra vida dele e eu
pra minha, nos falamos novamente. Ele me conta como foi seu dia,
escuta como foi o meu. Rimos. Rimos alto. Gargalhamos muito juntos. O
mundo parece ser colorido e fácil quando somos apenas nós dois: um
homem e uma mulher que se amam, sem máscaras. Penduradas, nossas
almas secam nuas no varal. Ele sabe qual é a cor do meu medo.
Disseca a vírgula que engasgo. Diante dele, não estou guardada no
meu bolso.
O homem que conhece minha alma é frágil, doce e meigo. Tem dias que chora feito um
menino em meus ombros. Nos abraçamos entre nossos restos. Ele não
esconde seus medos. Muitas vezes me mostra sua destemida coragem. Me
lança para cima com uma única palavra. Me arranca das lágrimas com
um único sorriso. Numa conexão digital capaz de unir dois corações
que se amam, me resgata da tristeza só por estar do outro lado da
linha.
Nos conhecemos há
treze anos. Nos últimos cinco, é que nos abraçamos para jamais
soltar. O homem que conhece minha alma está próximo dos cinquenta
anos, eu, dos quarenta. Muitas vezes sonhamos nossa velhice. Ele
usará uma bengala cinza, eu terei uma cadeira de balanço. Ele
continuará me ligando, resmungando alguma coisa do nosso passado. Eu
não conseguirei dormir se passar um dia sem falar com ele. Quando
estivermos próximos dos oitenta anos, terei aprendido tricô e farei
um cachecol vermelho para ele. Ele vai ficar tão bonito de cabelos
brancos, bengala cinza e cachecol vermelho. Colocaremos nossas
cadeiras de balanço uma do lado da outra e passaremos a tarde toda
relembrando nossa vida. O homem que conhece minha alma irá chorar
tanto, eu sei. Ele é tão emotivo. Debaixo da minha catarata, ele
continuará sendo o único que sempre conseguirá ler minha retina.
Não haverá demência senil que nos apague.
Não há coisa mais bonita e sã e limpa.Texto lindo demais, lindo,lindo.
ResponderExcluirObrigada, Dilma. Esse escorreu. Simples e intenso assim.
ExcluirBjs,
H
Tão bonito. É desses textos pra chorar.
ResponderExcluirMesmo que esse homem não seja a gente.
Tb chorei em muitos momentos. Sou feliz por ter esse homem ao meu lado.
ExcluirBjs Sil.
H
Que lindo!
ResponderExcluirJá começa muito bem. Que relação desequilibrada essa de nós e Deus...
Que relação bonita essa do texto... Eu também quero uma bengala para quando envelhecer. É que eu quero poder bater e quebrar nas coisas enquanto resmungo. rs.
Difícil falar Dele, Linné. Melhor falar dele... rs. É, texto totalmente autobiográfico. Obrigada pelas palavras e leitura. Bjs, H.
ExcluirMuito, muito emocionante. Impossível segurar as lágrimas. Sentimento puro, limpo, verdadeiro e RECÍPROCO. Já to indo comprar a bengala cinza... Rsrsrs
ResponderExcluirE eu tô indo comprar a lã vermelha... Vai ficar tão lindo! rs rs...
ExcluirBjs meu mais que querido!!!
Si
Estava aqui imaginando as cenas depois da leitura porque eu sempre me demoro junto as palavras. Gostaria de ser mais rápida, mas não dá - preciso desse tempo de maturação. Que cena agradável: bengala e cadeira de balanço e mais adiante o horizonte a confessar dias inteiros.
ResponderExcluirA evolução no seu texto me deixou inquieta - era uma linha reta, mas ao mesmo tempo fiquei esperando que de repente você fizesse uma curva. rs
bacio
Há curvas e retas sempre, Lu. Inesperadas ou não...rs. Quando menos se espera, vrum, vrum, vruuuummmmm...rs.
ExcluirObrigada pela leitura.
Bjs,
S
... Que Lindooooo !!!! :)
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