Terá coragem?
Coragem de me ver nua?
Rasgar minha saia? Numa metáfora de sangue alcançar as pedras atrás das
nuvens?
Minha calma é proporcional à distância que você está.
Eu nunca inundei você do mar que minha carne chora.
Você aguenta o bicho arisco que habita a largura dos meus dias de
solidão? Meus demônios estão secando ao sol, estendidos no varal, junto com as
camisas brancas que quaravam na manhã que você partiu. Uma manhã de primavera,
na qual as cores incidiam beleza de túmulos.
Na beleza dos milagres: do sol nas bolhas de sabão, das primeiras
sílabas de uma criança cingindo mãe em mantra, dos olhos construindo contos com
os bocejos preguiçosos dos operários do caos, do milagre do sangue entre minhas
pernas me fazendo bicho, me fazendo fêmea, do tempo marcando o rosto, o rastro,
nesses milagres eu choro a alegria do pão, do mato, do nervo, da gengiva.
Esses milagres fermentam a loucura duradoura de uma solidão colorida
dissolvida num gozo singular que seus olhos femininos apedrejaram.
No meu afeto baldio nasceram girassóis para iluminar sua alma em
assonâncias ofegantes e suadas.
Lágrimas escorreram nos nossos lençóis sujos de vodca e água. Minha
natureza arisca gemeu pelos mortos sob a cama ordinária. Eu e você, ali, agonizávamos
a tentativa de encontro, sombras do que foram mãos deslizando em cio, do que
foi fome comendo instinto e cuspindo alma no canto do quarto.
Uma tragédia tão bonita como um poema barroco.
Mas lá fora, a vida seguia o rumo ordinário dos sentimentos enlatados.
Devorávamos os dias da semana como quem come sem fome, como quem não
sente.
Onde ficou a força dos dentes brancos?
À flor da pele: o espanto.
Qual o espaço dos milagres na ordenação miserável dos dias?
Os automóveis são estúpidos, um poema não pode ser comido. O poder
medíocre comanda o mundo, nossa cama caiu num abismo sem prólogo, prazo, ou
ingresso.
Há coragem para uma metáfora de sangue?
Se eu construir um quintal e soltar minha loucura sob o sol das três, se
eu cantar minhas angústias no eu colo terno, seu eu sangrar seus olhos com uns
espinhos e pedras que às vezes escorrem do meu peito?
Os copos descartáveis sob a mesa sujam de metáforas brancas o amarelo
que entra pela janela. Eu fumaria, fosse eu fumante. Quis ser mesmo foi fumaça.
À míngua, esperam-se gotas de amor ao final da tarde.
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